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Washington Araújo

Mestre em Cinema, psicanalista, jornalista e conferencista, é autor de 19 livros publicados em diversos países. Professor de Comunicação, Sociologia, Geopolítica e Ética, tem mais de duas décadas de experiência na Secretaria-Geral da Mesa do Senado Federal. Especialista em IA, redes sociais e cultura global, atua na reflexão crítica sobre políticas públicas e direitos humanos. Produz o Podcast 1844 no Spotify e edita o site palavrafilmada.com.

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Volta dos clãs revela como o Supremo trocou a República pela linhagem e pelo sobrenome

Supremo apaga fronteiras entre público e privado, permitindo que o parentesco suplante o mérito e a República volte a falar o idioma dos clãs

Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) (Foto: Antonio Augusto/STF)

Nas últimas 48 horas, o Supremo Tribunal Federal formou maioria de 6 a 1 para permitir que autoridades nomeiem parentes para cargos de natureza política — como ministérios, secretarias e assessorias diretas — sem que isso configure automaticamente nepotismo. O argumento central da Corte: a súmula que proíbe o favorecimento familiar (Súmula Vinculante 13) não alcançaria cargos “essencialmente políticos”. Soa técnico, equilibrado, até racional. Mas, por trás desse verniz jurídico, o que se erige é um perigoso monumento ao autoengano institucional — uma fantasia revestida de formalidade legal.

Essa “flexibilização” é, na prática, uma ficção moral. Imaginar que um prefeito, governador ou ministro nomeie seu cônjuge, filho, mãe ou irmão apenas porque “atendem aos critérios técnicos e à idoneidade moral” é acreditar em um país que só existe no parágrafo do voto de um relator. 

É ignorar o Brasil real — aquele onde o mérito raramente se sobrepõe ao laço familiar, e onde o currículo pesa menos que o sobrenome. A decisão do STF cria um teatro de legalidade: a cena é de transparência; o enredo, de patrimonialismo; o desfecho, de impunidade.

A Corte repete, com toga e eufemismo, o argumento da exceção que engole a regra. 

Diz que a nomeação será legítima se houver “qualificação técnica”. Mas quem, afinal, auditará isso com independência? 

Que órgão aferirá, de forma objetiva, que um secretário municipal ou ministro indicado por laços de sangue foi escolhido pelo saber e não pelo DNA? 

Não há instância que possa provar, de modo incontestável, que a escolha decorreu do mérito e não da conveniência. O resultado é previsível: a subjetividade vira escudo, e o discurso da técnica legitima o abraço da família na coisa pública.

E o STF, ao reconhecer essa modalidade de nomeação como possível, dilui o princípio da impessoalidade da administração pública — cláusula pétrea do artigo 37 da Constituição. Essa diluição não é apenas jurídica; é simbólica. É o Estado dissolvendo sua fronteira com o lar, a esfera pública misturando-se à mesa de jantar. É o gesto que transforma o serviço público em herança, o cargo em dote, a gestão em condomínio. 

O que se esfarela não é uma norma, é um valor republicano: a separação entre o “meu” e o “nosso”, entre o poder e a família.

O Brasil parece assistir, mais uma vez, à naturalização do indevido — como se a moralidade administrativa fosse um móvel antigo, relegado ao fundo da sala, empoeirado, porém ainda exibido nas cerimônias de posse. O país, cansado de discursos e escândalos, vê o STF reescrever a ética em letra miúda, trocando o ideal republicano por uma prática de compadrio. É a liturgia da legalidade servindo de biombo para a persistência do velho feudo de sempre.

O Supremo, ao criar essa brecha, age como quem libera uma nova substância sem testar seus efeitos colaterais. O nepotismo político é o vírus que se anuncia “controlado” — até começar a se replicar nos tecidos da administração pública, silenciosamente. Quando se perceber o dano, já será tarde: a impessoalidade, pilar da democracia, estará contaminada, e a confiança pública, com. febre alta.

No fim, o STF não está apenas reinterpretando uma súmula. Está abrindo um precedente que torna o país mais vulnerável ao arbítrio familiar, mais distante da ideia de Estado e mais próximo do velho patriarcado que há séculos drena nossa energia cidadã. É uma vitória do formalismo sobre a ética, da conveniência sobre o princípio, do sangue sobre o mérito. 

O que se chama de “flexibilização” é, na verdade, a legitimação de um retorno: o retorno da política como negócio de família — e da República como ficção cada vez mais difícil de sustentar. Isso tudo ocorre em um momento em que estávamos tão satisfeitos com a atuação da nossa Suprema Corte. Deplorável desvario.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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