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Alex Solnik

Alex Solnik, jornalista, é autor de "O dia em que conheci Brilhante Ustra" (Geração Editorial)

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Volta por baixo

"Mudar letra de samba é uma forma de censura"

Volta por baixo

 Quando eu tinha de 16 para 17 anos, a música mais tocada nas rádios de São Paulo era o samba “Volta por cima”, na voz de Noite Ilustrada, letra e música de Paulo Vanzolini (que não tocava nem caixa de fósforo). 

   “Chorei/ não procurei esconder/ todos viram, fingiram/ pena de mim não precisava/ ali onde eu chorei, qualquer um chorava/ dar a volta por cima que eu dei/ quero ver quem dava/.

   E a segunda parte:

   “Um homem de moral/ não fica no chão/ nem quer que mulher/ lhe venha dar a mão/ reconhece a queda e não desanima/ levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima/.

   Os versos, além de belos e fora do padrão da época, têm a qualidade de grudar feito chiclete, tanto que não precisei ir ao google para recordar a letra, sei de cor, inteirinha, quase 60 anos depois.

   Minha relação afetiva com essa música tinha outro componente: Maria Eugênia, filha de Paulo Vanzolini, era minha colega de classe, mais que isso, minha vizinha de fileira, e eu era gamado nela, como então se dizia. Só que ela nunca me deu bola.

   Ontem, resolvi assistir ao pronunciamento de Fernando Haddad na TV Globo. À espera dele, peguei então o finalzinho de um capítulo da telenovela “Volta por cima”, a parte dos créditos, em cima dos quais rolava a música-tema, exatamente “Volta por cima”, mas não com Noite Ilustrada  ou uma voz masculina e sim com duas cantoras, Alcione e Ludmila, o que é estranho, porque a letra é o desabafo de um homem.

   Fiquei mais perplexo ainda, quando ouvi, em lugar de “um homem de moral não fica no chão, nem quer que mulher lhe venha dar a mão” - “nem quer que ninguém lhe venha dar a mão”.

    Trocar a letra de um samba antológico em razão de um modismo da época pode ser politicamente correto, mas é uma forma de censura: era a censura quem mandava trocar versos de canções no tempo da ditadura.

   Nessa época havia uma só censura, a oficial, a do governo, contra a qual todos nós que prezamos a liberdade nos insurgimos.

   Hoje não há censura oficial, mas há uma plêiade de censores extra-oficiais, que, instalados em suas torres de observação estão sempre prontos a “corrigir” e a macular obras de arte, numa insana cruzada pelo “politicamente correto”.   

    Não sei se quem mudou a letra foi Alcione, Ludmila ou alguém da Globo, mas espero que a Maria Eugênia tome providências para que a memória de seu pai e a sua obra sejam respeitadas.

   Tenho certeza que ele jamais concordaria com isso.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.