Indústrias precisam financiar o sistema de resíduos, alerta pesquisador
Responsabilidade compartilhada, economia circular e pressão sobre a indústria aparecem como caminhos para tirar o Brasil da “idade média” dos resíduos
Beatriz Bevilaqua, 247 - A crise dos resíduos no Brasil segue revelando um país que ainda não conseguiu, de fato, entrar no século XXI quando o assunto é gestão de lixo. Apesar de leis avançadas e de uma Política Nacional de Resíduos Sólidos que completa mais de uma década, o país ainda convive com mais de dois mil lixões a céu aberto. Para o pesquisador Carlos Eduardo Canejo, doutor em Engenharia Ambiental pela UERJ e coordenador do Observatório da Gestão Integrada de Resíduos Sólidos do Rio de Janeiro, o principal entrave não é técnico, mas sim cultural, político e econômico. “As grandes indústrias são co-responsáveis pela geração de resíduos e precisam assumir a responsabilidade compartilhada pelo gerenciamento desses materiais”, afirma.
Canejo insiste que o ponto de partida é ressignificar a própria ideia de “lixo”. O termo, segundo ele, carrega uma noção de sujeira e descarte que não condiz com a lógica contemporânea da economia circular. “Lixo não existe. Existe resíduo que é um recurso no lugar errado”, explica. Ao direcionar adequadamente esses materiais para cadeias produtivas, cria-se valor onde antes havia apenas descarte. O desafio, porém, é integrar essa visão em um sistema nacional ainda marcado pela fragmentação.
O pesquisador alerta para fragilidades estruturais na reciclagem e na logística brasileira. Mesmo com normas robustas, a implementação avança lentamente. Um exemplo crítico é o do chorume, líquido tóxico produzido pela decomposição de resíduos nos aterros sanitários. Só entre 2019 e 2023, cerca de 1 bilhão de litros foram encaminhados para tratamento no estado do Rio de Janeiro. Canejo descreve o chorume como “um efluente de altíssima complexidade, capaz de carregar até 20% da tabela periódica”. Apesar de avanços tecnológicos no estado, ainda há forte dependência de estações de tratamento de esgoto, que não foram projetadas para lidar com esse tipo de contaminante, colocando em risco toda a operação.
A situação se agrava nas favelas e periferias, onde a falta de saneamento básico e a dificuldade de acesso tornam a coleta mais cara e menos eficiente. Caminhões compactadores não circulam em vielas estreitas, e alternativas como pequenas motoretas e pontos de entrega voluntária são usadas para reduzir o impacto. Mesmo assim, o acúmulo de resíduos, agravado pelas chuvas intensas, cada vez mais frequentes devido à crise climática, transforma o problema ambiental em uma questão de saúde pública.
Para reverter esse quadro, Canejo defende que o país abandone de vez os lixões e priorize a construção de aterros sanitários adequados, passo essencial para qualquer política moderna de resíduos. A partir daí, é possível avançar para tecnologias de valorização, como compostagem de larga escala, tratamento mecânico-biológico, incineração com recuperação energética e canais estruturados de reciclagem. Sem essa base, o Brasil permanece preso “à idade média da gestão de resíduos”, como define o pesquisador.
Outro ponto central da entrevista é o tsunami de plástico que invade o país. Se na Europa políticas rigorosas conseguiram reduzir o consumo, no Brasil embalagens descartáveis se multiplicam sem controle. Microplásticos já foram encontrados no líquido amniótico de gestantes e até no cérebro humano. Para ele, não há solução possível sem o envolvimento direto da indústria. Embalagens deveriam ser taxadas, e empresas obrigadas a custear fundos destinados ao gerenciamento dos resíduos que elas põem em circulação, modelo já adotado em diversos países europeus. No Brasil, entretanto, falta regulação capaz de transformar a responsabilidade compartilhada, prevista em lei, em obrigação real.
O pesquisador lembra que, décadas atrás, garrafas retornáveis eram parte do cotidiano de milhões de famílias. Hoje, embalagens novas ficaram mais baratas para a indústria do que reutilizar materiais existentes e o planeta paga a conta. Sem limites claros sobre o que pode ser colocado no mercado, o consumo segue guiado por embalagens descartáveis de vida curta e impacto prolongado.
Para o pesquisador, a sociedade tem papel importante, mas não deve ser responsabilizada sozinha. Sem o compromisso financeiro e estrutural das grandes corporações e sem a pressão do Estado, o ciclo dos resíduos seguirá injusto, caro e ambientalmente destrutivo.
“Teremos que lidar com resíduos para sempre. A natureza já está aprendendo a degradar o plástico por conta própria, mas isso não nos absolve”, diz Canejo. Enquanto o país respirar microplástico, conviver com lixões e tratar chorume em estruturas inadequadas, a sustentabilidade seguirá como promessa distante. O futuro possível exige vontade política, tecnologia e coragem para enfrentar interesses econômicos e, sobretudo, romper a lógica de que o descarte é inevitável.
Assista a entrevista na íntegra aqui:
