Periferias criam soluções diante das mudanças climáticas
Comunidades unem saberes ancestrais, acadêmicos e locais para enfrentar os desafios do aquecimento urbano e da crise climática
Beatriz Bevilaqua, 247 - As mudanças climáticas não atingem todas as pessoas da mesma forma. Em territórios vulneráveis, os efeitos já são sentidos de forma desproporcional e preocupante. “As periferias vão ficar ainda mais quentes com o avanço da crise climática”, alerta Daniele ASCipriano, pesquisadora da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), que desde 2007 desenvolve projetos que unem inovação, pensamento ecológico e redes comunitárias.
Negra, vinda de família periférica e primeira geração a concluir o ensino superior, Dani também é ativista, artista e cineasta. Desde 2019, voltou seu olhar acadêmico para sistemas socioambientais, com foco em como vilas, favelas e ocupações podem enfrentar e se adaptar aos impactos da crise climática. “Não existe solução individual. E não existe resiliência sem resistência”, afirma.
Sua trajetória nesse campo começou com uma vivência no bairro Confisco, periferia de Belo Horizonte, onde constatou que o aumento de temperatura projetado para 2030 já estava se antecipando. Um estudo contratado pela prefeitura indicava que a média de 24°C registrada em 2016 poderia chegar a 32°C até o fim da década - patamar alcançado já em 2020. A elevação térmica, explica Dani, tem consequências graves: epidemias de dengue, chikungunya e malária, deslizamentos, enchentes e ondas de calor extremo.
Soluções criadas pela comunidade
No Confisco, o que antes era um “buracão” usado como depósito de lixo se transformou em praça e parque por iniciativa de lideranças locais. Em outros territórios, como a ocupação Vitória, no complexo Isidoro, a população se mobilizou para preservar a última área de Mata Atlântica de Belo Horizonte, respeitando nascentes e protegendo o rio.Essas ações, no entanto, enfrentam resistência institucional. “Muitas vezes, planos de urbanização são pensados de cima para baixo, ignorando saberes e necessidades locais. Em alguns casos, obras previstas colocam em risco áreas vitais de produção de água e oxigênio”, critica.
Dani atua com o metadesign, abordagem que usa ferramentas de design sistêmico para criar, junto com a comunidade, sistemas adaptados à sua realidade. “Não projetamos objetos, mas ambientes e processos que ampliam o que as pessoas já fazem. É um trabalho de construir soluções a partir dos saberes locais, ancestrais e acadêmicos”, explica.
Um exemplo é o projeto no CRAS Confisco, que durante a pandemia revitalizou uma horta institucional com a participação de 15 moradores. A colheita orgânica é distribuída por meio de uma moeda social baseada em “créditos de tempo”: quem trabalha na horta acumula pontos que podem ser trocados por alimentos. Em poucos meses, o grupo passou a ter excedente, criando uma bancada solidária para vendas a preço justo ou trocas por produtos para doação. “Essa economia do afeto e da solidariedade já existe nas comunidades. Nosso papel é potencializá-la”, afirma.
Conexão entre saberes e resistência
Para Dani, integrar o saber científico, popular e ancestral é essencial para criar futuros possíveis diante de um cenário climático cada vez mais extremo. “Já ultrapassamos o ponto de retorno. O desafio agora é nos adaptar e resistir. E isso só é possível juntos. O Brasil ainda guarda uma biodiversidade ambiental e uma riqueza sociocultural que inspiram o mundo. Precisamos sonhar um modo de viver apesar de todas as catástrofes.”
A pesquisadora lembra que as periferias têm demonstrado uma capacidade incrível de resistência e inovação: desde estratégias de preservação ambiental até soluções de economia solidária, as comunidades mostram que o conhecimento local, aliado à ciência, pode transformar desafios climáticos em oportunidades.
Assista a entrevista na íntegra aqui: