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A revitalização da W3, em Brasília, não sai por quê?

O concurso nacional de arquitetura e urbanismo para a revitalização da avenida W3 foi realizado há exatos 10 anos e não gerou, de forma alguma, os resultados esperados

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O concurso nacional de arquitetura e urbanismo para a revitalização da avenida W3 foi realizado há exatos 10 anos e não gerou, de forma alguma, os resultados esperados. Em 2002, no quarto Governo Roriz, o DF convocou urbanistas de todo o Brasil para propor diretrizes de revitalização -que foram feitas, às dezenas - mas, aparentemente, o maior impasse para empreender a “grande solução” estava mesmo do lado do próprio governo. Por quê?

Essa é uma lição a ser objeto de ampla reflexão, pois mostra a profundidade do abismo que cresceu ao longo deste período de Autonomia Política do Distrito Federal, iniciado em 1990.

A PODEROSA REVITALIZAÇÃO PELA CULTURA, E NÃO PELA ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA

A proposta vencedora era a de revitalização pela cultura, com a formação de um extraordinário CORREDOR CULTURAL para a W3, um conceito que vai perfeitamente ao encontro do papel de Brasília como Capital da República.

Esse papel é claramente definido pelo próprio urbanista Lucio Costa, no sexto parágrafo do Relatório do Plano Piloto de Brasília - documento com que concorreu ao Concurso Público Nacional de 1957:

“Cidade planejada para o trabalho ordenado e eficiente, mas ao mesmo tempo cidade viva e aprazível, própria ao devaneio e à especulação intelectual, capaz de tornar-se, com o tempo, além de centro de governo e administração, num foco de cultura dos mais lúcidos e sensíveis do país.”

BRASÍLIA SERÁ UM DIA A CAPITAL CULTURAL DO BRASIL?

O fato mais chocante desse concurso, com respeito ao mérito da maioria das propostas dos urbanistas brasileiros, é o de que “revitalização”foi associada inequivocamente à “incorporação imobiliária”, à “reconstrução com verticalização”, ao aumento de intensidade e impacto de ocupação do espaço urbano - mesmo que isso significasse a criação de uma verdadeira “Avenida Nossa Senhora de Copacabana” em plena via W3.

A proposta vencedora, ao contrário, afirmou que essa verticalização era tudo, menos desejável. Na verdade, no caso da via W3, a verticalização contribuiria decisivamente para piorar a situação, para aumentar o congestionamento do trânsito - e, pior, para desfigurar de vez a proposta urbanística de Lucio Costa. A maioria esmagadora dos urbanistas que concorreram propôs uma desastrosa verticalização da via W3.

Por quê esses urbanistas de todo o Brasil, majoritariamente, propuseram uma revitalização “através de edifícios”?

OS URBANISTAS NÃO POSSUEM MAIS TEORIAS URBANAS INTELIGENTES, QUE OS ORIENTEM

Uma razão fundamental diz respeito às “teorias urbanas”, ou as maneiras pelas quais os urbanistas COMPREENDEM, EXPLICAM e ORIENTAM SUAS PROPOSTAS (e as avaliam). Essas teorias estão numa séria e paralisante, completa crise desde os anos 1980, com a desmoralização das teorias marxistas acerca da origem, desenvolvimento e lógica da organização das cidades. Caiu o Muro de Berlim e o mundo parece ter perdido uma importante forma alternativa de ver as sociedades humanas – uma perda que não faz o menor sentido, mas que houve.

A visão marxista do mundo não foi renovada - e talvez nem devesse ser: nunca foi mesmo uma boa visão para que compreendêssemos a cidade ao ponto de criar um modelo de gestão realmente eficaz, superior. O marxismo era uma doutrina de combate, cujo declínio, e nunca se aplicou à paz ou à pacificação, à administração das contradições que denunciava. Mas seu declínio injustificadamente, avariou severamente a capacidade crítica dos urbanistas da atual geração, dentre outros profissionais da mudança social. O oblívio marxista levou consigo uma matriz de valores críticos que emasculou o planejamento urbano, que tirou quase completamente sua virilidade, sua iniciativa transformadora, seu impulso e coragem. O marxismo nos fazia viris e corajosos, capazes de sonhar com cidades igualitárias e justas.

O VELHO MARXISMO, DE TANTO VIGOR, DE TANTA CEGUEIRA

Essa é uma longa conversa, mas a desmoralização de certa forma marxista de explicar a cidade deveria ter fortalecido outras formas, muito mais poderosas, de explicação, baseadas na multidisciplinaridade do próprio urbanismo - e na pesquisa realmente científica acerca da organização urbana.

Mas não é isso que aconteceu, até agora. Vivemos uma idade das trevas de nossas teorias urbanas, o que nos tornou, urbanistas, venais, desmoralizados, submissos à plutocracias - e aos aventureiros da política, que são mais assertivos que os obedientes técnicos do governo. Nunca fomos tão fracos e cabotinos. Certamente isso também mostra o poder das teorias - e de seu fracasso. Paramos até mesmo de estudar as cidades de uma forma crítica, engajada (na UnB, os geógrafos, sociólogos e antropólogos dão "show" de capacidade crítica, de estudos urbanos abrangentes e esclarecedores sobre o Distrito Federal e sua região).

O FIM DA ÉTICA DAS IDEOLOGIAS E O INICIO DE UMA ERA DE URBANISTASCARREIRISTAS E FRACOS

Os urbanistas passaram a investir em fórmulas fáceis, quase completamente esvaziadas dos conteúdos, e questionamentos das Ciências Sociais (um dos bastiões das teorias marxistas da cidade, mas também de muitas outras poderosas teorias sobre a organização urbana). São fórmulas cerimoniais e retóricas, orientadas por um mosaico de conceitos estilhaçados, desarticulados, sem a menor consistência de uma boa teoria substantiva para o projeto. De um modo geral, chama-se a esse mosaico, de “Desenho Urbano” - ou, como reza a matriz anglo saxônica desse saco de gatos: “URBAN DESIGN”.

A fragilidade teórica do urbanismo da atualidade explica porque tantos homens e mulheres sérios e severos, respeitáveis e autoritativos, investiram, no caso da Revitalização da via W3, numa proposta tão superficial e destituída de diretrizes comunitaristas, de diretrizes de políticas públicas de desenvolvimento econômico, social e humano na localidade (na área escolhida, no contexto da própria cidade). Verticalizar a W3 é uma diretriz estúpida e simplista, que amplia o impacto das atividades urbanas que se encontram em um estado de descoordenação, de congestionamento. Também podemos denominar esse estado de coisas com uma palavra antiga, mas cheia de dignidade: DESARMONIA.

A fragilidade teórica, a incapacidade intelectual de relacionar questões fundamentais nos âmbitos dos PROBLEMAS AMBIENTAIS, PROBLEMAS COMUNITÁRIOS, PROBLEMAS DE GESTÃO PÚBLICA e de POLÍTICAS PÚBLICAS, além da grande questão contemporânea do DESENVOLVIMENTO HUMANO de nossas comunidades urbanas tem levado a área do urbanismo a uma fragilidade de indigentes - mas viciosamente reacionários, amigos do poder.

Talvez o que temos como “urbanismo” e “planejamento urbano”não sejam mesmo nem uma coisa nem outra. Não temos mais a habilidade do projeto e do planejamento urbano: estamos a ser interceptados por forças primitivas, que se manifestam com fome de recursos públicos e de poder social. Que usam os urbanistas como se fossem descerebrados, autômatos. O primitivismo desse ambiente de "gestão e planejamento" reage à crítica criminalizando-a. Quem denuncia esse estado de coisas é convidado a retirar-se de Brasília, da vida política, da própria Universidade.

OS URBANISTAS DO GOVERNO (E DA ACADEMIA) NÃO QUEREM RESPONSABILIDADES COM AS POLÍTICAS PÚBLICAS

Não é difícil compreender a péssima qualidade dos PDOTs do Distrito Federal, por todo este Período de Autonomia Política: não passam de mosaicos de destinações voltadas para satisfazer os compromissos de sustentabilidade de governos venais com empresários, grileiros, políticos oportunistas, aventureiros de toda sorte.

O planejamento urbano do DF não desenvolve o DF, mas cria essencialmente pactos de ocupação territorial entre grupos de aventureiros em disputa, numa “terra sem lei”, num Faroeste Candango. Algo assemelhado ocorre em todas as outras grandes cidades brasileiras, mas em Brasília temos a magnífica referência de seu projeto original, de seu Plano Piloto. Aqui, a queda de qualidade é visível, clamorosa. Noutra grande cidade é apenas mais bagunça, crescimento da entropia urbana.

A ação desqualificada dos nossos governadores distritais, desde 1990, tem sido francamente destrutiva desse projeto original, sem que níveis de inteligência e superação do que Lucio Costa propôs tenham se manifestado, até hoje. Mais: se propostas que realmente aprimoram Brasília forem colocadas na mesa, como ocorreu no Concurso da Revitalização da W3, elas serão desmoralizadas pela barbárie no poder – como aconteceu através de iniciativas de Roriz (2002-2006), de Abadia (2006), de Arruda (2006-2010), e de Agnelo, desde 2010. São governos que negociaram Brasília, que a dilapidaram e não a aprimoraram.

É nesse contexto que a revitalização da via W3 exemplifica a conduta perigosa e errática do Governo do Distrito Federal com respeito a Brasília. Com uma área de planejamento urbano fraquíssima, sem um “norte”doutrinário, disciplinar, científico e teórico, a cidade se torna presa fácil de propostas indecentes - como a Cidadela Hoteleira da 901 Norte, a cidade das invasões de área públicas por seus próprios comerciantes (nos Comércios Locais da Asa Sul), a cidade que cria um Setor de Supermercados onde deveria haver um Setor de Terminais, crucial para seu absurdo sistema de transportes públicos... entre dezenas de indecências nascidas da “baixa imunologia intelectual” da gestão urbana de Brasília. Sua desfiguração urbanística é, cada vez mais, fato que se consuma.

URBANISMO DE PANDORA, URBANISMO DE OPORTUNISTAS

Nesse contexto, qualquer intrépido aventureiro (ou qualquer idiota ousado o suficiente) pode ser Secretário de Desenvolvimento Urbano (ou que denominação tenha), e impor, de forma truculenta, a sua vontade, a sua pauta de negociações, a sua “governabilidade” - nem que seus negócios escusos custem a todos o futuro da própria cidade.

A revitalização da W3 ou de qualquer outra fração de nossa cidade – que desejemos vitalizada, animada, renovada, desde a alma até suas carnes - depende, além disso, vitalmente, de sua comunidade. Como teremos o sucesso de qualquer política pública de defesa e promoção da qualidade de vida da população, sem que a comunidade seja EMPODERADA, sem que tenha poder para determinar os objetivos dessas políticas públicas? Sem que tenha poder para ORDENAR AS DESPESAS feitas em seu nome, por esses políticos (que se recusam a empoderar a comunidade, as prefeituras comunitárias, as associações demoradores, etc.) que não querem perder o controle dos recursos públicos... que usam em seu benefício?

GOVERNADORES DESEDUCADOS, CIDADE INCULTA (AINDA QUE BELA)

Além disso, a “questão cultural” depende de comunidades EDUCADAS e de governos EDUCADOS. Ao longo desse período de Autonomia Política, tivemos um desfile de políticos DESEDUCADOS, sem políticas culturais dignas do nome. O tempo passa, e Brasília não cresce no horizonte cultural brasileiro. A causa dessa inanição, desse nanismo é clara: está sentada sobre a cadeira do Governador.

A revitalização através da cultura parece estar muito além dos horizontes intelectuais dessa política de “sustentabilidade” de governos que têm usado Brasília para servir às suas carreiras – quando deveriam usar as suas carreiras para servir a Brasília.

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