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Brasil

As aparências enganam

Nem só de PIB, multidão, buzina e poluição vive a Avenida Paulista

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De repente todo o irresistível charme da Paulista ficou reduzido a uma discussão: quantas pessoas cabem nos 2,8 quilômetros de extensão da avenida? Depois de muito chute, chegou-se a um número: descontada uma série de obstáculos, não mais de 1,1 milhão podem curtir ali, ao mesmo tempo, uma Parada Gay, uma Marcha da Maconha, uma Marcha com Jesus, a conquista de uma Libertadores, o réveillon.

Mas a Paulista não é só isso que se vê – 1.500.000 pessoas, em média, circulando ali durante o dia, 150.000 delas saindo dos buracos das três estações de metrô, ou entrando; um formigueiro zanzando de ponta a ponta; uma babel onde se escuta vários idiomas, se depara com todo tipo de gente. A Paulista é um pouco mais.

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Na esquina da Paulista com a Augusta, o sinal fecha. Um monumento de matiz nórdico, calça de algodão bem folgada, uma blusinha quase transparente deixando quase toda a barriguinha de fora, atravessa a faixa. Estático no meio-fio, um administrador de empresas vidra na tatuagem tribal que a semideusa ostenta na cintura. Pensa em ir atrás, mas pensar demais apodrece a ação – ansiou, bobeou, dançou.

O administrador, em pleno gozo do desemprego, exerce neste momento a paquera compulsiva. Sozinho, seguindo à risca recomendação de Groucho Marx em suas memórias: mal chegava para seus shows numa cidade, livrava-se dos irmãos e ia bater perna na expectativa permanente de que o destino colocaria uma mulher na sua frente. Sempre que isso acontecia, mandava a frase que nunca o deixou na mão: “Você é a mulher mais bonita que já vi na vida”. Quando os amigos duvidavam da eficácia da fórmula, dizia: “Se você pensa que não funciona, está muito enganado.”

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Para o administrador, a paquera é um esporte muito mais saudável que o cooper. Aliás, ele acha cooper uma coisa perfeitamente imbecil. Correr para não morrer. Mas precisa acelerar. Já são cinco da tarde e sua mulher chega por volta das oito da noite. Ela não deixa a desejar. Pelo contrário: faz o padrão top model, tem curvas milagrosas e é de uma simpatia irresistível. Mas o instinto galináceo bate mais forte no coração da figura. Se não parte para a aventura da azaração, periga cair em estado de profunda melancolia.

Perdido o monumento nórdico, melhor seguir em frente. Passa o Conjunto Nacional, evitando as possibilidades infinitas do local, que tem lojas, um cinema, a megalivraria Cultura e suas satélites, exposições permanentes no saguão, as malhadoras da Bio Ritmo – academia gigante --, as meninas da Contact, empresa de telemarketing, que chegam e saem em revoada.

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O Conjunto Nacional foi construído pelo empreendedor argentino José Tjurs, com o dinheiro fácil do Banco do Brasil no governo do amigo JK. Em 1952, quando comprou a mansão da família Horácio Sabino, o sonho de José Tjurs era dar à Paulista um toque de Quinta Avenida. E conseguiu.

O projeto, do arquiteto David Libeskind, atraiu o restaurante Fasano, que ali se instalou em 1957 com o prédio ainda em obras. Primeiro espalhou mesas pela calçada. Depois deu-lhe estilo e glamour abrindo lendário restaurante no mezzanino, onde se apresentaram gênios do show bizz como Nat King Cole e Marlene Dietrich. Em sua torre de apartamentos morou Yolanda Penteado, ícone da elegância e da classe dos quatrocentões.

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Naturalmente nada disso ocupava os pensamentos do diletante, que não deu sequer uma mirada no Center 3, o shopping que abriga no outro lado da avenida um catatau de salas de cinema ervilha e miríades de lojas, ignorando olimpicamente suas outras tantas possibilidades.

Keep moving. Opta pelo espaço aberto. Atravessa em largas passadas a alameda ministro Rocha Azevedo.

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Está ansioso demais com o tempo que lhe resta. Também não contempla, no fim de tarde, o resto de Mata Atântica ao seu lado, o Parque Trianon, um mini-Central Park, obra do governador Lucas Nogueira Garcez também no início dos anos 1950, hoje cercado por grades, como todos os parques da cidade; ou para perceber os movimentos furtivos de executivos muito bem vestidos embrenhados naquela mata, em meio a esculturas, à procura de garotos de programa – coisa que já deu num pavoroso crime sexual – que obrigou o Parque Siqueira Campos (seu nome oficial) a fechar a partir das 6 da tarde.

Atravessa a Paulista (ela tem 48 metros de largura) rumo ao Museu de Arte Moderna de São Paulo, o Masp. Uma espécie de quintal do administrador. Sabe tudo do museu. Fez um verdadeiro curso intensivo, ali e pela internet, para atrair as gatas para o seu garfo e faca. O Masp tem pinacoteca, videoteca, filmoteca e xoxoteca.

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Manda o papo segundo o grau de interesse da interlocutora. Tem algo a dizer para qualquer uma que esteja examinando as obras ali expostas: estrangeiras – Rafael, Ticiano, Renoir, Van Gogh, Matisse, Toulouse-Lautrec, Modigliani, Goya, El Greco, Rembrandt, Diego Rivera, Lasar Segall; ou brasileiras – Anita Malfati, Di Cavalcanti, Flavio de Carvalho, Portinari...

Se espanta com a própria retórica ao despertar real curiosidade da garota:

“Sabe, o Assis Chateubriand tosquiava os ricos. Era uma espécie de Robin Hood das artes. Se um rico não doava uma obra para o museu, ele caía de porrada nos seus jornais, televisões e revistas. Aconteceu com velho senador José Ermírio de Moraes. Outros, como o deputado Adib Chammas, que foi cassado por corrupção, morriam com a grana no ato.”

Sabe como o Masp nasceu? Ele conta.

“Esse prédio levou 12 anos pra ser construído, de 56 a 68. Foi inaugurado no dia 7 de novembro, antevéspera do AI-5. Quem cortou a fita inaugural foi a rainha Elizabeth, da Inglaterra.”

Isso tem história, menina!

“O professor Pietro Maria Bardi, pai do Masp, era amigo de Mussolini, e quem concebeu tudo foi a mulher dele, Lina Bo Bardi, uma arquiteta modernista italiana. Ela queria manter a vista da Paulista, que fica numa colina. Com um vão livre de 80 metros, o maior da América Latina, mantendo esse estrutura pousada em quatro pilares laterais. Um milagre! Quem tocou essa loucura foi o talentoso professor José Carlos Figueiredo Ferraz, que depois se tornaria prefeito de Sampa.”

O administrador plantou, plantou, mas não levou. Jogou a rede em três peixões. Todas ouviram com atenção a lengalenga do dublê de Don-juan e guia turístico, chegaram a tomar um suco com ele, mas vazaram bonito. Não pense que isso o abalou. Ele é ardoroso adepto da lei das probabilidades, criada por Assis Chateaubriand, o criador do Masp: de dez cantadas dadas, uma pode dar liquidez.

Quando a noite vem, depara-se de novo com o imenso vão livre, que se debruça sobre a avenida 9 de Julho, coalhado de casais de namorados gozando da paz que o quilométrico banco de concreto aparente dá, aparentemente feito para isso mesmo. Mas o tempo ruge, como dizia o folclórico presidente do Corinthians, Vicente Matheus. O nosso perseguidor de perseguidas precisa dar o fora pra chegar em casa sem dar bandeira, sem melar a paz doméstica. E, iluminado, decide ali o próprio destino:

“Um dia vou ser inspetor de bunda na avenida Paulista, como o Darcy Ribeiro era na avenida Atlântica.”

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