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“Bolsonaro explora o complexo de vira-latas nacional”, diz Marcia Tiburi

“Bolsonaro não existiria se nós não tivéssemos um tremendo complexo de vira-lata”, disse a filósofa ao fazer uma análise psicológica do país à luz de seu novo livro “Complexo de vira-lata: Análise da humilhação colonial”. Assista

Marcia Tiburi (Foto: Brasil 247)

Por Victor Castanho, 247 Autora de uma série de livros sobre a ascensão do fascismo no Brasil, a professora e filósofa Marcia Tiburi está lançando uma nova obra em que trata de um tema central da psique do País: o sentimento de inferioridade dos brasileiros em relação ao resto do mundo. “O complexo de vira-lata é a grande questão nacional do Brasil”, disse Tiburi em entrevista concedida ao jornalista Mario Vitor Santos no programa Forças do Brasil da TV 247. A autora explorou informações inéditas sobre seu novo livro Complexo de vira-lata: Análise da humilhação colonial da filósofa brasileira e destrinchou as relações entre o vira-latismo brasileiro e a ascensão de Bolsonaro. 

 O livro Complexo de vira-lata: Análise da humilhação colonial

“Esse é um livro despretensioso, mas um livro muito honesto e sincero. Busca dar um passo além: fazer uma psicanálise da nossa cultura brasileira”, disse a professora universitária da Université Paris 8. “O complexo de vira-lata é capaz de explicar os nossos processos de subjetivação, ou seja, é capaz de justificar o que é feito de nós e o que nós fazemos com os outros”, acrescentou.A formulação que compara a psique brasileira à de um vira-lata surge com um ensaio de Nelson Rodrigues de 1958 em que o dramaturgo discorre sobre futebol. Rodrigues escreveu que “por ‘complexo de vira-latas’ [entende ele] a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos ‘os maiores’ é uma cínica inverdade”.

Márcia, através de uma leitura próxima, busca aprofundar significativamente essa postulação. A filósofa sistematiza esse complexo de inferioridade e enumera as suas principais características:

  • Pessimismo obtuso e esperança frenética
  • Otimismo inconfesso e envergonhado
  • Pudor de acreditar em si mesmo ou falta de fé em si mesmo
  • Humilhação nacional ou da humildade espetacular
  • Dor de cotovelo incurável 
  • Pânico da desilusão
  • Inferioridade auto-promovida perante o mundo ou deixar-se tratar por pontapés

A filósofa busca as raízes históricas do vira-latismo e mostra como muitas delas ainda se fazem presentes na atualidade. “Eu falo da colonização não como uma questão histórica e estanque, eu falo como uma questão originária. A colonização continua hoje na história do presente. Existem colonizadores externos (neoliberais, grandes banqueiros, donos de grandes empresas, países imperialistas, etc.) mas existem também os colonizadores internos. A lógica da humilhação estrangeira também funciona dentro de nosso próprio país”, afirma Tiburi. A filósofa explora essa noção da humilhação ao falar da ascensão Jair Bolsonaro. 

 Bolsonaro como efeito do complexo de vira-lata

 “Bolsonaro não existiria se nós não tivéssemos um tremendo complexo de vira-lata. Se a gente se amasse um pouco, não deixaríamos uma coisa dessas acontecer”, diz Márcia. A filósofa defende a tese de que o grotesco, o esdrúxulo, o estapafúrdio da fala de Bolsonaro usufrui da baixa auto-estima da população para ter sucesso. “Bolsonaro atua em cima do complexo de vira-lata nacional. Se faz com que as pessoas se submetam, com que se deixem ser tratadas por ponta-pés”, afirma a filósofa.

Ao remeter ao dia 17 de abril de 2016 em sua fala, Márcia assegura:  “quando Bolsonaro faz seu discurso, ele fala ‘em nome de Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff’. Dessa forma, ele dá a entender que está dizendo ‘eu sou o sujeito que vai apavorar todo mundo, eu boto medo em qualquer um’”. A filósofa afirma que essa referência à violência toca no cerne do costume brasileiro de ser humilhado e aí entra o complexo de vira-lata com força: “O Brasil é um país sadomasoquista. O complexo de vira-lata remete à essa capacidade de ao mesmo tempo bancar o sádico e também ser o sujeito no qual se provoca dor”.

Para Márcia, o discurso de Bolsonaro soube usufruir da mentalidade colonial que busca na humilhação uma identidade e uma resposta para sentimentos negativos. “Bolsonaro conquista as pessoas pelo ressentimento. Ele extravasa ressentimento e ódio e várias pessoas vão se relacionar com ele”, disse Márcia.

Ainda sobre a gênese de Bolsonaro, Márcia remete à Alemanha nazista: “quando a Alemanha elegeu Hitler, ele usufruiu desse lado humilhado dos alemães depois da primeira guerra mundial. O auto-desprezo que os brasileiros também têm foi seu palanque”. Da mesma forma que Hitler utilizava do espetáculo para cativar seu público, Bolsonaro aposta no performativo para acumular capital midiático: “Ele que não tem conteúdo, ele que não tem nada, ele que só tem ódio e grosseria, projeta-se para as pessoas através da agressividade. Assim ele toma as mídias sociais”. Bolsonaro, portanto, usufruiu de um povo acostumado aos ponta-pés e humilhação para se expor como figura que humilha e chuta.

No entanto, ao falar de Lula, a filósofa demonstra como o ex-presidente “opera em outra chave, movendo os afetos alegres”. Segundo Márcia, “Lula move e comove o amor e sentimentos positivos”. Diferentemente de Bolsonaro, Lula transcende o vira-latismo por ser, como diz a filósofa, “uma pessoa que abraça, uma pessoa que toca as pessoas” e não as chuta e humilha. O ex-presidente nega, segundo Márcia, a inércia histórica que nos leva à humilhação por “conseguir condições concretas para que as pessoas possam realizar seus sonhos, suas esperanças”. Sua eleição é uma das formas de desconstruir o circuito sadomasoquista do vira-latismo. 

Como solucionar o vira-latismo?

 “Embora importantes lições tenham surgido desse momento de sofrimento [com Bolsonaro], é necessário que elaboremos uma análise crítica. Sofrimento não elaborado é só sofrimento”, afirma Márcia. A filósofa afirma que para essa elaboração é necessário que recriemos a cultura.”O ministério da cultura vai ser a coisa mais importante no país em um possível governo Lula”, disse.

Tiburi afirma que “cultura não é simplesmente a produção de bens culturais, mas cultura é a criação das bases estruturadoras de um país, ou seja, de suas bases mentais e psíquicas”. A filósofa vê um papel social nas produções artísticas e sustenta que “se quisermos um outro país com outra história, com subjetividades críticas e analíticas e capazes de continuar com um projeto possível de país, precisaremos de instituições fortes em um projeto de valorização da cultura e educação nacionais”.

Márcia afirma que “precisamos construir pragmaticamente um projeto de país que valorize educação e cultura. Sem isso, não haverá Brasil”. Com um tom fúnebre, porém, a filósofa cauciona: “eu estou, claro, pressupondo que vai sobrar alguma coisa até Bolsonaro cair”.

Assista à entrevista: