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Brasil

Florestan Fernandes: a revolução burguesa ao estilo brasileiro

Nesta quarta-feira, 22 de julho de 2020, completam-se cem anos de seu nascimento. Veja a biografia de Florestan Fernades

Florestan Fernandes (Foto: Reprodução)
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Haroldo Ceravolo Sereza, Opera Mundi - Na década de 1970, ao analisar a consolidação do capitalismo no Brasil, o sociólogo Florestan Fernandes mostrou como esse processo não favoreceu o florescimento de uma ordem democrática, ainda que burguesa. Em A revolução burguesa no Brasil, Florestan afirmava que o país parecia estar, assim, sempre sob o encanto permanente da solução autocrática.

Nos anos 1980, Florestan seria um político combativo, participante da Assembleia Constituinte, e um dos pensadores mais críticos, à esquerda, sobre o seu texto final. Lançou um livro chamando-a de A Constituição inacabada, em que apontava as contradições do texto que avançava em termos populares e democráticos em diversos pontos, mas mantinha estruturas estatais autoritárias e que permitiria o retorno de conflitos destrutivos na sociedade brasileira.

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Hoje, 22 de julho de 2020, completam-se cem anos de seu nascimento. Opera Mundi publica aqui uma breve biografia de Florestan, editada originalmente pela revista Biblioteca Entrelivros, em 2007.

Sobrancelhas cerradas, olhar firme em direção ao futuro, um sorriso contido com força cuidadosamente controlada dos músculos faciais. A foto não mente: há muita segurança e nenhuma ironia no olhar do jovem Florestan Fernandes, que se formava na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da também jovem Universidade de São Paulo em 1943. Ele completara 23 anos, a universidade não tinha ainda uma década de vida, mas os dois, às vezes unidos, às vezes distantes, tomariam parte nos processos de modernização cultural, social, política e econômica que o país conheceria.

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O recém-formado sociólogo, nos anos seguintes, constituiria uma obra que permite incluí-lo no elenco dos grandes intérpretes do país, ao lado de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior, graças a seu combativo livro A revolução burguesa no Brasil e a outros que se transformaram em marcos na história do pensamento brasileiro, como A função social da guerra na sociedade tupinambá e A integração do negro na sociedade de classes.

Do ponto de vista do rapaz, aquela formatura tinha um significado especial. Representava a saída definitiva do poço de sua infância difícil, marcada pelo trabalho como ajudante de barbearia, engraxate, auxiliar de alfaiataria e outros bicos que, frequentemente, foram não apenas sinônimo de sustento, mas também de humilhação. A luta da vida, muitas vezes, deixou de ser metáfora para o garoto e se traduziu em embates físicos em que sua força muscular era insuficiente, e Florestan precisou se armar para enfrentar valentões. Contra um engraxate que queria vê-lo longe de seu ponto, Florestan usou uma lata de sapólio; contra outro, enfiou giletes na ponta de uma bota e, com um chute, cortou-lhe a canela.

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Quando os operários paulistanos saíram às ruas festejando a vitória da Revolução de 1930, comandada por Getúlio e seus tenentes, Florestan, então com apenas dez anos, juntou-se às manifestações espontâneas e esperançosas. A história, assim, entrava, pela primeira vez, pelo menos de acordo com as memórias do sociólogo, na vida de Florestan Fernandes. Filho de uma lavadeira portuguesa, ele já havia sido obrigado a abandonar a escola para trabalhar. Apesar de apadrinhado por uma família tradicional paulistana, os Bresser, patrões de sua mãe quando nasceu, Florestan teve a sua primeira formação marcada pela experiência lumpemproletária, como ele próprio afirmaria, uma experiência marcante: “Eu nunca teria sido o sociólogo em que me converti sem o meu passado e sem a socialização pré e extraescolar que recebi, através das duras lições da vida”, escreveu certa vez. “Eu não estava sozinho. Havia a minha mãe. Porém a soma de duas fraquezas não compõe uma força. Éramos varridos pela ‘tempestade da vida’ e o que nos salvou foi nosso orgulho selvagem.”

Em 1941, Florestan chegou à universidade depois de se formar num curso de madureza, o equivalente ao que chamamos hoje de supletivo ou ensino de adultos. Antes, trabalhava como garçom num bar do centro de São Paulo, o Bidu, onde discutia história antiga com os visitantes, muitos deles jornalistas ou intelectuais ligados aos dois novos centros de debate que São Paulo construíra: a Escola Livre de Sociologia e Política e a Universidade de São Paulo, cujas fundações ocorreram, respectivamente, em 1933 e 1934. Outro cliente do bar arrumaria um emprego de entregador de amostras de laboratório, o que Florestan podia fazer nas horas vagas, abrindo espaço em seu dia para as horas de estudo.

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A dedicação de Florestan foi o fator mais importante para a ascensão social e cultural. Mas ele também contou com uma conjuntura bastante favorável. De certa forma, Florestan é um sucesso resultante de alguns fracassos. O mais importante deles ocorrera com a fundação da USP. Os cursos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras criada nos anos 1930, não atraíram os filhos da elite paulistana, para quem a universidade havia sido pensada.

Os jovens poderosos da cidade davam preferência aos cursos tradicionais — medicina, direito e engenharia, de faculdades que foram agregadas à USP, mas mantiveram grande independência. Os alunos dos cursos como filosofia, física e ciências sociais sairiam de camadas menos integradas. Os números dessas primeiras turmas da USP mostram uma grande presença de mulheres e filhos de imigrantes, o oposto do que se podia verificar nas faculdades tradicionais. São razoavelmente comuns as histórias de intelectuais autodidatas nessa época, como Mário Wagner Vieira da Cunha e Maurício Tragtenberg. Tragtenberg, que, aliás, participou, com Florestan, de outro insucesso, o Partido Socialista Revolucionário (PSR), um pequeno grupo oriundo do PCB que se assumiu como uma dissidência trotskista e tinha como principal liderança o jornalista Hermínio Sacchetta, na época diretor de redação da Folha da Manhã.

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O PSR tentou organizar, mas não foi muito adiante, uma coligação de esquerda antigetulista em 1946, com um programa bastante avançado. Porém, para Florestan, o partido foi de grande importância, ao lhe encomendar uma tradução da Contribuição à crítica da economia política, abrindo espaço para que o jovem intelectual lesse um autor que ainda não frequentava as aulas da universidade: Karl Marx.

Numa entrevista, publicada no livro A condição de sociólogo, Florestan atribuiu ao amigo Antonio Candido a explicação mais irônica para o talento que demonstrou já durante a graduação. Florestan teria uma bunda grande e resistente, capaz de aguentar tantas horas de estudo quantas fossem necessárias. Essa dedicação seria fundamental para que os novos mestres o vissem como um dos mais fortes candidatos a assumir os postos que os professores estrangeiros começaram a deixar vagos, com o retorno à Europa.

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Florestan muito rapidamente seria convidado para ser o segundo-assistente de várias disciplinas assim que concluiu a graduação. Acabou aceitando a vaga oferecida por Fernando de Azevedo e, com Candido, virou assistente de Sociologia II na USP. Florestan não ficou contente com a formação que obtivera como aluno de graduação na USP e decidiu fazer seu mestrado na Escola de Sociologia e Política, considerada mais “prática” e, supostamente, mais afeita às lições da sociologia norte-americana do que à influência francesa. Começa aí a construir uma trajetória intelectual própria, combinando diversas correntes teóricas (marcadas especialmente pela ideia do sociólogo como um planejador social, como queria Karl Mannheim, mas também por Marcel Mauss, Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx) numa reflexão crítica e criativa, muitas vezes acusada injustamente de pouco elegante em termos estilísticos.

Seus primeiros estudos concentram-se nas pesquisas sobre os índios tupinambá, personagens importantes dos primeiros momentos da colonização do Brasil. A organização social dos tupinambá e A função social da guerra na sociedade tupinambá provocaram uma grande virada na antropologia. Até esses estudos, acreditava-se que não era possível estudar com tanta profundidade sociedades que não mais existiam, ou seja, a antropologia estava limitada, de certa forma, à coleta direta e contemporânea de material de campo. Florestan, através da leitura crítica de inúmeras fontes materiais e, sobretudo, de relatos de viajantes, mostrou que era possível compreender o cotidiano e a lógica da sociedade tupinambá séculos após os registros – e, o que é tão importante quanto, por meio de registros não especializados, feito por gente que viveu num tempo em que a ideia de antropologia não fazia nenhum sentido.

Florestan, com outros colegas, assumiu a missão de transformar as ciências sociais em ciência de fato: andava de avental pelos corredores da universidade, estabelecia critérios de avaliação rigorosos, adorava discutir não apenas os objetos de suas reflexões, mas também os métodos utilizados. Quis superar o beletrismo e o ensaísmo que marcavam a produção de muitos de seus colegas de profissão e de universidade. Um colega de departamento, Ruy Coelho, brincava que Florestan era uma ilha de sociologia cercada de literatura por todos os lados. Coelho, como Antonio Candido, se notabilizaria pelos estudos literários, enquanto a erudição de Florestan seguiu outro rumo. Caminhava para a formação do que, depois, convencionou-se chamar de Escola Paulista de Sociologia, em que se destacaram nomes como Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Gabriel Cohn e Maria Sylvia de Carvalho Franco, entre outros.

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