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Brasil

Judiciário e autoritarismo

Não será eliminando recursos e suprimindo garantias da cidadania que se combaterá com eficiência a morosidade da Justiça

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Há um rançoso mantra judiciário, nascido no núcleo mais burocrático da magistratura, especialmente naquele da cúpula dos Tribunais Superiores, que martela se hospedarem nos recursos manejados pelas partes todos os males da Justiça brasileira. Carrega-lhe toda responsabilidade pela morosidade do nosso paquidérmico Poder Judiciário e encara o sagrado direito de revisão dos julgamentos em segundo grau como mero instrumento de que se servem as partes (e aí se esquecem de incluir o Estado, disparado o maior cliente dos Pretórios) para procrastinarem o julgamento final da demanda. Credita também às apelações dos cidadãos que, cônscios da falibilidade humana, não se conformam com julgamento único, de um só homem (ou mulher), em grau inferior e por isso recorrem pleiteando a reapreciação do caso, a tão decantada impunidade nacional. Apregoa que os juízes brasileiros, especialmente os da primeira instância, que se acham no estágio inicial da carreira, deveriam ser mais prestigiados, pois, afinal, teriam preparo suficiente para promover Justiça, e suas decisões só excepcionalmente deveriam se submeter à revisão dos Tribunais. Concepção, sem dúvida, autoritária.

Passando desse discurso à prática, os Tribunais passaram a de tudo fazer para evitar julgar recursos. Declararam guerra às apelações e, de modo específico, aos recursos não-ordinários, que restaram demonizados no ambiente leigo. As Cortes não querem mais eliminar os litígios pelo julgamento com aplicação da lei, mas tudo têm feito para matar os processos que os veiculam... Qualquer falha na formação física dos autos, por mais singela e passível de conserto que seja, mesmo que gerada por lapso de funcionário do próprio Judiciário, passou a ser motivo suficiente para não se conhecer de um recurso, ignorá-lo. Até mesmo os protocolados por antecipação, ou seja, antes do início formal do prazo que a lei assina, são recusados, pois são considerados...fora do prazo! Em outra vertente, entregaram-se a julgar - quando se dispõem a julgar - recursos em bloco, aos milhares, de uma única vez, desconsiderando teses peculiares e especificidades de cada situação vertida nos autos. Deram-se, também, para condenar as partes ao fundamento de litigância de má-fé quando têm por inconsistentes seus reclamos, os quais não estariam a seguir a linha jurisprudencial fixada pelos Tribunais. Procura-se inibir o sagrado direito de recorrer com a ameaça de sanção econômica. A opressão não está apenas voltada contra os advogados, meros representantes das partes, mas aos cidadãos, que vêem agigantar-se a possibilidade de se tornarem vítimas de irreparáveis erros judiciários, máxime nestes tempos em que o ensino superior já não é o mesmo.

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Nessa toada, elogiam-se nos pretórios os projetos dos novos códigos de processo por conferirem amplos, gerais e irrestritos poderes aos juízes de primeira instância, tolhendo o efeito suspensivo da apelação, fazendo com que sentenças do grau mais inferior possam ser imediatamente executadas (se contiverem erros, isso significa que o erro terá eficácia imediata). A última investida foi a proposta do presidente do STF que quer modificar a Constituição para se dificultar ainda mais a subida de recursos às Cortes Superiores. Mas, se os Tribunais Superiores existem exatamente para reexaminar as causas em derradeiro grau, colegiado, qual seria então a sua ocupação com a abolição dos recursos que satanizam? Uma jurisdição de elite, voltada para as “grandes causas”, talvez as governamentais? E o povo?

A alegada ambiguidade segurança/rapidez dos processos judiciais não é nova, nem exclusiva do Brasil. O direito ao recurso, entretanto, é uma conquista da sociedade moderna, garantia de todos, contra erros e arbitrariedades (cada vez mais freqüentes) cometidos por magistrados. Tome-se o eloquente - e lamentavelmente crescente – exemplo da censura à imprensa por meio de decisão judiciária no nosso país. Alguns juízes e tribunais têm, através de seus éditos e em certos temas, censurado a imprensa que a Constituição quer livre, sobrepairante a qualquer outro valor (a responsabilidade pelos erros de imprensa deve vir sempre a posteriori). Como se impedir o recurso de urgência que visa a desconstituir tamanho autoritarismo contra a liberdade de expressão? Impensável!

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Para quem crê que são os recursos judiciais a causa única da tardança no advento da sentença final, é experimentar uma injustiça na pele e restar convicto de que alguma demora se mostra altamente justificável pela necessidade de uma decisão que seja real e intrinsecamente justa. Foi-se o tempo - conforme anota o jurista Eduardo Couture -, em que todos os julgamentos tinham um caráter sacro e religioso, como se o juiz fosse expressão terrena de uma divindade, refletindo os seus vereditos a infalibilidade do deus representado. Juízes erram. Há que se corrigir os seus erros, sempre e sempre.

Se é verdade que algumas partes se utilizam de recursos para tornarem o processo mais lento, também é certo, na contraface dessa realidade, que para a grande maioria das pessoas a existência de um processo judicial é motivo de aflição, máxime no caso do processo-crime, em que, se para culpados a demora do processo pode representar benefício temporário, para os inocentes (e mesmo para culpados recolhidos em estabelecimentos prisionais por tempo maior do que a pena que merecem), representa grande tormento e angústia.

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Não será eliminando recursos e suprimindo garantias da cidadania que se combaterá com eficiência a morosidade da Justiça. Que tal começar por recrutar juízes e pessoal de apoio suficientes e compatíveis com a atual demanda de justiça da sociedade e incorporar toda tecnologia disponível aos serviços forenses?

Não se venha argumentar com decisões em massa e padronizadas, eis que sentenças não são automóveis que podem ser, desde Henry Ford, fabricados em série... Direito está muito longe de ser ciência exata, cartesiana. Posições momentaneamente dominantes existem e sempre existirão, mas não podem ser vistas como dogmas eternos e imutáveis. A liberdade de atacar a “jurisprudência dominante” é expressão de uma sociedade moderna, plural e democrática, além de constituir sinergia para a evolução do pensamento jurídico e dos valores sociais. Toda unanimidade é burra, dizia Nelson Rodrigues. Sagrado, pois, deve ser o direito de se questionarem transitórios clichês judiciários.

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E suma, aos recursos e aos advogados não pode ser mandada a conta do atraso nas decisões do Judiciário. O tema é mais complexo do que sugere essa visão simplista e de superfície, que se exercita mais a partir da burocracia interna dos Tribunais do que da perspectiva dos direitos e garantias dos cidadãos, que são, a final, para quem a Justiça existe.

Oportuna aqui a advertência de Calamandrei: estejam certos de que, mesmo o magistrado mais avesso aos recursos e crítico do incansável trabalho dos advogados mais combativos, no dia em que estiver envolvido em um conflito próprio, buscará exatamente aquele profissional que, por intensa combatividade, é o que mais utiliza de todos os meios recursos processuais previstos na lei para buscar realizar a efetiva Justiça.

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Marcos da Costa é Vice-Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil - Seccional de São Paulo e Presidente da Comissão de Assuntos do Poder Judiciário da entidade.

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