Lula não está sozinho, diz João Paulo Rodrigues, do MST
"É o começo de uma jornada para retomar o crescimento econômico, combater a desigualdade e fazer as reformas estruturais", afirma o representante do movimento
Por Sergio Ferrari, El Cohete à la Luna - Desde a posse de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente, o Brasil vive uma nova etapa tão rica e desafiadora quanto complexa. Como garantir que não se repitam os erros cometidos pelo Partido dos Trabalhadores em seus governos anteriores? Como garantir que esse novo momento político fortaleça os movimentos sociais desse gigante sul-americano? Questões centrais desse diálogo com o líder camponês João Paulo Rodrigues, que, com apenas 43 anos, já é membro de destaque da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), um dos atores mais importantes do continente latino-americano. Rodrigues teve papel central no processo pré-eleitoral, pois representou o MST e os movimentos sociais na coordenação da campanha presidencial de Lula.
No dia 1º de março se cumpriram três meses desde a posse de Lula. Para avaliar cada novo governo em qualquer país do mundo, os primeiros 100 dias são sempre mencionados como parâmetro indicativo. Qual a sua avaliação desses primeiros 100 dias no Brasil?
Nossa avaliação desse primeiro período é positiva. Devemos lembrar que o Brasil viveu uma profunda crise a partir de 2015. Foram sete anos muito complexos, com repetidos ataques à democracia; a recessão econômica e a crise social, que causaram um grande aumento do desemprego e o regresso a uma situação de fome de milhões de compatriotas, tiveram um grande impacto. Houve também um processo de destruição do Estado de bem-estar social, que atingiu, em particular, as instituições que operam e executam políticas públicas de benefício e impacto social. Isso não pode ser reorganizado da noite para o dia. Vai levar tempo. Ou seja, após esses primeiros 100 dias de gestão, estamos no início de um caminho que tem objetivos claros: retomar o crescimento econômico, combater as desigualdades sociais e fazer as reformas estruturais necessárias para resolver os problemas das pessoas, particularmente dos sectores mais necessitados.
A oposição, sempre agressiva
Nas últimas eleições, em 30 de outubro, o agora ex-presidente Jair Bolsonaro perdeu por uma margem pequena, de menos de 2%. Qual é a atitude atual da oposição?
Lula foi eleito como expressão de uma ampla frente democrática construída para ser oposição ao governo Bolsonaro. Hoje, o presidente está muito firme, com uma posição mais à esquerda, tanto política quanto economicamente. No entanto, não se pode ignorar que essa frente ampla é composta por forças políticas e sociais de esquerda, centro e até de direita, com diferentes projetos. Não se pode negar que há uma disputa dentro dessa frente acerca das visões do governo sobre diversos temas, como a economia, os preços dos combustíveis, a política agrária e fundiária.
A atual oposição ao governo é, acima de tudo, a extrema direita. É um setor muito ideologizado e radical. Isso provocou os acontecimentos de 8 de janeiro na Praça dos Três Poderes, em Brasília, quando ocorreu aquele verdadeiro atentado contra a República e a democracia, em sua maioria repudiado pela sociedade.
Com a derrota eleitoral, o bolsonarismo passou por um momento de refluxo e perdeu forças, mas as ideias e os valores conservadores e o aparato de comunicação associado são muito fortes e têm um grande impacto na sociedade. Por isso, é necessário que as forças democráticas protagonizem uma intensa luta política, social e econômica para derrotar o bolsonarismo e seu projeto conservador e retrógrado no próximo período.
Os movimentos populares, protagonistas
Do outro lado do cenário nacional, na base, os movimentos sociais respiram um novo ar político a partir de 1º de janeiro de 2023?
Para os movimentos populares e a sociedade brasileira, o clima mudou com a posse de Lula. O sentimento é de que "o pior já passou", mas que é preciso manter a mobilização e a participação para obter melhorias e conquistas. Lula formou uma boa equipe de governo. Abriu espaços para importantes lideranças da sociedade e defende uma agenda progressista nas áreas econômica e social. Além disso, protagonizou diferentes eventos simbólicos, como a visita, em 21 de janeiro –uma das primeiras viagens de Lula ao interior do país– ao povo Yanomami, em Roraima, que havia sido praticamente condenado ao genocídio pelas políticas de Bolsonaro. Foi um sinal claro de que, para o novo governo, a prioridade será, sem dúvida, a atenção aos setores que foram mais excluídos pelas políticas ultraliberais do governo anterior.
Nos governos anteriores do Partido dos Trabalhadores (Lula e Dilma Rousseff), os movimentos sociais fizeram críticas fundamentais à "tibieza" da gestão em questões sensíveis. Por exemplo, o MST criticou fortemente que a reforma agrária não havia avançado. Movimentos indígenas e ambientalistas criticaram o PT pelas poucas conquistas em suas respectivas áreas. Existe um novo tipo de relação entre o atual governo Lula e os movimentos sociais, ou continua a ser levantada a preocupação de que os erros do passado se repitam?
Amadurecemos muito, tanto os movimentos populares, os partidos políticos como o próprio Lula. A presidência de Lula de 2003 a 2010 foi a primeira experiência de um governo progressista com um presidente emergindo da classe trabalhadora. Foi um tempo de aprendizado. A partir daí o país passou pelo golpe de 2016 (golpe parlamentar de Dilma Rousseff), a perseguição e prisão de Lula e o surgimento de uma nova expressão da extrema direita, com a eleição de Bolsonaro, em 2018. Constato que existe hoje uma compreensão muito maior dos desafios políticos. Do ponto de vista dos movimentos populares, fica claro que é preciso conquistar a sociedade para se movimentar por um programa de mudança social; lutar para que nossos interesses sejam levados em conta, e defender o governo contra as pressões da direita. Cabe ao governo dialogar com os movimentos, avançar nas agendas definidas como prioritárias e estimular uma maior participação política da sociedade para construir uma nova forma de governança.
Quais são as principais reivindicações do MST para essa nova etapa? A reforma agrária ainda é relevante?
O MST está alinhado com a agenda do presidente Lula de colocar no centro o combate à fome e à pobreza. Acabar com a fome requer assistência aos mais vulneráveis e uma política de produção de alimentos de qualidade, além de propostas de redistribuição social de renda. O primeiro objetivo promovido pelo MST e que faz parte de um programa emergencial é o assentamento de famílias acampadas. Há mais de 100.000 famílias vivendo em acampamentos, muitas das quais passaram 10 anos em tendas cujo único telhado é plástico preto espesso. O governo tem que cadastrá-los e elaborar um calendário para assentá-los. Cerca de 30 mil famílias estão em áreas de pré-assentamento que não foram efetivadas porque o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não concluiu o processo de inscrição legal. A segunda agenda refere-se à agricultura familiar e às famílias assentadas, que garantiram a produção de alimentos básicos mesmo durante o governo Bolsonaro, apesar de ele ter desmantelado totalmente a gestão pública. É preciso retomar as políticas de produção, crédito, cooperação, industrialização e comercialização para favorecer os assentamentos.
Avançou-se em direção a uma real unidade dos atores e dos movimentos sociais brasileiros, ou cada um está agindo por conta própria no cenário atual?
Em torno da oposição a Bolsonaro e da candidatura e eleição de Lula desenvolveu-se a maior unidade política dos movimentos populares desde a década de 1990. Essa unidade política é real e avançou programática e taticamente. Em março, realizamos uma grande plenária com todos os movimentos populares e forças progressistas, na qual discutimos as propostas comuns e elaboramos um calendário de ações conjuntas para o primeiro semestre deste ano.
Foto: Mulheres do MST atuantes em suas demandas. Foto: Gustavo Caetano.
Desafios latino-americanos e globais
A América Latina enfrenta uma fase complexa e, ao mesmo tempo, desafiadora, com a presença de vários governos progressistas. Quais são os principais desafios hoje?
A América Latina vive uma nova etapa com a eleição de governos progressistas no Brasil, no México, na Argentina, no Chile, na Bolívia e especialmente na Colômbia, além da resistência histórica de Cuba e Venezuela.
Isso mostra que os povos do continente rejeitam as novas expressões políticas do programa neoliberal e do projeto do imperialismo estadunidense. No entanto, é necessário avançar na organização popular e na luta ideológica em torno a um programa anti-imperialista e antineoliberal para apoiar e fazer avançar essas experiências progressistas. Com o fortalecimento da extrema-direita e com a crise das democracias liberais, que se expressa em golpes de Estado, não basta ganhar eleições. É necessário haver povos organizados, politizados e mobilizados para promover governos progressistas e lutar contra a extrema-direita e as forças do neoliberalismo.
Tudo isto num mundo que sofre as consequências de uma terrível guerra na própria Europa.
A crise do capitalismo que se arrasta desde 2007/2008 tem implicações políticas, económicas, sociais e geopolíticas. As contradições no cenário internacional se agravaram com a crise global, com o avanço da presença econômica da China, com a reação dos Estados Unidos e da Europa e o fortalecimento da extrema direita em muitos países do planeta. A expansão da OTAN para o leste provocou a resposta da Rússia com a guerra na Ucrânia. É necessário encontrar um caminho político para a paz. Isso depende de sinais que devem vir de todas as partes e que devem incluir a retirada da OTAN da cena militar europeia e o término da guerra na Ucrânia.
Publicado originalmente em espanhol por El Cohete à la Luna e traduzido por Rose Lima.