O infeliz destino dos que nascem pobres
Aquele paciente, aquele carpinteiro, aquele homem era pai de duas crianças: uma de 5 e outra de 12 anos. Portanto, tinha mulher e filhos para sustentar. E um tumor maligno do tamanho de uma laranja
Fui um menino rico. Sou o último de 9 filhos. Meus irmãos mais velhos conheceram a pobreza. Eu não. Quando nasci meu pai já não era o jovem que fazia bico como porteiro no baile noturno do clube do bairro para aumentar seus parcos rendimentos de trabalhador do comércio e assim colocar comida no prato de sua vasta prole; já era um próspero comerciante.
Porém, não sei o porquê, nunca me dei com os ricos. Meus amigos, na então pequenina e rural Dias D’Ávila da minha infância, eram os filhos dos(as) empregados(as) de meus pais. Eram meninos desdentados, de pele escura e olhar sagaz. Falavam um português “errado”. Andavam de pés descalços, com roupas velhas, puídas. Moravam em casas de estuque, em terrenos “de invasão”, como se dizia então, cujo piso era frio, gelado, pois de terra batida – lembro-me bem. Esses eram os meus amigos.
Diferente deles morava em casas “quentinhas”, de varandas infindas, com vastos terrenos repletos de árvores frutíferas. Eu era, para eles, como o menino rico do gibi, que eles não liam (mas eu sim). Eu tinha, e com eles compartilhava, todos os brinquedos e alegrias do mundo; tinha arraias (pipas) das mais diversas cores e feitios, para soltar naqueles céus de raro azul; tinha os fogos de artifício mais bonitos para clarear as noites escuras de São João. Eles eram meninos pobres, mas, para mim, eram apenas meus amigos.
Desde então, curiosamente e, repito, não sei ao certo o porquê, diferente de meus demais irmãos e conhecidos, sempre preferi me relacionar com os pobres. Apesar de ser um autêntico “filho da burguesia”, sempre preferi a convivência com os mais pobres: roceiros, vigias, cozinheiras, operários etc. Ainda hoje, não tenho amigos ou conhecidos nas chamadas altas rodas. Mas gosto de prosear com faxineiros, porteiros, cobradores, motoristas de ônibus etc.
Ainda hoje, já na maturidade, só ando de ônibus, trem e metrô, quase nunca de carro, que sequer possuo, e não sinto “desconforto” algum com isso. Ou melhor, sinto sim, o desconforto que todos os mais pobres sentem: o de andar no sistema de transporte público das grandes cidades que, já disse aqui, são os nossos modernos navios negreiros. E não à toa, em algumas regiões do país são conhecidos como “humilhante”.
Um dos meus poucos amigos que me restaram hoje em dia e que escapando à minha estranha “regra”, é, como eu, um, digamos, filho da elite – também filho de um comerciante –,contou-me uma triste experiência que teve recentemente em sua doída e difícil rotina no atendimento médico que realiza num centro de assistência em Salvador, que atende majoritariamente os despossuídos.
Ele, juntamente com sua equipe de seis residentes, atendera, nos últimos dias, um carpinteiro de 47 anos oriundo de uma cidade do interior da Bahia, cujo quadro clínico era de uma forte dor abdominal que já perdurava mais de seis meses. Aquela cidade do interior da Bahia poderia ser perfeitamente a Dias D’Ávila da minha infância e aquele carpinteiro um dos meus amigos da longínqua infância.
Detalhe: aquele paciente já havia sido atendido e avaliado antes por quatro outros médicos em distintas ocasiões e em outros postos de atendimento e, inclusive, feito uma endoscopia, cujo laudo nada apontara.
Novos exames foram realizados e revelaram que o pobre homem tinha um tumor maligno no estômago do tamanho de uma laranja, necrosado por uma úlcera, já com metástases espalhadas pelo pulmão – em suma, um quadro intratável, incurável.
Aquele paciente, aquele carpinteiro, aquele homem era pai de duas crianças: uma de 5 e outra de 12 anos. Portanto, tinha mulher e filhos para sustentar.
O meu amigo médico então perguntou aos seus jovens residentes, todos com tarja preta no braço esquerdo em protesto ao governo Dilma, e eu lhes estendo as suas indagações e inquietações:
1º: Como pode um ser humano com uma queixa tão importante e duradoura não ser adequadamente examinado, seguidas vezes, em 4 ocasiões distintas, por 4 médicos?!
2º: Como poderia uma endoscopia ter apresentado um laudo normal apenas 2 meses antes?!
3º: A classe médica vai tomar vergonha na cara ou vamos pedir socorro aos médicos estrangeiros?
4º: Como ficará a família; as filhas do nosso paciente, a sua mulher depois da sua morte; que alento e assistência terão?
5º: Ou os médicos deverão ser responsabilizados por terem liberado como “normal” uma endoscopia de um paciente com câncer no estômago em estágio avançado?!
6º: Afinal, de que lado está a revolta?! Por que(m) ou contra que(m) devemos colocar a tarja preta?!
Ou como indagou o psicanalista e cronista Contardo Calligaris em soberbo artigo publicado em 27.06, na Folha: Qual baderna?
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