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Brasil

Orwell e a gênese do mensalão

A alegoria-política “1984” contém um manual sobre como um grupo organizado pode tomar de assalto um Estado em nome dos interesses coletivos

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O jornalista e escritor inglês Eric Blair emplacou seu pseudônimo, George Orwell, como um dos patriarcas da ficção científica. Ele deve ser também analisado como um dos mais importantes pensadores políticos do Século XX. A fábula infantil Animal Farm, publicado no Brasil com o título de "A Revolução dos Bichos", marcou profundamente a esquerda internacional organizada ao denunciar como Stalin e sua camarilha usurparam o poder em nome da coletividade. Três anos depois, em 1948, Orwell terminou de escrever sua obra mais conhecida, 1984 (Editora Nacional: SP, 1998), uma alegoria política que denunciava a explosiva combinação de um Estado forte com as tecnologias de comunicações avançadas. Foi aí que nasceu o Big-Brother, sinônimo do Leviatã Cibernético, do Estado-total, que tudo vê, tudo sabe e tudo controla, como um deus onipresente, onisciente e onipotente.

Durante a guerra-fria, a obra de Orwell foi muito comentada por acadêmicos que estudavam a organização do Estado e o fenômeno do poder invisível. Com o advento da internet e o aparecimento dos cibercrimes e de personagens como Bill Gates, Steve Jobs e, mais recentemente, Julian Assenge, Orwell voltou à tona invocando a questão da privacidade. Há muito que Big-Brother transformou-se em expressão popular, banalizada em programas de exibicionismo explícito na TV. É importante ressaltar, no entanto, que o trabalho desse jornalista deve ser analisado também sob outros paradigmas.

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Para quem se propõe estudar fenômenos como a globalização e os organismos multilaterais; a geopolítica das grandes potências e os conflitos com o Oriente Médio; a economia digital e a ciber-cultura; ou ainda o crescimento fenomenal de igrejas evangélicas, de ONG's do bem ou do mal, de facções para-políticas ou de "Organizações Criminosas", como o grupo de petistas que está sendo julgado pelo Mensalão, a obra de George Orwell transformou-se no primeiro clássico a entrar no século XXI.  Vejamos o porquê.

Lúcifer Social – 1984 vendeu em cinco décadas milhões de  exemplares em todo o mundo. No Brasil, a primeira edição é de 1954. Até 1982, 140 mil exemplares haviam sido vendidos. De lá para cá, foram vendidos 280 mil. Nos últimos anos, a editora Nacional tem mantido tiragens regulares de 3 mil exemplares anuais, excelente para os padrões brasileiros. Uma curiosidade marca esse clássico em seu nascimento. O primeiro título que Orwell deu para sua obra foi "O Último Homem Livre da Europa". Na hora de entregar os originais ao editor, fez uma inversão dos números do ano 1948, rebatizando-a de 1984. Infeliz decisão, pois uma obra política perene foi por anos tratada como futurologia imprecisa.

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Muito já se escreveu, de ficção ou história, sobre as loucuras de Stalin e de Hitler, pela ordem, ou sobre figuras de tristes memórias como Átila e Calígula. Contudo, jamais autor algum conseguiu descrever a nojeira política com cores tão fortes quanto George Orwell. O mundo do Big-Brother é o ápice literário do horror ideológico. Orwell é corrosivo, irônico, asperge ácido sulfúrico da primeira à última página. Ressalte-se que as críticas do autor foram dirigidas tanto às sociedades comunistas quanto as capitalistas, sem distinções ideológicas.

Conta a história da conscientização de um cidadão comum, Winston Smith (um nome tão comum lá quanto José Silva por aqui) sobre o mundo de repressão total e mentiras coletivas no qual vivia. Em determinado momento Smith encontra um livro, "Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico", escrito por um tal de Emmanuel de Goldstein, o inimigo público número um da sociedade, o personagem contra o qual, diariamente, todos os operários da nação dedicam cinco minutos de ódio. Enfim, Smith trava contato íntimo com o pensamento do inimigo, o Lúcifer social. Aliás, Goldstein representa o próprio Lúcifer dos judeus, o mesmo Prometeu dos gregos –o titã predileto de Zeus, que roubou o fogo-sagrado do conhecimento e o entregou para os homens, sendo portanto condenado a viver no Tártaro por toda a eternidade. Smith adere ao inimigo, Lúcifer-Prometeu da consciência. Mais tarde descoberto, é preso, torturado e recebe uma reeducação que retira sua dignidade espiritual e independência de pensamento.

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Leviatã Cibernético - Deixemos agora Smith de lado. É sobre esse livro dentro do livro, "Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico", que vamos dissecar. Trata-se, na verdade, de um pequeno tratado de ciência política, ou de geopolítica, dependendo do ponto de vista, um manual sobre como um grupo organizado pode tomar de assalto um Estado e, em nome dos interesses coletivos, cuidar dos próprios interesses. Essa usurpação é o que academicamente se define por oligarquia. Orwell consegue ser ainda mais cínico e direto do que Maquiavel em "O Príncipe".

Ao longo das páginas, consegue-se visualizar com precisão as oligarquias coletivistas que estão sendo formadas nas empresas globalizadas, nos movimentos sociais, nas organizações não-governamentais, em algumas igrejas evangélicas ou mesmo em partidos políticos --como no caso da facção do PT que neste exato momento encontra-se no banco dos réus do Supremo. O ponto central do "coletivismo oligárquico" é o de que o bem não é propriedade privada, mas coletiva. Por exemplo: o jatinho é da empresa, a BMW é da Igreja, o uísque é do partido, apesar de serem objetos do usufruto dos executivos ou dos bispos. Em "Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico", Orwell descreve como cooptar os melhores cidadãos para "o partido de dentro" e, principalmente, como adestrá-los e corrompê-los para que perpetuem os interesses  da oligarquia.

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Para quem se interessa pelos fundamentos da sociologia jurídica ou da ciência política, recomenda-se uma leitura crítica de "O Leviatã", de Thomas Hobbes, logo após 1984. Os dois autores estavam em lados opostos em matéria de defesa das liberdades públicas. Pode-se concluir, contudo, que a alegoria de Orwell descreve com precisão o que se poderia chamar de "O Leviatã Cibernético".

Geopolítica Atual – O mundo-ficção em 1984 está dividido em três grandes blocos políticos-econômicos, ou "superestados". O primeiro chama-se "Eurásia" e abrange basicamente a Rússia e Europa, tanto a Oriental quanto a Ocidental, exceto a Inglaterra. O segundo chama-se "Oceania", abrange Estados Unidos e o antigo Império Britânico, que foi no livro completamente absorvido pelos americanos. Por fim, a "Lestásia", bloco formado pelo Japão, China e demais nações asiáticas, que em 1948 nem sonhavam se tornar "Tigres", muito menos formar um bloco econômico, como está acontecendo.

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Alguns trechos do livro-capítulo "Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico" parecem ter sido escritos por um desses gurus da Nova Economia, pregando as maravilhas das organizações pró-ativas. Outros, nos faz lembrar do filósofo Osama bin Laden dissecando as vicissitudes ocidentais. Também há preciosidades que nos remete ao acadêmico FHC analisando as organizações multilaterais, a diplomacia triangular e a geopolítica internacional pós-atentados ao World Trade Center. Abaixo, algumas pérolas do pensamento de Orwell:

Há uma organização gerenciando os povos, o Partido, e há um Partido Interno dirigindo o gerente. Essa organização é semelhante ao das grandes corporações transnacionais, meritocrática, voltada para resultados concretos, mafiosa. Com a palavra Orwell: "O Partido não é uma classe no antigo sentido da palavra. Não tem por objetivo transmitir o poder aos próprios filhos; e se não houvesse outro meio de conversar os mais capazes nos postos de comando, estaria perfeitamente disposto a recrutar toda uma geração nova nas fileiras do proletariado".

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Este trecho cabe como uma luva para organizações mafiosas, partidos políticos, empresas e corporações tradicionais, por fim, as muitas igrejas: "O antigo tipo de socialista, treinado para lutar contra o que às vezes se chama privilégio de classe, supunha que o que não fosse hereditário não podia ser permanente. Não percebia que a continuidade de uma oligarquia não precisava ser física, nem fazia pauta para refletir que as aristocracias hereditárias sempre tiveram vida curta, enquanto que organizações auto-renovantes, como a Igreja Católica, às vezes duram centenas e mesmo milhares de anos. A essência do jugo oligárquico não é a herança de pai para filho, mas a persistência de certo ponto de vista em face do mundo e de certa maneira de viver, imposta aos vivos pelos mortos".

O trecho abaixo é uma das melhores descrições da Nova Economia Globalizada "Não há nenhuma discriminação racial, nem qualquer pronunciado domínio de uma província sobre outra. Encontram-se judeus, negros, sul-americanos nos postos mais elevados do Partido, e os administradores regionais são sempre convocados dentre os naturais da terra. Em nenhuma parte da Oceania têm os habitantes a impressão de ser colônia administrada de uma longínqua capital. A Oceania não tem capital, e seu chefe titular é uma pessoa cujo paradeiro todos ignoram. Não é centralizada de modo algum, à exceção da língua franca, que é o inglês". (Um caboclo nascido na Amazônia brasileira, Carlos Ghosn, já comandou a multinacional Nissan, sediada no Japão, em nome dos franceses, mas falando inglês; e hoje ele preside a própria Renault.)

"As alianças entre os superestados trocam inesperadamente. Essa tensão competitiva também é útil para manter o moral público no diapasão desejado", escreve Orwell. (Escreveriam os gurus atuais, ao justificar gastos desmensurados com marketing: "Só os paranóicos sobreviverão")

"Numa ou noutra aliança, esses três superestados estão permanentemente em guerra, e assim tem sido nos últimos 25 anos", escreve Orwell. "A guerra, contudo, não é mais a luta desesperada e aniquiladora que costumava ser nas primeiras decadas do século XX. É uma luta de objetivos limitados entre combatentes incapazes de destruir um ao outro, sem causa material para guerrear e sem  mesmo qualquer genuína divergência ideológica". (O governo de George W. Bush chegou a falar que a guerra no Oriente Médio poderia durar 25 anos. Barack Obama venceu e tirou suas tropas do lá, mas os republicanos trabalham por um novo conflito, talvez a "libertação" da Síria).

No mundo de Orwell, não há papel relevante para a América Latina, Oriente Médio e África no contexto das nações, "pois a populações escravas, que constantemente trocam de mãos, não são parte permanente nem necessária da estrutura". (Editorial do Financial Times sobre uma reunião do Grupo dos Oito, o G-8, diz o mesmo: "Não há papel relevante para a América Latina, Oriente Médio e África").

Assunto do momento: empresas querem vigiar os e-mails de seus executivos. "O membro do Partido vive, do berço à cova, sob os olhos da Polícia do Pensamento. Mesmo quando está sozinho jamais pode ter certeza do seu isolamento (...) É certo que descobrem não apenas as mais minúsculas infrações, como qualquer excenticidade. Não tem liberdade de escolha em direção alguma. Por outro lado, seus atos não são regulados pela lei nem por nenhum código legal, claramente formulado. O membro do Partido não só deve ter as opiniões certas, como os instintos certos".

Orwell criou a novilíngua e um termo de ironia fantástica, o duplipensar. "Duplipensar quer dizer a capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias, e aceita-las ambas". Isso porque, em 1984,  "às vezes é necessário recordar que os acontecimentos se deram da maneira desejada; e se for necessário re-arranjar as lembranças (....) A grande obra do Partido é ter produzido uma sistema de pensamento no qual ambas as condições podem co-existir". No livro, quando Oceania mudava as alianças bélicas, era necessário acreditar que o inimigo de ontem sempre foi amigo e vice-versa.

A geopolítica atual está obrigando os diplomatas a exercitarem o duplipensar como nunca. Diante da guerra no Afeganistão, por exemplo, os EUA passaram a apoiar, pragmaticamente, as atrocidades da Rússia na Chechênia as pretensões da China sobre Taiwan. Mais recentemente, os americanos apoiaram as pretensões da Geórgia sobre a Ossétia do Sul. No campo empresarial, o duplipensar é praticado por executivos das menores corporações. As metas e o foco da empresa mudam ao sabor dos ventos, os concorrentes viram parceiros e vice-versa. Os executivos têm que estar emocionalmente preparados para destruir o parceiro de ontem em 24 horas. Orwell definiu esse tipo de atitude como uma "eficiente sistema de fraude mental".

Na ficção de Orwell, desde cedo os jovens recebem trabalhoso treinamento mental para reformatar o pensamento, em especial para desenvolver a capacidade de "duplipensar". Hoje é sabido que jovens criados na violência da TV e dos jogos eletrônicos têm estrutura mental diferente dos pais; têm, principalmente, outra estrutura emocional. Há casos de crianças sem-emoção, que não choram com a morte da própria mãe, por exemplo, pois já não sabem distinguir o real do vídeo-game.

"É nas fileiras do Partido, sobretudo no Partido Interno, que se encontra o verdadeiro entusiasmo de guerra. Acreditam na conquista do mundo, com maior firmeza, aqueles que a sabem impossível. Esse particularíssimo amálgama de opostos –sabedoria e ignorância, cinismo e fanatismo—é um dos sinais que distinguem a sociedade oceânica".

Paz-quente - Quando Orwell imaginou sua alegoria, em 1948, a guerra-fria ainda engatinhava. A paz-quente que hoje está sendo imposta pelas três únicas superpotências militares (Estados Unidos, Rússia e China) está muito mais parecida com a ficção de Orwell do que o mundo bipolar do pós-guerra. Da mesma forma, quando 1984 foi para o prelo, a China ainda estava prestes a virar comunista e o atual capital-socialismo sequer poderia ser cogitado.

No campo tecnológico, o rádio era o único meio de comunicação de massa existente. Computadores e TV eram experimentos de laboratório, os satélites era obras de ficção científica e a internet não era sequer cogitada. Contudo, Orwell imaginou uma internet mecânica extremamente eficiente. Teletelas em todos os cômodos vigiando os atos (e até os pensamentos) dos cidadãos. Uma grande rede de informações de altíssimo custo, uma centralização de dados fantástica, cuja instalação e manutenção só seria possível através de um complexo aparado repressor.

O que Orwell não cogitou é que sua grande rede de informações fosse instalada, espontaneamente, avidamente, pelos próprios cidadãos. Há hoje mais de 2 bilhões de internautas no planeta, espalhados pelas nações integrantes de três grandes blocos econômicos –Eurásia, Oceania e Lestásia. No Brasil, há cerca de 80 milhões de internautas. O Estado, por sua vez, pode monitorar um cidadão comum, por satélites, com grande precisão. E com a disseminação dos cartões bancários eletrônicos, sabe seus hábitos de consumo. Hoje, ao Estado já é possivel saber da localização exata dos cidadãos através dos telefones celulares que carregam –e com grandes detalhes, se for smart-phone. Ademais, em breve 80% dos acessos à Grande Rede (ou ao Grande Irmão) deverão ser por "teletelas", um conversor de múltiplo uso que serve como TV, celular e processador de texto, que em 2008 começou a ser implantado no Brasil sob a cândida nomenclatura de TV Digital.

Quanto aos demais, os 4 bilhões de habitantes do planeta que continuarão sem internet, espalhados pela América Latina, África e Oriente Médio, já estão sendo chamados de "excluídos". Corrosivo, Orwell preferiu utilizar a alegoria "escravos". A cada dia que passa, o quadro imaginado por ele em 1984 vai-se concretizando nas sociedades da "era da informação". E George Orwell vai se consolidando como o primeiro autor clássico a explicar o Século XXI.

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