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Brasil

Os intocáveis

Conhea o perfil de quatro autoridades queinvestigaram e desvendaramos mistrios dos crimes mais emblemticos do Brasil; reportagem especial de Claudio Julio Tognolli

Os intocáveis (Foto: ANDRE DUSEK/AGÊNCIA ESTADO)
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Claudio Julio Tognolli _247 - Uma visão mais acurada sobre o que é o crime no Brasil não se faz, apropriadamente, apenas com uma laboriosa análise dos números: mas, sobretudo, ao se destecer a história de vida dos personagens mais emblemáticos por detrás do combate aos criminosos. O Brasil 247 publica quatro histórias dignas de roteiros de Hollywood. São as vidas de quatro “intocáveis” da brasilidade. O delegado federal Roberto Precioso Júnior detém o recorde do policial que mais prendeu mafiosos, em todo o mundo; já o delegado de Polícia Civil Aldo Galiano foi o primeiro a penetrar nos mistérios e tabus da cracolândia, no centro de São Paulo; Nelson Massini, perito criminal e médico legista, fez fama mundial ao ter elucidado o caso das ossadas do carrasco nazista Josef Mengele. Finalmente, Nelson Silveira Guimarães conta os detalhes inéditos de como esclareceu o seqüestro do empresário Abílio Diniz.

ROBERTO PRECIOSO

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Um mito requer que jamais saibamos o que ele pensa. No caso do delegado Roberto Precioso Jr., o maior mito da Polícia Federal, essa máxima se reforça ainda mais porque ele não gosta de falar, deixando apenas que seu interlocutor saiba, nas estrelinhas da conversa, que ele viu tudo de pior, neste mundo, bem de perto. E muito além disso: ele não só viu o que há de mais enigmático no mundo do crime como também prendeu os mais famosos criminosos do país e do mundo. Vejamos: em 1985 meteu atrás das grades o maior mafioso do mundo, Tommaso Buscetta. No ano 2000 o famoso juiz Nicolau dos Santos Neto, o Lalau, acusado de desviar RS$ 169 milhões, do Fórum Trabalhista de São Paulo, escolheu Precioso para se entregar. A crônica de vida do delegado Precioso, por essas e por outras, reporta-se a um luminoso roteiro, daqueles só vistos em Hollywood. “Armas sempre me atrapalharam. Não gosto delas. Mas agir com frieza, sempre, me ajudou muito na vida, muito mais que uma arma”, proclama.

Era de se esperar, dum personagens desses, aquela descarga legiferante tão típica das autoridades. Longe disso: este pai de três filhas, casado desde 1976, 60 anos de idade, dois netos, é cheio de sinais alusivos de que é, em essência, um zen. E é. “Quando eu estava começando a minha carreira policial, um velho delegado me disse que devemos evitar sermos a palmatória do mundo. Acho exatamente isso”, dispara Roberto Precioso Jr, sempre falando a meia-voz, com uma paciência digna de charreteiro. Esse código de comportamento há de espantar, porque Precioso é “o cara”. Vejamos os números que epigrafam a biografia deste mito tenaz: prendeu os dez mais procurados mafiosas italianos dos clãs Camorra e Ndranghetta, entre eles Umberto Ammaturo e Micheli di Biasi, botou atrás das grades mais de mil traficantes da pesada, atocaiou mais de cem mafiosos nigerianos traficantes de cocaína. Foi diretor da Interpol, no Brasil, secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, superintendente da Polícia Federal no Espírito Santo e no Rio de Janeiro, coordenou a repressão a entorpecentes da Secretaria Nacional Anti-Drogas.

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Um encontro com Precioso não pode prescindir de seu relato sobre como prendeu o primeiro “arrependido” da história do crime mafioso: Tommaso Buscetta, nascido em Agrigento, em 1928, na Itália, e vitimado por um câncer, em Nova York, em abril de 2000. Buscetta foi um dos cabeças da Cosa Nostra, a máfia siciliana. Delatou ao juiz italiano Giovani Falcone todo o esquema de corrupção de políticos mantido pela máfia. Tudo isso levou à prisão de 400 mafiosos. E Falcone foi assassinado pela máfia em 23 de maio de 1992. Precioso olha para o horizonte e começa a puxar da memória o caso. “Você sabe que trabalhar com isso é se mete numa fogueira de vaidades. Pois bem: eu fui acionado pelo delegado Pedro Berwanger, do Rio de Janeiro. Eu estava num plantão normal. Fui convocado às pressas. Reescrevi aquele flagrante umas cinco vezes. Todo mundo queria ser o pai da criança. Nunca fui sofisticado para armas. Eu fui prendê-lo usando meu tradicional revólver calibre 38. Prendemos ele no Portal do Morumbi, na zona sul de São Paulo. Carismático, educado, quando olhei para Buschetta lembrei de algo que quase ninguém sabe: eu já o havia prendido, no meio dos anos 70. Era uma prisão comandada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, via Departamento de Ordem Política e Social, o Dops. Prendemos o Buschetta em Santa Catarina. Ele foi extraditado. Então quando o vi na minha frente, pela segunda vez, olhei para ele. Ele me olhou. Ele perguntou pra alguém que estava a seu lado quem eu era. Ficou nisso”.

É requisitado de Precioso, antes que fale do juiz Lalau, que traga à conversa o que mais lhe causa inervações na memória, que fala de absurdidades que o chocaram, que reconte cenas que ainda lhe causam repuxões e rodopios. Sem pestanejar, ele dispara uma resposta que obteve de um guerrilheiro urbano, um comunista, preso pelo temido Dops do delegado Sérgio Paranhos Fleury. “Perguntei o porquê de ele cometer atentados contra lojas, restaurantes, atentados que vitimavam velhos. Perguntei se isso não causava a ele problemas de consciência. Ele me respondeu, friamente: “Olha, doutor, inocentes morrem todos os dias e esses pelo menos morrem por uma causa”. Eu respondi que achava aquilo um radicalismo. Ele retrucou que quem era o radical ali era eu. Ficamos na dialética”.

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Roberto Precioso Junior, como o mais entendido delegado brasileiro no combate ao narcotráfico, ficou por dez anos no Conselho Estadual de Entorpecentes, em São Paulo, o Conen. Ele e o outro membro, o advogado Alberto Zacharias Toron, passaram a nutrir respeito mútuo. Eis que o juiz Nicolau dos Santos Neto passa a ser investigado pela CPI do Judiciário, que o acusa de desviar os milhões de dólares da construção do Fórum Trabalhista de São Paulo. Lalau ficou 8 meses foragido. Constituiu Toron como seu advogado. Em maio de 2006 Lalau foi condenado a 26 anos e meio de prisão, inicialmente em regime fechado, pelos crimes de peculato, estelionato e corrupção. O Tribunal Regional Federal da 3ª Região também condenou o ex-juiz a pagar uma multa de R$ 1,2 milhão. Lalau passou a ser mau exemplo para a magistratura. Lalau virou um mito do mal. Precioso, o mito do bem, agora quer relatar como o prendeu.

“Eu estava nos EUA, representando o Brasil num congresso, quando fui chamado para voltar porque o juiz queria a mina pessoa para negociar a sua rendição. O que vou te relatar é patético, porque a cena da rendição foi patética. Havia um acordo que ele se entregaria à Justiça, mas não seria escrachado na mídia, não seria algemado. Fui então num avião particular, até Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Tudo porque já havia aquela confiança mútua entre eu o advogado do juiz Nicolau, do Toron. Quase desistimos da operação, sobretudo por causa da pressão da mídia. A mídia queria o juiz, inclusive uma rede de tevê já havia até botado detetives particulares para tentar achar o juiz. Isso tudo gerou muita pressão para que a rendição do juiz não desse certo. Mas eu insisti. Eu encontrei o juiz Lalau numa cena, como te disse, patética: ele estava arrasado, magro, subnutrido, me abraçou com força e começou a chorar muito no meu ombro. Pousamos no Campo de Marte, na zona norte de São Paulo: ele veio chorando o caminho todo”.

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Roberto Precioso encerra a conversa com um extrato de memória que o guia em sua fé em um deus particular, que não passa por religiões ou igrejas, um deus feito a partir de um arranjo pessoal entre o delegado e sua consciência. “Eu estava chegando na delegacia da PF com meu fusquinha. Lá em cima, no último andar, havia dezenas de traficantes que eu acabara de prender. O repórter Fausto Macedo me perguntou onde estava a mina segurança particular. Eu apontei para cima. Ele achou que minha segurança estava no último andar do prédio. Mas não notou que eu havia apontado ainda mais para cima: eu havia apontado para o céu”

ALDO GALIANO JUNIOR

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Por que São Paulo é a única megalópole do mundo em que o centro da cidade não é habitável à noite? Óbvio: porque você pode ou ser apanhado entre dois fogos cruzados, ou ter de entrar num impenitente ou a bolsa ou a vida. Por que isso não se concerta? Por causa do lixo acumulado, que é usado por viciados em crack para ganhar suas vidas(ou mortes) e que, uma vez vendido, gera o comércio das pedras da droga –cujos viciados têm suas horas invadidas por ladrõezinhos, que matam por alguns trocados. E posam de viciados à guisa de obterem a complacência do terceiro setor. O maior gênio no estudo dessa cadeia alimentar tem 57 anos de idade, 36 de corporação, católico fervoroso, pai de dois filhos, casado há 30 anos. Atende pelo nome de delegado Aldo Galiano Jr. E está completando seu primeiro ano à frente da 1ª Delegacia Seccional Centro.

Professor de Inteligência Policial na Academia de Polícia, Aldo Galiano já esclareceu aos magotes casos intrincados. Coordenou as investigações do assassinato da menina Isabela Nardoni, prendeu pessoalmente o médico Roger Abdelmassih, recuperou os quadros avaliados em US$ 25 milhões, furtados da família Klabin, prendeu o homem do PCC que iria meter mísseis de verdade apontados contras as paredes das cadeias de SP. Esclareceu 95% dos sequestros em que atuou e já foi muito emprestado a polícias de outros estados para esclarecer seqüestros intrincados. Com todo esse pedigree profissional, o a bolas, é óbvio que que sabe do que fala. Sob seus auspícios estão 11 distrititos, que geram 30 mil boletins de ocorrência ao ano, 30% deles relacionados àqueles setores que merecem as melhores raides policiais, como narcotráfico e roubos.

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“A cracolândia deixou São Paulo na contramão de todas as metrópoles do mundo. Seja em Paris, Nova York, Milão, os centros dessas cidades são à noite bem abertos, tranqüilos, como muita locomoção, cinemas. Nosso centro nos deteriora. Só vai pra lá quem está a fim de inferninhos da vida” proclama Aldo Galiano Jr. Quando assumiu o cargo, revela o delegado Aldo, uma morrinha de ladrões se entranhava entre os cerca de 500 viciados em crack do centro de São Paulo. Perfil desses viciados: ex-moradores de rua, adolescentes sem família sólida, ex-internos da antiga Febem, que uma vez libertos foram rejeitados por suas famílias. “Chegamos a encontrar entre esses viciados uma psicóloga fugida da família, e que morava no bairro nobre do Jardim Anália Franco, na zona leste, e outra estudante de Belo Horizonte. Afinal todos sabem que do crack quase não há retorno: em países de primeiro mundo, com toda a infra deles, o índice de recuperação de viciados em crack atinge no máximo 10%”, relata o delegado.

Nessa hora da conversa o delegado muda o tom de voz. Fica mais grave que um rodapé de carnaúba. Afinal de contas, vai relatar agora porque o centro de São Paulo é o que é: um barril de pólvora ávido por aquela faísca armagedônica, que vemos ser ensaiada, em maior e menor grau, todos os dias, nas páginas da crônica policial. A Cracolância comprende os quarteirões entre a avenida Duque de Caxias, a Alameda Glete e a Estação Júlio Prestes. Há 9 meses, quando o delegado Galiano, o prefeito Gilberto Kassab ( a quem ele chama de “um cara nota mil”) e 26 entidades da sociedade civil resolveram se debruçar sobre o assunto, havia ali todo aquele sururu de centenas de bandidinhos de gatilho fácil infestando as claques dos 500 viciados em pedra. O número desses viciados caiu para 120 almas. Agora já são 250. “O número voltou a crescer porque temos um problema: há uma filosofia que divide os médicos sobre a internação ou não dessas pessoas. Pois bem, mesmo que vença a corrente da internação, não há vagas no sistema público para interná-los. Sem essas internações não teremos nosso centro de São Paulo de volta jamais. Porque o crack é a moeda de troca da criminalidade. Em si, ele é bem pouco: em 9 meses apreendemos no centro de São Paulo 100 quilos de cocaína, e apenas sete de crack, que como se sabe é feito do resto do refino de coca. É nesse universo que gravita o crime que tira o centro de São Paulo dos paulistanos”, relata o delegado.

Aos olhos dos progressistas, é óbvio, os pobres viciados em pedras são os bichinhos de avenca de toda a história. Mas o delegado Aldo Galiano vê neles apenas uma subcategoria cujos destinos, ainda que em menor grau, diga-se, estão nivelados com o de grandes tubarões de uma conexão internacional. Algo Galiano é peremptório: grandes narcotraficantes nigerianos habitam o centro de São Paulo vendendo cocaína. Junto com a Polícia Federal, Aldo Galiano já detectou em 9 meses 50 “mulas”, ou carregadores internacionais de cocaína, que saíram do centro de São Paulo e iam para o Aeroporto Internacional de Guarulhos, a 35 km da capital, e rumavam para o exterior, com o corpo e as malas arriados de tanto pó colombiano. “Prendemos húngaros, marroquinos, espanhóis, eslovenos, tchecos, que ganhariam cada u US$ 10 mil por viagem internacional, cujos carregamentos de cocaína tinham como chefes os nigerianos“, relata o delegado. Para a polícia, cada chefe de quadrilha nigeriano carrega um celular com 10 chips diferentes, todos comprados com documentos falsos.

Retrospectivamente falando: os nigerianos sublocam os “mulas”, o que sobra desses carregamentos de cocaína é vendido como crack, os viciados em crack são infestados pelos ladrões que se fazem de dependentes químicos, e nesse ponto a economia local retorna de novo ao crack. “O viciado em crack disputa com carroceiros não-viciados, pais de família inclusive, os lotes de lixo da cidade. Esses viciados conseguem lucrar cerca de RS$ 15,00 por dia revendendo o lixo. Gastam dois reais por dia em comida, almoçando no sistema de bandeijão do governo estadual, o chamado Bom Prato. Torrar os 13 reais restantes em crack, o que lhes rende cerca de 5 pedras da droga por dia. Se eles fossem internados, os carroceiros pais de família passariam de ganhar RS$ 250,00 por mês coleando lixo para RS$ 600,00, os bandidos não se infiltrariam mais entre os dependentes de crack e o centro se tornaria seguro. OK, dizem que o crack deve ser tratado como uma questão de saúde pública, mas eu acho que ele deve ser tratado também basicamente como uma questão de polícia. Enquanto a comunidade médica continuar dividida, e não internar essas pessoas todas, o centro de São Paulo continuará inabitável”, proclama o delegado Aldo Galiano Jr.

Ele anuncia que, nos próximos meses, um esforço entre Polícia Civil, Prefeitura, entidades do terceiro setor e Ministério Público tentará unificar a caridade: criando tendas em que agentes de saúde abordarão o morador em estado de rua do centro de São Paulo, seja dependente químico ou não, para que seja catalogado, acompanhado, cuidado a banho, saúde, talher, prato e toalha. “Um esforço conjunto tornaria a noite do centro de São Paulo habitável como nas melhores cidades do mundo. Basta um pouco de atenção a isso tudo, e algum esforço concentrado. Se eu tiver essa ajuda? Se eu tiver essa ajuda toda eu limpo, no melhor sentido do termo, o centro de São Paulo e menos de um ano e meio”, jacta-se o delegado.

NELSON MASSINI

Por que enveredar pelo alheamento, quando ajudou-se a reconstruir, a fórceps, microscópio, bisturi e pás (as de cemitério mesmo), a história do Brasil? Já que virou moda, mais do que nunca, bicar cenas de crime, numa fúria silenciosa, para lhes alterar as pistas, o maior médico legista do Brasil, doutor Nélson Massini, volta à cena: vai lançar dois livros, em breve. Revelando as urdiduras e tramas a evitar que peritos sérios, como ele, cheguem à verdade dos fatos.

Aos 60 anos de idade, pai de sete filhos, no segundo casamento, este paulistano de Santo André, que já foi até manchete do The New York Times, lembra que é bom não se alhear de opiniões sobre perícia no ano de 2008. Afinal, enlouquecido pelas ventanias doidas das manchetes, meio Brasil ainda discute o assassinato da menina Isabela Nardoni. E a outra metade do Brasil, que também gosta de crimes, sabe que em 2008 o crime mais famoso do Brasil, o caso da Rua Cuba (o assassinato do casal Bouchabki, em São Paulo, a 24 de dezembro de 1988) vai prescrever: ou seja, acabaram as investigações.

Nelson Massini reconstruiu a face do crânio do nazista Josef Mengele (Alemanha,Günzburg, 16 de Março de 1911 — Bertioga, 7 de Fevereiro de 1979), morto no litoral de São Paulo, e com isso virou estrela na mídia dos EUA. Também exumou os inconfidentes mineiros, e revelou como eram os rostos daqueles reis da liberdade destronados pela coroa portuguesa. Exumou o corpo e refez a face do guerrilheiro Carlos Lamarca, por muitos anos o liberticida mais procurado pelo exército brasileiro. Reabriu os casos dos assassinatos de Stuart Angel Jones (aquele a quem o brigadeiro Burnier fez fumar um escapamento de Jeep) e de Zuzu Angel. Fez o laudo da morte de Chico Mendes e reabriu o caso do assassinato de PC Farias e a namorada Suzana Marcolino da Silva, mortos em junho de 1996, na Praia do Guaxuma, Alagoas. Basta um crime ser estentóreo, de tirar o mundo dos eixos, para que Massini entre nele. Sempre foi assim.

Formado em medicina, odontologia e direito, Nelson Massini sempre acreditou que os mortos contam suas histórias a partir das marcas deixadas na cena do crime. E, do alto de sua história de grife glamurosa da criminologia, ele mais que ninguém quer falar sobre, justamente, o crime da Rua Cuba e a morte da menina Isabela. “Independentemente de quem tenha matado a menina, te digo uma coisa: quem jogou a menina queria eliminar um problema anteriormente criado. Já vi criminosos enterrarem os mortos, cortarem gente aos pedaços e guardarem na geladeira, tudo para se livrar de um corpo, do problema representado pelo corpo. Quem tivesse ido lá só para matar a menina Isabela não teria tido a preocupação de jogá-la. O ato de atirá-la pela janela foi uma desculpa para encobrir a morte dela”.

Quando fala do caso Isabela outras memórias vão refluindo da mente de um dos maiores médicos legistas do mundo. Desafogar-se em outros excessos, ensina Massini, é o apelo setentrional a magnetizar quem acaba de cometer um crime. “Vou te contar um caso que aconteceu em Brasília: foram encontrados pedaços de um corpo, coisa horrível, braços separados do corpo, e os pés do joelho para baixo. As unhas do pé estavam muito bem e recentemente feitas. Botamos o caso na imprensa, que ajuda sempre muito: assim encontramos a manicure, que tinha visto a mulher pouco antes de ela ter sido dada como desaparecida”. O marido teceu toda uma rapsódia do sumiço da esposa. Quando o consorte foi depor na polícia, Massini entrou em cena: com autorização judicial , entrou na residência. Estava imaculada de limpa. Mas o ralo do quintal, em seu interior mais profundo, guardava, abismalmente, rastros do mesmo sangue das partes do corpo encontradas. Quem mata, refere a perícia, tenta se livrar do corpo. Custe o que custar.

O crime da Rua Cuba, tido e havido como o mais emblemático da crônica policial paulistana, e que em quatro meses prescreverá, também merece a atenção de Massini. O casal Jorge e Maria Cecília Delmanto Bouchabki, assassinados, na cama, num sobrado do Jardim América (zona sul de São Paulo), na véspera do Natal de 1988, chegou, horripilantemente, a ter suas cabeças insepultas --e guardadas, saiba-se, no Instituto Médico Legal de São Paulo, ao lado da cabeça do nazista Mengele. Essa história foi contada a este repórter por um também famoso médico legista, Carlos Delmont-Printes, que foi encontrado morto em seu apartamento, na Vila Mariana, zona sul da capital paulista, numa quarta-feira fria, 12 de outubro de 2005.. Ele era o perito do caso do assassinato do ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel, assassinado há cinco anos e meio. A polícia de São Paulo, sem provas materiais e circunstanciais, acusou pela morte do casal o filho Jorginho, hoje advogado. O caso foi engavetado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, por absoluta falta de provas.

“No caso da rua Cuba, que reinvestigamos, posso dizer que a vingança de morte foi em cima do pai. A mãe morreu, mostra a trajetória dos tiros, porque ela viu quem atacava ele. Ela morreu porque poderia dizer quem estava atirando. Mas a cena do crime foi profissionalmente alterada. Com a técnica de hoje, teríamos chegado ao assassino com certeza”, revela Massini

Sempre relacionado politicamente ao Partido Comunista sem, contudo, militância formal ou expressa, Nelson Massini não abjura da fé no rezar. “Não acredito na possibilidade desse tipo de vida divina. Deus é fragmentado na cabeça de cada pessoa. Há vários deuses. Mas aprendi a rezar como sublimação. Rezo nunca por mim, mas sempre pelos outros. Se há um Deus, creio que ele atenda aos pedidos que fazemos pelos outros, para que pedidos a Deus sejam aceitos há de ter um concordante, vários rezando por vários. Acreditar em algo, num Deus pessoal, e rezar pelos outros, melhora os nossos íntimos”.

Massini vindica que “falta de controle social corrompe”, acha que as inexprimíveis cadeias do Brasil não recuperam ninguém. Mas tudo o que tem a dizer e a contar, coisa a render vulgatas e vulgatas de filosofia de vida e de morte, ele guarda para seus dois livros, ainda sem título definido. E, do jeito que Massini sempre foi, esperemos dois best-sellers.

NELSON GUIMARÃES

O delegado de Polícia Civil de São Paulo Nelson Silveira Guimarães é uma das grifes glamurosas da corporação. Foi o chefe das investigações daquele que é tido e havido como o assassinato mais misterioso do Brasil, o crime da rua Cuba. E também foi o negociador da libertação do empresário Abílio dos Santos Diniz, naquela tarde turva de 17 de dezembro de 1989 – quando se encerravam as votações da eleição presidencial que conduziu Fernando Collor de Melo ao poder. As entrevistas de Nelson Guimarães são raras: ele é um esquivo profissional. Agora resolveu abandonar o impenitente calado que sempre quis ser sem fazer concessões a nada ou ninguém: inclusive Deus, de cuja fé ele abjura.

“Não acredito em Deus. Sempre me segurei na família nos meus momentos mais difíceis. Mas confesso que quero, antes de morrer, tentar acreditar em Deus. Mas por enquanto não dá. A Bíblia diz que Deus fez o homem à Sua imagem e semelhança. E como conheço muito bem essa coisa chamada homem, sou levado a crer que Deus deve ser um cara totalmente desequilibrado, maluco, que mata e estupra criancinhas. A própria Igreja se converteu num partido político: portanto Deus não quero ver”. Pode soar estranho, e até mesmo chocante, que um dos maiores delegados do Brasil mantenha na figura de Deus um construto escalafobético. Mas Nelson Guimarães diz que seu compromisso é com a carne, com o osso, com o ser humano, e sobretudo com os mortos. “Faço parte da polícia de homicídios, que é a única que dá satisfação aos mortos. Minha maior alegria é poder, dentro de mim mesmo, conversar com aquele morto estendido no chão e falar: veja, aquela pessoa que te fez mal agora vai enfrentar as barras da lei.”

Casado há 42 anos com uma professora, pai de três engenheiros e de uma médica, o delegado é uma pessoa sempre sujeita a acessos de paciência mineral e surtos idem de frieza quando o pior dos mundos fica diante dele. Vejamos: estamos numa mansão fundeada na rua Cuba, Jardim América, zona sul de São Paulo, numa noite fria e calculista do dia 24 de dezembro de 1988. O casal Maria Cecília e Jorge Delmanto Bouchabki é assassinado em seu quarto. O crime, já prescrito, foi explorado à exaustão pela mídia, que apontava no filho do casal, o hoje advogado Jorginho Bouchabki, o autor das mortes. O caso foi engavetado, por falta de provas, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. Jamais se provou alguma coisa contra Jorginho, e o delegado Nelson Guimarães só gosta de fazer um apontamento sobre o crime mais misterioso do Brasil. “Esse caso começou mal, porque a cena do crime foi muito mexida. Os corpos mudados de lugar, projeteis falsos disparados no cenário. A minha experiência mostra que toda vez em que se mexe muito na cena do crime está se querendo proteger alguém próximo dos mortos”.

Excessivamente aparelhada com câmeras de vídeo onipresentes, o delegado é hoje o chefão da 5ª Delegacia Seccional de Polícia, no Tatuapé, na zona leste da capital paulista. Bairro, aliás, onde o delegado sempre viveu. Nelson Guimarães não gosta de folclorizar os casos mais brutais que esclareceu: fala com a frieza de um peixe, mas ao mesmo tempo entra em desacordo com esse estado de espírito quando lhe brota da memória o caso que mais o chocou. Corria o ano de 1980. Nelson Guimarães é chamado a uma pequena casa na Vila Brasilândia, na zona norte de São Paulo, onde uma menina de um ano e meio de idade foi encontrada morta, vítima de violência sexual. “Nunca vi coisa igual na minha vida. O corpinho estava dobrado para trás, com as costas encostando no calcanhar, e a cabeça virada para trás. A família sabia que o autor da barbaridade era um tio de vinte anos de idade. A mãe não me deixava conversar com o irmãozinho de três anos de idade. Sorrateiramente fui conversar com o menino, que me assoprou que tinha visto o tio levar a irmãzinha para um matagal. Ele só confessou o crime depois que eu disse que iria espalhar para os presos da cela em que ele ficaria preso que ele era um estuprador. E que, portanto, ele duraria pouco na cela. Ele confessou simplesmente para se salvar. Basicamente o ser humano é isso. Uma categoria que só pensa em si mesmo.”

Agora chegou a hora de falar no caso que tornou o delegado famoso: a libertação do empresário Abílio dos Santos Diniz, do Grupo Pão de Açúcar. Dez seqüestradores, incluindo canadenses, chilenos, argentinos e um brasileiro mantiveram Abílio num cárcere, dum pequeno sobrado numa praça no Jabaquara, na zona sul de São Paulo. Nelson Guimarães localizou o cativeiro a partir de um calendário de uma oficina de eletricidade, usada pelos seqüestradores para montar uma falsa ambulância na qual Abílio foi imobilizado. Nelson Guimarães faz revelações estonteantes sobre a libertação de Abílio no dia 17 de dezembro de 1989, às 17h, no exato momento em que se encerrava a votação do segundo turno da eleição presidencial levada por Collor. “A polícia estava disposta a explodir o sobrado. Queriam explodir a laje esquerda, bem em cima do cárcere de Abílio. Ele não iria sobreviver. Também cogitaram lançar bombas incendiárias dentro do sobrado. Fui contra tudo isso. E um ex-diretor do Pão do Açúcar chamado Furquim me ofereceu levar para negociar com os seqüestradores um velho amigo seu, que por acaso era o então cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns. E foi assim que fui negociando com o seqüestrador Humberto Paz, o Juan, que era líder do grupo, as garantias para que soltassem Abílio. Eles nunca usariam o dinheiro do resgate para ajudar os povos pobres, como diziam. Eram mercenários treinados militarmente. Veja você que o Juan, que se dizia um progressista, nunca tinha ouvido falar no cardeal dom Paulo.”

Nelson Guimarães guarda três cenas desse episódio: dom Paulo confessando-lhe que tinha tido uma visão de que morreria nessa negociação e que o seu vôo de helicóptero para o sobrado do cativeiro estaria lhe proporcionando “a última visão sobre a cidade de São Paulo”. A outra cena, refere o delegado, “é o Abílio falando para nós, da Polícia, com muita arrogância, que se não estivéssemos ali para ajudar, o caso teria se resolvido sozinho”. E chegou a hora de Nelson revelar ao repórter a sua terceira e mais fulminante visão. “Era segunda-feira, 18 de dezembro, um dia após a libertação do Diniz, e eu estava na cidade de Colina, na fazenda do meu sogro, debaixo de uma paineira, lembrando que eu quase tinha morrido com a metralhadora do Juan a todo momento apontada contra mim. Eu chorei muito, tive um arrepio e me perguntei: cadê Deus, porra? Eu ainda me faço essa pergunta. Cadê Deus? Enquanto não tenho a resposta, eu mesmo vou dando a resposta: encontrar Deus é trabalhar para a comunidade e combater o crime”.

O delegado Nelson Guimarães é um leitor contumaz, acende um livro no outro, e seu autor de cabeceira é o físico inglês Stephen Hawking. “O Stephen fala algumas bobagens como, por exemplo, que a lei da gravidade dispensa Deus. Em outros momentos, fala que o mundo criado por Deus é tão perfeito que Ele mesmo não pode intervir em sua obra. Eu acho que cabe a cada um de nós essa intervenção: e a minha intervenção é combater o crime. Sei que o ser humano não participa das minhas alegrias, porque as minhas alegrias praticamente eu só divido com os mortos, cujas mortes eu esclareci”.

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