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Brasil

Parar de fumar é uma coisa, abandonar o cigarro é outra

Abandonar o cigarro é como se divorciar de alguém que você ama muito, que sempre o tratou muito bem, mas que sempre lhe servia um saboroso prato envenenado

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Esta semana fui a um shopping recentemente inaugurado aqui em Belo Horizonte. Antes de ir ao local de meu compromisso, fui ao banheiro. Lá conheci um rapaz simpático e curioso, que me perguntou, entre outras coisas, o que eu fazia ali, no shopping. Era o faxineiro do banheiro, ou melhor e mais digno, o rapaz responsável pela limpeza daquele local. Conversamos alguns instantes e fui tratar da minha vida.

Ao final de meu compromisso, voltei ao banheiro e conheci outra pessoa. Um rapaz irritado e ranzinza. Completamente diferente do primeiro, mas, curiosamente, era a mesma pessoa, porém transtornada, revoltada com a proibição imposta pela empresa aos fumantes. Naquela empresa, onde começou a trabalhar recentemente, eles simplesmente não podiam fumar.

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O moço estava irreconhecível. Xingava a empresa, xingava os seus chefes, xingava o shopping, ameaçava se demitir, comparava seu trabalho a uma penitenciária, queixava-se da “privação” de liberdade e do direito que tem de pitar seu cigarrinho inocentemente. Veio a mim com essas reclamações como se eu pudesse fazer algo a seu favor, mas meu poder de convencimento é sumariamente diminuído diante de pessoas em crise como era o caso do rapaz. Me despedi e parti, refletindo sobre como as pessoas são dominadas por seus vícios.

Eu nunca fumei. Nunca gostei do cigarro. Mas sempre convivi com fumantes. Vi e vejo como é difícil para eles deixar o hábito do fumo, mas vejo com muito mais sentimento o sofrimento deles em abandonar o cigarro.

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Para os fumantes o cigarro não é apenas o instrumento através do qual praticam o vício que cedo ou tarde cobrará seu preço, como todos os outros. Para os fumantes, o cigarro é um parceiro, um companheiro, não é um objeto, é uma pessoa que sempre esteve ao seu lado. É alguém que ele conheceu ainda jovem, e essa pessoa o ajudou a se aproximar de outras tantas pessoas. Ajudou a compor sua aparência, ajudou a estabelecer seu comportamento, contribuiu para sua imagem como se fizesse parte de seu próprio corpo. Nas fotos o cigarro sempre esteve presente. Seus amigos não fumantes sempre separavam em sua casa um cinzeiro para o dia de suas visitas. Seus familiares, até os que o reprimiram quando começou a fumar, aprenderam a respeitar seu cigarro como se respeitassem a própria pessoa.

Fumantes sempre têm motivos para continuar fumando. Enquanto não têm qualquer diagnóstico que condene o vício, dizem que o cigarro não lhe faz mal algum, mas quando o diagnóstico afirma que o cigarro vai matá-lo, o fumante diz que o que lhe faz mal não é o cigarro, é o stress, é a poluição, são as gorduras dos alimentos, é o trânsito, é a esposa, ou o marido, são os filhos, são todas as coisas que contribuíram para que sua vida fosse um verdadeiro inferno. Inferno esse que era transformado em paraíso quando seu amigo inseparável emitia uma fumaça cambaleante a partir de uma brasa sorrateira entre seus dedos.

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O fumante passou por todas as lutas dessa vida tendo o cigarro como companhia. Quando perdeu o emprego, o cigarro o consolou. Quando adoeceu, o cigarro estava ao seu lado. Se precisou de internação, fumar era uma aventura a mais para quem não podia fazer muita coisa divertida. Quando o filho adoeceu, o cigarro não deixou de estar ao seu lado. Na época das vacas magras, o cigarro era um desabafo. Na época de abastança, era um “estilo” a mais para seu visual já bem aparamentado. Talvez o cigarro tenha contribuído para que o fumante conhecesse seu atual cônjuge, ou talvez tenha contribuído para que o relacionamento chegasse ao fim, não importa, as pessoas passaram e o cigarro continuou ali, firmemente ao lado do fumante.

Por isso, abandonar o cigarro é muito mais difícil que parar de fumar. Os dedos médio e indicador esticados paralelamente sem ter o que os unisse nos momentos de distração é um sinal de que agora o fumante não pode mais ser chamado de fumante. Incomoda, o faz sentir mais só, menos autêntico, menos ele mesmo. Machuca sua identidade, afinal de contas, ele “sempre” fumou! Tanta gente fuma até os oitenta anos! Porque ele tem que parar aos quarenta, cinquenta, sessenta ou oitenta?

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Viver sem paladar não é tão mal. Ter um fôlego curto também não é nada de incomum, afinal, fumante é fumante, não é nadador, corredor ou atleta de outra modalidade. Os dentes amarelados não incomodam tanto, pois o sorriso ainda continua alegre, simpático e convidativo como nos dias de seus primeiros tragos. No pior dos casos, os avanços da tecnologia podem prestar seu socorro e aliviar de qualquer constrangimento.

Parar de fumar é renunciar a um vício, mas abandonar o cigarro é renunciar a uma amizade, a uma companhia que sempre esteve ao seu lado, abdicar de uma parte de sua história. Mais que isso. É finalizar uma história e começar outra nova. Uma nova história com mais cor, mais sabor, mais aromas, mais saúde e mais surpresas, e agradáveis surpresas. O cigarro fará parte de um passado que pode até ser agradável, mas será passado. O futuro, por sua vez, será mais promissor e, muito possivelmente, mais duradouro.

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Abandonar o cigarro é como se divorciar de alguém que você ama muito, que sempre o tratou muito bem, mas que sempre lhe servia um saboroso prato envenenado. Até que um dia você rejeita essa comida e ela não se importa com isso. Você percebe que o cigarro é um bom amigo, mas que você, para ele, não vale nada. Pois hoje ele está contigo e amanhã ele estará envenenando a outro. Aí você decide viver também sem ele, e descobre que na verdade ele não era um bom amigo, era um inimigo perfeito. Era apenas alguém que queria estar bem perto de você no dia da sua queda, apenas para ouvir o som do seu corpo batendo no chão.

Grayver Liberato é videomaker e autor do livro de contos "O Vestido de Cristina"

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