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Brasil

São todos filhos de Dona Percília

O engraçado é que os indivíduos admitem brincadeiras congêneres dentre quatro paredes e oito ouvidos, mas o mesmo não vale quando se está na TV

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Não sei se você finge ou se ilude do contrário, mas eu sou convicto, dentre tantas coisas, ao menos desta: não escolho minhas predileções estéticas e sensoriais. Minha veneração gustativa por BigMac não vem de uma opção. Se origina, antes, nos vetores sociais, biológicos e tudo mais que invariavelmente me afeta, cada qual com sua força. Penso assim, logo existo em tal lugar. Entretanto, apreciar doishambúrgueresalfacequeijomolhoespecialcebolaepiclesnumpãocomgergelim não me faz a favor ideologicamente das relações de trabalho estabelecidas pelo McDonald's – culpe minhas papilas! Agora, se eu como ou não, isso tem uma implicação na vida prática, e aí sim isto deve ser pensado sob um viés político, pois somos o que fazemos.

O mesmo vale para as piadas. Reveladoras ou não de pensamentos encrostados de qualquer ismo opressor, eu não opto por rir ou deixar de rir, apenas por contá-las. O riso não está sob meu domínio absoluto. Por sinal, alguns dos meus melhores amigos acumulam dotes para viajar entre o painel de cores do riso, do explícito ilícito ao mais sutil trocadilho. Um deles, de nome dispensável, é um escrotizador rebuscado. Debocha de todas as minorias, de todas as maiorias, dos grupos chapa branca e, sobretudo, de si mesmo. Não por incompreensão, impaciência, purismo ou qualquer abominação reflexiva, mas sim devido ao seu niilismo. Como não acredita em nada de verdade, como é estrangeiro no mundo inteiro, só há limites coercitivos. Sem piada, ele nada é, pois a boca escancarada é o que lhe equilibra fronte à anomia melancólica que reside nele cruamente. O engraçado, com o perdão do termo, é que os indivíduos admitem brincadeiras congêneres dentre quatro paredes e oito ouvidos, mas o mesmo não vale quando se está na Tv, porque na cultura de massas se é responsável, na micro-esfera há apenas mãos lavadas. Como se a mídia fosse estanque da realidade, como se dentro daquele tubo [infecto?] não houvesse gente de verdade, exatamente como eu suspeitava quando moleque. É essa perspectiva que leva, seja por hipocrisia ou análise rala, o comediante Rafinha Bastos à fogueira da Sociedade do Espetáculo.

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Eu prometi a mim mesmo que não escreveria sobre isso. Me engano, eu minto. Não que o problema fosse ele, é que não sou lá chegado a dar closes em ações individuais. Devo dizer, poupei vocês, até então, sobretudo pelo quão maçante determinados assuntos se tornam em meio à tanta notícia polêmica sobre mililitros de silicone na célebre anônima, assim como pela repetição sensacionalista de determinados temas, característica de editoriais que se fundamentam no Jornalismo à Ouro-de-tolo – na corrida por algo valioso, com tanta informação pueril, qualquer coisa engana. Todavia, a piada transcende o indivíduo. Não trata-se de um humorista, seus chistes, a capacidade performática duvidosamente duvidada ou mesmo o período da Comédia no Brasil, quando especialistas deveriam vir a público sentenciar a qualidade de seu trabalho. O assunto compete aos boias-frias filhos da fome, neopetencostais às sete da manhã, secretárias de saias curtas, pijamas na janela à espera do marido, porcos capitalistas e suas calculadoras, menores detentos com bonecos na mão, tetraplégicos fanáticos por automobilismo, caras-pintadas em 2011, adolescentes – esse termo, penso, não precisa de adjetivo. Por coerência, essa palavra a qual me refiro, de tal modo que é difuso seu significado, deveria ser extirpada do dicionário, pois sua sensação inletrável é compartilhada enquanto horizonte da existência, desde pelos livros e deslivros messiânicos até pelos bárbaros pós-modernos da incerteza: eu falo de Liberdade.

Rafinha, o réu da vez, niilista provavelmente sem consciência de tal, problematiza de modo desproposital – pela própria natureza da ausência de sentido do Niilismo – a Liberdade de Expressão. Afinal, do que querem aliená-lo? Imagino só haver três opções: do direito de pensar, de dizer ou dos desdobramentos que suas concepções têm nos consumidores de seus produtos artísticos. Uma vez que a sarcasticamente toda poderosa Neurociência, solucionadora de problemas e decerto futuramente produtora paradoxal de vários, ainda não foi capaz de invadir mentes com destreza, não se pode proibir de pensar. Independente da prisão do corpo, espero que liberto permaneça o pensamento. Resta, então, policiar o que se diz. Todavia, mesmo para quem se vale do argumento da Justiça, um “Por que não te calas?” sempre soa tirânico. É então que se defende a punição maior: mais do que ir contra os valores da família, Rafinha, ao dizer que comeria o bebê, ao gritar sem pudor pros quatro cantos uma anedota sobre o estupro, está influenciando pessoas.

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Se prefiro os ares poéticos do eu-lírico, agora uso a primeira pessoa dissertativa em alto tom. Mesmo que eu duvide muito de que haja qualquer psicótico irreflexivo o suficiente para agir em resposta mecânica à piada, por imitação automática, cabe indagar: é de Rafinha a responsabilidade real da ação de outrem, quando não houve estímulo direto através de um imperativo qualquer? Afinal, se assim for, quando um fã de Marylin Manson suicida-se ouvindo sua música, trata-se de um homicídio à distância. Em tempos de tanta tecnologia e distanciamento, será ele um atirador de elite virtual?

Não cabe ao Direito medir os efeitos caóticos das ações, pois, seguindo essa lógica, os pais do Rafinha, já que o colocaram no mundo, e todos os telespectadores que deram risada, incluindo o companheiro de bancada traíra Marco Luque, deveriam ser presos por estimular a suposta atividade ilegal. O Direito só pode – e me refiro à razoabilidade e não legitimidade constitucional, infelizmente – responsabilizar alguém pela ação última, por uma questão utilitária – a de trazer segurança -, pois somos o que somos pela interação, não somos donos de nós mesmos, nascemos com noções que nos influenciam sem opção. Afinal, não somos gêmeos univitelinos do mundo. Somos efeitos que não escolhemos e o mesmo seguirá adiante. Resta, pois, culpabilizar Rafinha pelo seu ato direto: a palavra. A palavra, vale ressaltar, de um humorista em atividade. Que haja repressão moral, se assim quiserem que ele seja constrangido com a própria palavra, mas só. O problema, como diz uma amiga que diz um teatrólogo, é que a palavra é fugidia, então não temos controle dos efeitos no outro. Se a boca diz algo, o ouvido diz a outra metade. Entende o que quero dizer?

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Falando em mal entendido, lembra daquele amigo? Então, a última dele: está namorando uma ninfa, meio Inocência, alguns anos mais nova, mas um pouco de outra órbita – ainda muito menina, genuinamente ingênua. Esses dias, na melhor ilustração possível, ele virou e disse pra ela que a falta de fotos da mãe grávida dela e uma foto sua pequena no colo de Dona Percília, humilde empregada doméstica da casa da esquina, eram evidências mais que suficientes de que ela era adotada, filha da senhorinha. Disse em tom sério, mas despretensioso, sem limites pra dizer o que vier à cabeça, brincando com o fato da menina ser muito mais escura que os pais. Eis que a menina chega aos prantos em casa, querendo saber da verdade, apesar de verdade nova não haver. Não entendeu que era uma mera brincadeira. Sem-noção, mas uma brincadeira que não fez com que de fato a menina se tornasse adotada.

É exatamente disto que se trata: ao que parece, os críticos não perceberam que a piada estava fora do alcance do próprio humorista, presente na forma, não no conteúdo, porque o meio é a mensagem: não existe Liberdade. Se uns dizem que os telespectadores são subservientes à influência do Rafinha, não se tocam de que ele também é fruto de algo que os próprios críticos são coautores no cotidiano – em geral, em seus lares. Desejam liberdade de pensamento para os supostos influenciados, mas não permitem a Liberdade de Expressão de Rafinha. O texto vai acabar e não entenderam que a Liberdade é uma piada. Estão todos choramingando, são todos filhos de Dona Percília. Mal sabem que meu amigo com nome de menino e Rafael, gigante no diminutivo, riem por último. Apenas buscam no riso o sentido que lhes falta, não levam a vida a sério, pois sabem que Liberdade é isso que vem depois dos dois pontos:

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