Um ano após manutenção da proibição, mercado ilegal de cigarros eletrônicos segue sendo única opção para o consumidor no Brasil
Falta de regulamentação impede acesso de adultos fumantes a dispositivos com parâmetros sanitários e composição assegurada, apontam especialistas
247 - Há exatamente um ano, em 24 de abril de 2024, entrou em vigor a decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que manteve a proibição da comercialização, importação e propaganda de dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs), como os cigarros eletrônicos, tabacos aquecidos e sachês de nicotina. Para especialistas ouvidos pelo 247, o efeito desta medida é o predomínio do comércio ilícito, apesar do veto, em um cenário de ausência de controle sanitário e fiscalização sobre a qualidade, origem e segurança desses produtos.
A falta de regras atinge os fumantes adultos em busca de alternativas de menor risco à saúde e, especialmente, adolescentes - público que não deveria ter acesso a esse tipo de dispositivo. Sem regulamentação, esses consumidores estão expostos a produtos manipuláveis, sem procedência conhecida, com alto risco de contaminação e falhas técnicas, como explosões de baterias.
Na avaliação de Mônica Gorgulho, psicoterapeuta especializada em dependência química, a regulamentação é essencial para definir regras claras de acesso e impedir que menores de idade tenham contato fácil com os dispositivos. “A regulamentação significa um maior controle, a criação de barreiras, tanto na produção quanto no comércio de produtos. A regulamentação ajudaria, inclusive, aos profissionais de saúde reconhecerem e identificarem adequadamente o uso de produtos controlados, de procedência conhecida, garantida, e separando daqueles de produção clandestina, ilegal", afirmou.
Para Gorgulho, a desinformação também tem um papel importante nesse cenário. "Um dos principais riscos é o fato das pessoas ficarem reféns dessa propaganda em massa que se faz sobre os aspectos negativos do uso desses aparelhos, que são feitos para redução de danos dos tabagistas. Na medida em que isso não fica claro e só há uma campanha negativa sobre esses dispositivos, essa abordagem acaba perdendo a credibilidade no grande público, especialmente a população jovem", afirma.
Já José Roberto Santin, professor, pesquisador e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Toxicologia (SBTox), avalia que a falta de regulamentação alimenta um ciclo de descontrole que compromete tanto a saúde pública quanto a segurança nacional. "A regulamentação impõe padrões de qualidade que, por consequência, aumentam a segurança para o usuário. Entre suas principais ações, destaca-se o controle da composição dos líquidos que contêm nicotina, estabelecendo limites para sua concentração e proibindo a presença de substâncias proibidas ou potencialmente perigosas", afirma.
Dversos países, como Estados Unidos, Reino Unido e, mais recentemente, o Chile, avançaram na regulamentação de dispositivos de nicotina com base na estratégia de redução de danos. "O Brasil precisa observar as estratégias adotadas por países mais desenvolvidos, que têm implementado políticas de regulamentação mais eficazes, baseadas em evidências científicas e em princípios de redução de danos. Sem dúvida, esse é o caminho mais sensato e seguro a seguir", afirma.
No Reino Unido, o uso do cigarro eletrônico é incentivado como ferramenta para parar de fumar. Nos EUA, a Food and Drug Administration (FDA) autoriza a comercialização de determinados produtos após rigorosa análise científica de risco. Já o Chile regulamentou em 2024 a venda de cigarros eletrônicos, impondo critérios técnicos e restrições de venda a menores de idade.
Crescimento descontrolado e sem fiscalização
O Brasil tem quase 3 milhões de consumidores de cigarros eletrônicos, segundo pesquisa Ipec feita em 2023. As apreensões do produto ilegal pelos órgãos de fiscalização também aumentaram. De acordo com dados da Receita Federal, foram apreendidas no Paraná, em 2024, mais de 1 milhão de dispositivos eletrônicos para fumar. O dobro em relação ao ano anterior. Em São Paulo, de um ano para o outro, sete vezes a mais, totalizando 937.222 unidades apreendidas. No Rio Grande do Sul, o aumento foi impressionante: 89 vezes a quantidade confiscada em 2023, chegando a 397.983 unidades apreendidas em 2024.
“O que temos hoje é o pior dos mundos: um produto que é totalmente comercializado por canais ilegais, sem qualquer parâmetro técnico, sem controle sanitário e sem rastreabilidade. É o monopólio do crime”, afirma Edson Vismona, presidente do Fórum Nacional de Combate à Pirataria (FNCP).
Segundo Vismona, os países que já regulamentaram os produtos alternativos de nicotina chegaram à conclusão de que a criação de regras é a única forma de proteger a população, permitir que o consumidor tenha a possibilidade de escolher produtos com parâmetros e composição assegurada e coibir o mercado ilegal. “No Brasil, ao contrário, mantivemos a proibição e entregamos milhões de brasileiros aos riscos de produtos ilícitos sem qualquer controle, fornecidos por criminosos”, resume.
O presidente do FNCP destaca que a proibição imposta pela Anvisa não impede o acesso aos cigarros eletrônicos. Ao contrário, fortalece o mercado clandestino, estimulado pela alta lucratividade e ausência de concorrência com produtos regulamentados. “A comercialização ilegal está nas mãos de milícias e organizações criminosas que já atuavam no contrabando de cigarros. Eles ampliaram seu portfólio com os eletrônicos, que hoje são encontrados com facilidade em plataformas digitais, praias, bares, feiras e até com estética voltada para crianças, com embalagens com personagens de desenho animado”, aponta.
Para os especialistas entrevistados pelo 247, é hora de rever a política atual. A regulamentação responsável, com base em critérios técnicos, limites de composição, exigência de rastreabilidade e controle de venda, é o caminho adotado pelas nações que colocam a saúde pública como prioridade.
