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Brasil

Wikileaks para a ditadura

Neste momento em que se discute a criação de uma Comissão da Verdade para rememorar ou punir os atos de exceção da ditadura, somente uma política de ampla, geral e irrestrita transparência dos documentos será capaz de resgatar nossa História

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Insólito constatar que a ex-torturada Dilma Roussef mantenha uma política restritiva de acesso aos documentos secretos da ditadura militar. É verdade que, em abril, o governo publicou portaria facilitando o acesso aos papéis que estão sob a guarda do Arquivo Nacional. Depois, Dilma anunciou a intenção de terminar com o sigilo eterno de documentos do Estado. Dias atrás, foi a Unesco quem anunciou, em Paris, que os documentos da ditadura viraram “memória do mundo”, algo similar a “patrimônio da humanidade”. Na casca, todos esses fatos aparentam dar maior relevância e transparência aos acervos. Na essência, são irrelevantes para a reconstituição da História.

Para começar, o Brasil não tem uma lei que regulamente o acesso aos arquivos públicos. Há anos que se arrasta no Congresso o projeto da Lei de Acesso, mas a própria base aliada do governo (deste e do anterior) tem sabotado a tramitação. Significa, na prática, que as direções dos arquivos públicos têm amplos poderes para tratar do assunto com bem entender. O Arquivo Nacional, por exemplo, tal qual nos tempos da censura prévia dos militares, hoje só permite o acesso aos documentos depois que burocratas anônimos examinarem o teor das informações.

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Querem antes saber se há informações incômodas aos personagens da história ou às suas famílias. Efetivam então uma conjuração prévia, selecionando os documentos que podem (e os que não podem) ser examinados por pesquisadores, historiadores ou jornalistas. Neste momento em que se discute a criação de uma Comissão da Verdade para rememorar ou punir os atos de exceção da ditadura, somente uma política de ampla, geral e irrestrita transparência dos documentos será capaz de resgatar nossa História. Pensadores de vanguarda, como Le-Goff e Paul Riccouer, defendem a tese de que direito dos povos à memória e a conhecer sua história seria um Direito Fundamental.

O melhor caminho a seguir é mandar tudo para internet, tal qual o Wikileaks. A relevância desse site foi disponibilizar um sistema colaborativo no qual especialistas podem analisar o conteúdo dos documentos – e ainda deixam duas análises registradas para os leigos. Instituições de pesquisa, como a Universidade de Brasília e a Unicamp, já têm plataforma colaborativa similar à do Wikileaks, disponibilizada pelo Instituto Brasileiro de Informação Científica, o Ibict, do governo federal. Implementar de fato o Direito à Memória e à Verdade, como prega o PT, está mais fácil do que se imagina.

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Seria exagero afirmar que o governo Dilma pratica a censura prévia. Mas não busca a transparência exigida pelo momento histórico – tanto que lutou para que o inquérito da sua prisão durante a ditadura não viesse a público nas eleições de 2010. O princípio da transparência é, desde a Revolução Francesa, um dos fundamentos da Democracia Representativa. Contrapõe-se ao conceito dos arcana imperii, do romano Tácito – aquele poder que se oculta e que busca manter seus atos ocultos. Eram assim as ditaduras totalitárias do Século XX. Era assim a ditadura militar brasileira.

Nossos militares fundamentavam a censura prévia no conceito maquiavélico das “Razões de Estado”. Dilma, assim como os governos FHC 1 e 2, Lula 1 e 2, fundamentam as restrições de acesso a documentos no conceito da “memória maldita” de Platão --para quem deveríamos ter a responsabilidade de narrar às crianças da polis somente histórias politicamente construtivas, conjurando o que for inconveniente para o imaginário social.

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Mas afinal, o que há de relevante nesses documentos da ditadura? Os militares não eram ingênuos. Não registraram em documentos provas de tortura, nome de matadores ou o local dos corpos dos desaparecidos. Somente psicopatas se vangloriam de atos de exceção. Mas os nossos militares esqueceram indícios importantes dispersos em burocráticos relatos de missões militares, análises políticas, milhares de pastas com dossiês sobre adversários e inquéritos com depoimentos de presos políticos. Na mão de leigos ou burocratas, esses documentos têm pouca serventia. Com estudiosos, ajudariam a tecer uma intrigante trama para a história -- como fragmentos de ossos ou cerâmicas em sítios arqueológicos.

Em um dos inquéritos esquecidos nos porões dos arquivos públicos, o que trata da morte sob tortura do operário Manoel Fiel Filho, por exemplo, restou o nome do militar que o interrogou. É a última pessoa que viu Fiel vivo, segundo o documento. Seria o assassino? É um indício a ser investigado pela Comissão da Verdade. Mas quem levará à Comissão da Verdade a informação de que, escondido em centenas de milhares de páginas de documentos, existe um indício tão relevante? Isso é tarefa para os “garimpeiros” da História, não para políticos ou magistrados – e muito menos ainda para burocratas arquivistas.

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Nesses papéis há também mexericos --como relatos de adultérios e suspeitas de “pederastia passiva” – além de muitas curiosidades risíveis pela irrelevância. Em um relatório secreto do Centro de Informações do Exército, CIE, ainda resguardado no Arquivo Nacional, um espião militar descreve uma guerrilheira do Araguaia como “feia, dentuça e aparentando mais idade do que tem”. E daí? Outros documentos só a tratam como “desertora”. Depois de presa, observa-se nos documentos, passa a ser tratada sem adjetivos. É esse tipo de informação que se quer resguardar para não constranger personagens e famílias? É também.

O que realmente está pegando são os depoimentos dos ex-presos políticos. Os militares se esmeraram em fazer constar, nesses documentos, quem revelou o nome de quais companheiros. Mas não registraram se as informações foram extraídas sob tortura, ou sob acordo de delação premiada. São essas as “memórias malditas” da esquerda. Diria tão malditas quanto as memórias que os militares gostariam de esquecer quando estiverem diante da Comissão da Verdade. É paradoxal imaginar que ex-torturadores e ex-torturados viessem a cerrar fileiras do mesmo lado, em defesa de seus direitos de privacidade pessoal – e em oposição aos pensadores de vanguarda do Século XXI, que consideram o Direito à Memória dos povos como um Direito Fundamental.

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Pode ser que os dois lados, outrora em luta fratricida, consigam por algum tempo manter documentos resguardados. Podem até mesmo exorcizar alguns indícios e provas, como já fizeram os militares. Mas um dia serão as memórias reveladas. Basta lembrar que os documentos mais relevantes sobre o período militar não estão nos arquivos públicos, mas nos acervos pessoais de militares. Tanto que as melhores informações sobre o período, verdade seja dita, foram reveladas por papéis entregues a jornalistas por militares -- ou por seus familiares. O caso mais conhecido é o do “Baú do Bandeira”, o acervo que o falecido general Antônio Bandeira guardava em um grande baú em sua casa. Há ainda pelo menos oito acervos pessoais importantes – de três militares, sendo um general da ativa, de quatro jornalistas e de um familiar de desaparecido. Podem somar mais de 30 mil páginas e centenas de fotografias.

Eu mesmo venho formando um acervo pessoal há 20 anos, buscando documentos com militares ou em repartições públicas. Há dois, em pleno governo democrático do PT, quis doá-lo ao Arquivo Nacional, mas desisti quando descobri que nem mesmo eu, o próprio doador, teria mais acesso aos papéis. Depois disso, consegui digitalizar e organizar esse acervo com a providencial ajuda do Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra. Agora busco alguma instituição brasileira disposta a catalogá-los e publicá-los, todos eles, na internet, como o Wikileaks.

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Os outros donos de três acervos pessoais querem fazer o mesmo. Com essa abertura ampla, geral e irrestrita, o quebra-cabeças da História poderá ser montado. Caso contrário, continuará sendo apenas um jogo, onde cada um resguarda a sua peça por desinteresse de encaixe.

“É bem verdade que o passado nos assombra”, ensinou Hannah Arendt, ao estudar a questão das “realidades desagradáveis ou indesejadas” que muitos governantes tentam varrer para debaixo do tapete do imaginário através do esquecimento coletivo, da ocultação de documentos ou da manipulação da opinião pública. Mas chegou a hora de todos os brasileiros terem direito à memória e à verdade sobre nossa própria história – sem exorcismos ou conjurações de documentos feitas por burocratas oficiais. Afinal, ainda ensina ainda Arendt, que “a grandeza desta República foi dar, por amor à liberdade, o devido valor ao que há de melhor e pior nos homens”.

Hugo Studart é jornalista e historiador, autor de “A Lei da Selva”, sobre a Guerrilha do Araguaia, e observador independente do GTA, grupo de trabalho inter-institucional que busca os corpos dos desaparecidos políticos da ditadura.

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