Transformar alíquotas em política de saúde é uma armadilha, alertam especialistas
‘Dieta tributária’ é uma simplificação perigosa: não educa, não resolve a obesidade e ainda torna a cesta básica mais cara
A discussão sobre o uso do Imposto Seletivo para estimular hábitos alimentares “mais saudáveis” reacendeu o debate sobre os limites constitucionais, econômicos e sociais da chamada “dieta tributária”. O tema ganhou força após a regulamentação da reforma tributária. Criado pela Lei Complementar nº 214/2025, o Imposto Seletivo (IS) deve incidir sobre bens e serviços considerados prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente — como cigarros, bebidas alcoólicas, bebidas açucaradas e alguns combustíveis e veículos.
A tentativa de aplicar o IS a determinados alimentos como política de saúde pública divide especialistas. A estratégia — que busca desincentivar produtos por meio de aumento de imposto — é criticada por simplificar um problema complexo e criar distorções distributivas.
Entre 2006 e 2023, segundo a pesquisa Vigitel, o consumo de refrigerantes caiu 51,8%, enquanto a obesidade cresceu 105,9%. Além disso, bebidas açucaradas respondem por apenas 1,7% das calorias ingeridas pelo brasileiro, sugerindo que a relação direta entre tributação e mudança de comportamento é limitada.
Regressividade e baixa efetividade: o alerta econômico
O economista Márcio Holland, da FGV-EESP, destaca que o Brasil já opera no limite da carga sobre consumo. Ele lembra que “cerca de 50% da carga tributária brasileira advém de tributos sobre o consumo, enquanto na média da OCDE esse peso é de 30%”, afirmando que elevar ainda mais esse tipo de imposto traz pouco ou nenhum ganho concreto para a saúde pública.
Holland observa que a elevação de tributos empurra consumidores para alternativas de pior qualidade, principalmente entre os mais pobres:
“Quanto mais se aumentar o peso do tributo sobre os alimentos, mais a população pode optar por alternativas de consumo inferiores e de baixa qualidade.”
Ele também frisa que, mesmo quando há redução inicial de consumo, o efeito se dissipa sem políticas de educação alimentar e informação. Para o economista, o impacto sobre a obesidade seria mínimo, já que o fenômeno depende do “balanço entre consumo e ingestão calórica”.
Como alternativa, Holland defende ações de educação nutricional, rotulagem clara, autorregulação e incentivo à atividade física. Ele cita o caso do Chile, que obteve resultados expressivos com rótulos de advertência — modelo adotado no Brasil a partir de 2023.
Tributo não educa: limites jurídicos e o risco de paternalismo fiscal
O jurista Marcelo Campos, presidente da ABDT, afirma que usar o sistema tributário como instrumento de reeducação alimentar viola princípios constitucionais.
“A mera pretensão de um uso pedagógico do imposto configura um paternalismo exacerbado, que viola a autonomia individual e a liberdade de escolha dos cidadãos.”
Para Campos, o Direito Tributário não deve regular comportamentos privados, mas apenas impor consequências fiscais. A tentativa de moralizar hábitos por meio de alíquotas abre margem para arbitrariedade e insegurança jurídica.
Ele lembra que a extrafiscalidade só é válida quando proporcional e orientada a objetivos constitucionais reais. Caso contrário, há desvio de finalidade:
“Quando há desproporção entre o objetivo regulatório alegado e o incremento arrecadatório efetivo, há desvio de finalidade.”
O jurista também aponta que o próprio Imposto Seletivo corre esse risco, já que a Lei Complementar 214/2024 autoriza usar sua arrecadação para compensar perdas do IPI, aproximando o tributo de uma função meramente arrecadatória.
Governança técnica obrigatória para evitar abusos
Para o jurista, políticas extrafiscais exigem metas claras, revisão periódica e avaliação empírica contínua.
“Tributos com fins não arrecadatórios só cumprem seu papel se instituídos de forma absolutamente excepcional e dentro de uma estrutura que garanta monitoramento e avaliação de impacto.”
Campos defende que o Tribunal de Contas da União (TCU) é a instituição mais preparada para acompanhar esses efeitos e evitar que medidas temporárias se perpetuem sem eficácia.
Educação, transparência e corresponsabilidade: o caminho possível
Tanto Holland quanto Campos concordam que a tributação não substitui políticas públicas de educação nutricional, acesso e informação. Sem essas bases, o imposto não produz mudanças duradouras.
A redução voluntária de 35% do açúcar em refrigerantes no Brasil demonstra que acordos entre Estado e setor produtivo podem gerar resultados mais consistentes e menos regressivos.
A mensagem central dos especialistas permanece: o Estado pode tributar produtos, mas não deve prescrever hábitos alimentares por meio de alíquotas. A “dieta tributária” tende a elevar custos, reduzir a liberdade de escolha, aprofundar desigualdades e oferecer retorno limitado em saúde pública. O caminho real passa por informação, educação, evidência científica e políticas proporcionais — não pela moralização fiscal.
