Chico Anysio: "Morrer, dormir, talvez sonhar"
Releia a entrevista em que Chico Anysio, pela primeira vez, falou em morte. E revelou por que lutava tanto para permanecer entre ns: Morreu, acabou. No h outra vida
247 – Quando, em tratamento contra o enfisema pulmonar, pela primeira vez falou na possibilidade de morrer, Chico Anysio citou um verso de Shakespeare. “Morrer, dormir – talvez sonhar”. E disse ainda por que lutava tanto pela vida. “Até agora não veio ninguém aqui me dizer que tem outra vida melhor me esperando do lado de lá”, disse ele. Releia o depoimento ao jornalista Leonardo Attuch, na revista Istoé:
Chico, um gênio esquecido
A rotina do maior humorista brasileiro fora das telas. Ele está doente, fala e pensa na morte, mas ainda segue à procura de um teatro onde possa dar vida aos novos personagens que criou
Por Leonardo Attuch
Francisco Anysio de Oliveira Paula Filho está sentado no centro de um ambiente quase vazio, com os quadros que ele próprio pintou espalhados pelos cantos da sala. Chico Anysio, o criador de tipos inesquecíveis que fizeram história na televisão brasileira, se desculpa pela bagunça. "Acabei de me mudar", diz. Ele agora vive em São Paulo, não mais no Rio de Janeiro. Seu apartamento é modesto, tem apenas dois quartos e 90 metros de área útil num prédio antigo da alameda Santos, e de lá ele quase não sai. Vai ao médico quando sente sintomas estranhos, como a dor de cabeça que o pegou de surpresa no dia em que recebia a reportagem de ISTOÉ pela primeira vez. "Uma dor diferente." Aos 78 anos, o humorista, que é considerado por muitos o "Chaplin brasileiro", combate um enfisema pulmonar, adquirido após décadas de fumo compulsivo. Há três meses, sofreu uma pneumonia e ficou quase 30 dias internado. Ao sentir o sopro da morte, Chico escreveu uma espécie de testamento. "Deixo nove filhos: oito homens e uma princesa. A vida está aí para que a aproveitemos, mas a verdade é que estou de saída", postou na internet. Ao falar à ISTOÉ, ele, o criador do Painho, do Pantaleão, do Alberto Roberto, do Bozó e de dezenas de personagens que ainda estão vivíssimos na memória afetiva dos brasileiros, mencionou o fim, citando o Hamlet, de Shakespeare.
Entre uma lembrança e outra, Chico se recorda de uma cena que observou da janela, alguns anos atrás. Num dia de intensa ventania, um rapaz tentava em vão acender um cigarro nas ruas do Rio de Janeiro. Até que se escondeu sob uma marquise e, finalmente, conseguiu. "Burro, mal sabe que o vento queria apenas ajudá-lo", pensou Chico. Essa mesma "burrice" custou ao humorista um pulmão praticamente enferrujado. Todos os dias, ele faz um trabalho de reabilitação pulmonar e caminha numa esteira. Começou fazendo um minuto apenas. Hoje, consegue andar quatro minutos sem se cansar e espera chegar aos 40. Junto com a pneumonia, que causou sua internação no Samaritano, do Rio, aconteceu também uma queda doméstica. "Envelheci cinco anos numa semana", diz ele. "Descobri que a vida é uma prova hípica, o nosso envelhecimento vem aos saltos."
Durante sua entrevista à ISTOÉ, dividida em duas etapas, a segunda já com o apartamento mobiliado e com os quadros na parede, Chico também falou sobre drogas. Durante muitos anos, pairou no meio artístico a suspeita de que ele teria um famoso "nariz de platina", pois suas mucosas nasais não teriam resistido às doses cavalares de cocaína. "Cheirei três ou quatro vezes, algumas vezes até fingi que cheirava para não ser o chato da festa, mas nunca gostei." Ele diz até ter curiosidade em saber como seria um nariz de platina. "Como é isso?", pergunta. Maconha, ele experimentou uma única vez e passou mal. Vícios pesados mesmo, só dois: a nicotina e o trabalho.
Do segundo, ele ainda não abriu mão. Embora tenha um contrato com a Rede Globo até 2012, que lhe rende cerca de R$ 100 mil mensais, Chico não é um homem rico. "Nada pode ser tão caro na vida como o divórcio", diz o humorista, já no sexto casamento, com a fisioterapeuta Malga di Paula, 40 anos mais jovem. "Trabalho porque gosto, mas também porque preciso."
À esposa anterior, a ex-ministra Zélia Cardoso de Mello, com quem teve dois filhos, ele paga uma pensão de US$ 10 mil. E o destino também lhe pregou uma peça. À medida que os anos passavam, o número de ex-mulheres crescia e o salário na Globo, que já foi de R$ 400 mil, diminuía. "Nunca me programei pensando que aquele meu auge um dia poderia acabar", diz o homem que foi líder de audiência durante 36 anos e saiu do ar em 2001, ao ser derrotado pelos músculos de Arnold Schwarzenegger. Foi quando sua Escolinha do Professor Raimundo teve menos Ibope que o filme O Exterminador do Futuro, exibido pelo SBT, de Silvio Santos.
O trabalho fora da televisão, no entanto, não tem sido tão lucrativo para Chico. Um dos últimos produtos lançados por ele foi um DVD duplo, com os melhores momentos dos seus programas. Vendeu cerca de 15 mil exemplares, mas os direitos autorais não corresponderam. "Sabe quanto eu ganhei?", pergunta, repetindo com os dedos o gesto imortalizado pelo Professor Raimundo ("e o salário, ó!"). "Du-zen-tos e qua-ren-ta e no-ve re-ais", responde o humorista, enfatizando cada uma das sílabas. "Dizem que a culpa é da pirataria." Na maior parte do tempo, Chico se dedica a retocar um espetáculo novo, que ele acaba de criar. Chama-se "Tudo eu" e terá dez novos personagens - entre eles um médico paulista chamado Dr. Haddock Lobo, que não gosta de doentes, assim como o político Justo Veríssimo tinha ojeriza a pobres. Sentado na poltrona, diante da reportagem, o artista se transfigura. Sua voz assume um novo timbre e ele fala como um paulistano da Mooca. Num átimo, Chico se transforma novamente, seus olhos diminuem de tamanho e ele passa a ser japonês - seu Fukuda é um dos seus novos tipos, que ele espera, em breve, poder incorporar. "Sairei à procura de um teatro", diz o artista. Mais um corte: Chico agora está fanhoso e sua voz é inconfundível. Pantaleão, um de seus mais célebres personagens, invade o ambiente. "Esse timbre é do Luiz Gonzaga", revela Chico, antes de repetir um de seus bordões mais famosos: "É mentira, Terta?"
O último trabalho publicado se chama "Três Casos de Polícia" e contém uma inspirada história chamada "O Sucessor de Maigret", o célebre detetive criado pelo belga Georges Simenon. A novela, que ele sonha ver traduzida para o francês e interpretada no cinema com Gerard Depardieu no papel principal, revela muito sobre o método de criação de Chico. Antes de escrevêla, passou uma semana em Paris. Obsessivo pela qualidade do trabalho, anotou a direção do tráfego e cronometrou o tempo que um assassino levaria para ir de um ponto a outro da cidade. "Quis ser preciso", diz ele. Como escritor, Chico publicou vários best-sellers na década de 70, como "O Batizado da Vaca", "O Telefone Amarelo" e "O Enterro do Anão".
Com uma voz cansada e bem menos ágil do que seu raciocínio, Chico também se diz um homem sem fé. Fala que, a partir de certa idade, o ser humano se vê diante de uma bifurcação.
Há aqueles que se apegam às religiões, e os que se mantêm descrentes - Chico afirma fazer parte do segundo grupo. "Se houvesse uma eleição para Deus, eu não votaria neste que está aí", diz ele. Mas então por que ele decidiu inserir a figura de um profeta nos seus programas de humor? "Foi antes da bifurcação", ele responde.
Chico gostaria de voltar à televisão. Poucos dias depois de postar um comentário de despedida na internet, ele fez nova confidência na rede. Disse que ainda esperava um telefonema dos irmãos Marinho, assim como uma adolescente aguarda a ligação do primeiro namorado.
"Estou vivo e paciente, esperando a cada telefonema que seja alguém da Globo, vestido de azul marinho e dizendo que alguém da mesma cor quer me ver de novo na telinha." O telefone toca, Chico atende e interrompe por alguns instantes a entrevista. Não era ninguém da Globo. Ainda assim ele não perde a esperança. "Eles (a Globo) querem muito que eu faça de novo o Alberto Roberto, mas eu gostaria de fazer também o Justo Veríssimo, que nunca foi tão atual como agora", diz ele. "E queria também que eles me dessem um espaço à tarde, depois das reprises daquelas novelas". Chico imagina um "Vale a Pena Rir de Novo". Alguma mágoa? "Quem tem menos de 14 anos não sabe quem eu sou". E ele, sem modéstia, diz que foi uma das pessoas que mais fizeram o brasileiro feliz no século XX. "Pelé, Roberto Carlos, Oscarito... jogo nesse time, com certeza." E sobre o humor, o que o velho Francisco, que desceu de Maranguape, no Ceará, e conquistou o Brasil, tem a dizer? "Há dois tipos: o engraçado, que eu fazia, e o sem graça, que se vê por aí."
"Não há outra vida. Morreu, acabou"
Enquanto fazia sua mudança do Rio de Janeiro para São Paulo, Chico Anysio falou à ISTOÉ. E disse que, aos 78 anos e tendo de enfrentar um enfisema pulmonar agudo, não há como não pensar na morte.
ISTOÉ - Ao deixar um adeus na internet, o sr. sentia a morte por perto?
Chico Anysio - Aos 78 anos, é inevitável. Tive uma pneumonia, sofri uma queda e envelheci cinco anos numa semana. Fumei muito e hoje tenho um enfisema. Mas, quando penso que podia ser um câncer, me sinto premiado.
ISTOÉ - O envelhecimento o deprimiu?
Chico - Não, porque minha cabeça está trabalhando. Criei novos personagens, fui descoberto pelo cinema e imagino novas histórias. Tenho vários livros inéditos. Apenas estou fora da televisão. Só faço uma advertência: talvez seja precipitado escrever meus obituários.
ISTOÉ - O sr. tem fé?
Chico - Não. Já perdi meus avós, meu pai, minha mãe, uma irmã e até agora não apareceu ninguém aqui para me dizer: "Chico, venha, que tem outra vida do lado de cá." Como diz Shakespeare: "Morrer é dormir. Talvez, sonhar." Não há outra vida. Morreu, acabou.
ISTOÉ - Ficar tanto tempo fora da televisão é também uma morte?
Chico - De certa forma, sim. O artista está vivo enquanto atua. E eu, que sou um ator de televisão, estou à procura de um teatro. Criei dez novos personagens e quero mostrá-los. Além disso, o palco é curativo. Às vezes, tenho uma baita dor de estômago. Subo num palco, a dor passa. Saio, ela volta.
ISTOÉ - Como o sr. avalia o humor feito no Brasil hoje?
Chico - Há dois tipos de humor: o engraçado e o sem graça. De repente, na Globo, acharam que era preciso uma coisa nova. Mas o humor nunca pediu uma coisa nova. Ele pede apenas uma coisa engraçada. Recentemente, o "CQC" foi apontado como o melhor programa de humor da televisão brasileira, mas aquilo não é humor. É jornalismo combativo, irreverente. O "Pânico" atinge uma parcela pequena da juventude. E o "Casseta & Planeta", quanto será que daria de Ibope, se não estivesse na Globo?
ISTOÉ - Aos 78, o sr. ainda teria gás para continuar?
Chico - Pelo menos mais dez ou 15 anos.
iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: