Chico Buarque e o irmão alemão
O compositor e cantor "parece que abraçou prazerosamente o ofício de escritor", diz João Paulo Cunha, na resenha sobre 'O Irmão Alemão', que ele descreve como "uma boa obra"; o livro, diz o ex-deputado, mistura realidade e ficção numa medida que deixa o leitor atônito
247 – Em nova resenha publicada em seu blog, e reproduzida abaixo, o ex-deputado João Paulo Cunha ressalta a mistura de realidade e ficção do novo livro de Chico Buarque, 'O Irmão Alemão', segundo ele, "uma boa obra".
"É de fato parte verdadeira da autobiografia de Chico Buarque e seu pai ou é uma invenção de roupa literária para um manequim construído com os nomes de Francisco e Sérgio de Hollander?", pergunta.
Com o novo livro, o compositor e cantor "parece que abraçou prazerosamente o ofício de escritor", completa Cunha. Leia:
Chico Buarque e o Irmão Alemão
Chico Buarque de Holanda já musicou coisas lindas. Carregou de amor as dúvidas sobre Beatriz: "Será que ela é moça/Será que ela é triste/Será que é o contrário/Será que é pintura...". Lacrimejou com a mãe que "se entregou a esse homem perdidamente/Ele assim como veio partiu não se sabe pra onde/E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe." Do pai, informou: "era paulista". O avô "pernambucano" e o bisavô "mineiro". E em plena construção "beijou sua mulher com o se fosse a única". Tudo isso é passado!
"Perdão, Madame, como a senhora pode ver meu forte não é a música, mas a literatura." Chico parece que abraçou prazerosamente o ofício de escritor. "O Irmão Alemão", seu novo livro, lançado pela Companhia das Letras, é uma boa obra.
Com um roteiro singelo e escrevendo em primeira pessoa, ele mostra um acerto de contas a fazer com o passado. São fatos ocorridos na cozinha de sua família que o perturbam. Todo mundo já tinha ouvido falar dum filho que o pai tinha tido na Alemanha. Querendo olhar o futuro de forma mais arejada e retirar dos ombros um corpo germânico que há anos o perturba, ele toma o presente em suas mãos para resolver esse drama: terá existido o irmão alemão? Se existiu, o que terá sido dele?
Sérgio Buarque de Holanda, o pai do Chico, no livro chamado de Sérgio de Hollander, vivia para os livros. Sem tempo para conversar, ele queria ler todos os livros ao seu alcance para escrever depois o maior de todos. De fato, escreveu um grande livro: "Raízes do Brasil". Um clássico para entender nosso país. É certamente uma das obras mais importantes da nossa literatura "escrito por um homem que tendia a ideias socialistas".
Chico vivia, portanto, no meio de livros. Um dia, ao abrir a página trinta e cinco de uma obra, depara com uma carta de uma mulher chamada Anne Ernst, endereçada a Sérgio de Hollander que, escrevendo em Alemão, intrigou o jovem Francisco de Hollander (é como Chico se autodenomina na obra). E ele imediatamente quis saber o conteúdo da carta. Está aí o começo da aventura que vai desembaraçando até chegar ao irmão alemão que Francisco não conheceu.
Depois de decifrada a carta, Francisco de Hollander descobre que a mulher informa Sérgio de Hollander que o filho gerado daquela relação despretensiosa completava um ano. Chamava Sérgio Ernst. Cobrava também seu interesse e, caso não fosse demonstrado, ela se sentiria livre para arrumar um marido e até registrar o filho no nome desse novo homem.
Encafifado, Francisco sai à procura de pistas que possam levá-lo ao irmão. Recupera a passagem de seu pai por Berlim entre 1929/1931 como correspondente de um jornal do Brasil. Foi nessa fase da vida que Sérgio conheceu Anne e, num romance juvenil e passageiro, ficou grávida e teve um bebê que, apesar do desconhecimento, poderíamos imaginar um homem branco, louro, com "cabeça de manga".
Neste caminho, Francisco de Hollander descreve o mundo particular do pai com sua biblioteca e o cuidado especial da mãe para com os livros e o cultivo do silêncio. A biblioteca do pai permite ao filho narrador presunçosamente citar inúmeras obras com muita familiaridade, o que enverniza um pouco sua imagem para logo mais à frente se distinguir do irmão namorador, bonito ("Os cabelos italianos... em longos cachos... os olhos esverdeados e a tez cor-de-rosa..."), mas resistente a leituras.
Chico engata seus primeiros passos na relação com as letras, com a literatura ("...acho que o acaso me compensou com atributos do espírito") e as aventuras no descobrimento da cidade. São passagens interessantes em que o autor usa a imaginação para correr por ruas verdadeiras, lugares reais e um mundo cultural que agitava São Paulo na época. Contudo, uma coisa o persegue: o irmão alemão.
Ele vai montando um quebra-cabeça. Mexe com uma peça do nazismo que pode ter recebido a criança das mãos da mãe que, impossibilitada de criar, entrega ao "Führer". Pode ter sido submetida à força nazista para comprovação ariana. É puro? Não há resquícios judaicos? O transcorrer da vida do irmão numa Alemanha Nazista apoquenta a vida presente de Francisco, que fica a divagar sobre o caminho que o irmão trilhou: terá sido um empedernido Nazista ("... guardo até hoje as cartas da mãe e uma foto dele fazendo a saudação nazista.")? Terá sido sacrificado com os milhões de judeus nos campos de concentração?
No decorrer do livro a tensão entre realidade e ficção vai se apresentando regularmente e o leitor fica atônito. É de fato parte verdadeira da autobiografia de Chico Buarque e seu pai ou é uma invenção de roupa literária para um manequim construído com os nomes de Francisco e Sérgio de Hollander?
Sem responder a indagação, o narrador anda em pistas motivadas pelo ouvido apurado da música. Ao ouvir uma música clássica e o barulho abafado do piano, ele rapidamente imagina um alemão na banqueta esparramando seus dedos pelo teclado ("... eis que a música renasce e flui suave como nunca..."). E esse alemão pode ser o seu irmão. Delira ao ver um homem branco e avermelhado, cabelos louros, andando pelas ruas de São Paulo para imaginar ser seu irmão perdido na cidade. Uma dose de steinhäger é suficiente para querer brindar o encontro com o irmão ("O garçom não para de... encher meu cálice de steinhäger, com que brindo... ao meu irmão de sangue...").
Não deixa passar uma reflexão sobre a ditadura militar no Brasil que, além da violência e do arbítrio, tinha seu lado ridículo quando confundia autores clássicos com militantes da esquerda. "De que Borges o velho lá em cima está falando?". "Confisca igualmente o Cortázar." Depois de um "pedido de desculpas pelo mal entendido" a polícia devolve "os Borges, os Cortázar, os Neruda e dois volumes de poesia de Nicolás Guillén...". Da mesma forma a ditadura achava que os leitores de escritores russos poderiam ter vínculos com o comunismo. "Para quem o mero conhecimento da língua russa pode ser comprometedor." A ditadura, além de violenta, era ridícula!
Essa ditadura acabou encarcerando seu irmão brasileiro que, no roteiro do livro, serve para aumentar o desejo de Francisco de Hollander em encontrar seu irmão alemão. Bem colocado no roteiro do livro, esse assunto remete o narrador às agruras de ambos os irmãos: o alemão, vítima do nazismo, e o brasileiro, da ditadura militar. Ele reflete: "E eu que nunca morri de amores por aquele irmão, eu que o teria trocado por um irmão alemão sem pestanejar, passei a me inquietar com a ameaça de ficar sem irmão nenhum."
Persistente, o autor localiza outras pistas que o leva até a Alemanha. Seguindo o caminho do pai ("Por cima das nuvens, em altitude e velocidade de cruzeiro, seguimos mais ou menos a linha do litoral brasileiro que o navio do meu pai costeou em 1929."), ele agora vai tentar descobrir o paradeiro do fruto do pai. Depois de juntar peças e ligar pontos, descobre que o irmão existiu, deixou descendentes ao morrer e possuía uma veia artística que deixou marcas nas artes da Alemanha Oriental, onde fez carreira. Ao descobrir que o irmão cantava, Chico provavelmente deve ter descansado: era filho do mesmo pai.
É tão espetacular a mistura entre a fantasia e o real que Chico Buarque, travestido de Francisco de Hollander, reflete sobre seu próprio livro e o roteiro trabalhado, como uma obra pensada pelo irmão: "Meu irmão pode estar colhendo aqui e ali matéria para um romance autobiográfico onde inventara um pai brasileiro, não muito distante da imagem que faz de seu pai incógnito."
E se enrolando nas brumas da imaginação com realidade fantástica, Chico dá corpo à uma silhueta imaginada para Francisco de Hollander: "Serei capaz de escrever um romance inspirado na Alemanha dos anos 30, tão presente nas minhas leituras e fantasias. Posso romancear, por exemplo, a história de Anne Ernst, cuja foto com meu irmão no colo guardo no bolso da camisa e várias vezes por dia tenho a compulsão de olhar?"
No início do livro Chico Buarque faz uma dedicatória para um plural com identidades singulares: Para Sérgios. E, ao final, encerra belamente: "Dizem/ Que em algum lugar/ Parece que no Brasil/ Existe um homem feliz." Ele tinha encontrado o irmão alemão!
João Paulo Cunha
Dezembro/2014
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