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Cultura

Depende de nós

É gol, gol do Flamengo. Um puta gol chorado do Ronaldinho. Num rompante, eu e o garçom nos abraçamos discretos e até mesmo distantes, porém sem cálculo

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Take 1. O cenário é um bar na frente da faculdade. Somos quatro à mesa. Foco na boca do garçom que informa sobre Maracanã, tal qual a SUDERJ, mas referindo-se à pizza: - Estamos em falta com a de calabresa, o senhor quer trocar o pedido? Replico, parcimoniamente puto: - Mas você me disse há uns quinze minutos que tinha e só vem avisar agora que não tem mais? Em tréplica magistral, responde: - Senhor... é que tem, mas acabou.

A cruel dúvida dantes resolvida tornou – fique claro que a fome não foi passear em momento algum – e demoramos uns instantes para fazer a opção. O garçom, que não era réu primário, batia o pé no paralelepípedo, quase que dançando a Polca, como quem quer apressar os ponteiros. Decerto pensava: “Toda quarta, é isso”. Se pudesse, eu sei, me asfixiaria com o pano metade encharcado de álcool, metade sujo de gordura, que acabara de servir pra limpar a mesa de plástico. Não foi grosso, também não foi polido. E eu, eu não queria pedir outra coisa, mas pedi. Na dúvida entre marguerita e champignon, escolheram a pizza de mato – eu preferia a outra.

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Enquanto o tempo tiquetaqueava, surgiu uma mão por cima do meu ombro colocando cerca d'uma dúzia de amendoins semi-queimados ao lado dos três copos de cerveja – apesar de saber das calorias da pizza, fiquei no suco aquele dia, pela saúde. O dono da mão era um senhor confundível com a noite, boné ao topo do cucuruco e bigode permitido apenas para maiores de 40. Certamente, um pai de família. Sorrisos amarelos, em prontidão, negaram a oferta, sob a justificativa da pizza por vir. Eu, eu, eu não queria amendoins. Também não queria marguerita. Mas o ronco da barriga se fez voz. Uma vez que um saquinho de amendoim saía caro, levei três na promoção. Comprei meio por fome/pressa, meio por solidariedade ao vendedor. Não, não trocamos uma palavra sequer além do trâmite comercial. Mera sensibilidade impessoal.

10 minutos. 20 minutos. 30 minutos. Impossível! A pizza simplesmente não chegava. Quantos mares teria que desbravar, ervas medicinais a descobrir por acaso, na procura dos ingredientes da marguerita que a porra do garçom era incapaz de trazer? Aliás, que merda é aquela que fica em cima da pizza? Ah, mas que se foda, eu nem queria comer aquela merda. Já estávamos nos acréscimos da espera pro jogo começar e nada. Disperso, via apenas vultos de rostos amorfos que compunham a pequena multidão rubro-negra ao redor, todos com as devidas fantasias, certamente exibidas em seus perfis nas redes sociais junto a qualquer “cole no seu mural” onde está contida uma rivalidade que não traduz o sentimento cotidiano daquelas pessoas pelo clube. O futebol produz identidade? Eu praticamente só via auto-encenações cumprindo papéis.

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Distraído com o mundo, concentrado na pizza que enfim chegara , quando dei por mim, vi que havia um hippie próximo à mesa, de papo com Julya. Ela queria comprar cordões e como eu sei o quanto isso demoraria, propus que o rapaz sentasse à mesa. Nós, famintos e desatentos, não oferecemos nem mesmo meia fatia. E ele, conforme o restante da cena, veio com um discurso contraditório. Muito à par sobre Desenvolvimento Sustentável em prol de um capitalismo mais humano – isso, enquanto mexia no celular. Junto às suas bugigangas guardadas na mochila, percebi um panfleto da época das eleições. Se ele quis falar alguma coisa sobre aquilo? Só daqui a quatro anos. Mas caramba, era um hippie! Será mesmo que o conceito 'hippie' foi ressignificado ou tratava-se de outra personagem com sua respectiva máscara, prestes a ir para detrás da cortina desse grande simulacro? Talvez, nem o mais pretensamente marginal esteja isento. Sei que não compramos o cordão, mesmo tendo ciência da retidão do valor ínfimo, por sabermos da facilidade em encontrar mais barato em qualquer esquina, se barganhássemos.

Apenas uma coisa interrompeu a conversa de bocas cheias: o jingle do Criança Esperança. Não por extensões vocais, tampouco lirismo da composição ou propriamente pela causa, somente porque gruda, porque o marketing tem esse poder. Tanto é que os mesmos doadores desta campanha, tão benéfica para a vida de alguns indivíduos quanto questionável para a estrutura social, só o fazem pela solidariedade anual, passageira, que não se efetiva na preocupação para com o hippie ou o vendedor de amendoins.

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Essa mesma sociedade é a que cultiva o filme pornô, expondo paus e bundas como carnes de churrasco à mão pra qualquer dedo calejado do nerd, mas garanhão no bate-papo ou Second Life. Do conhecimento ctrl+vzado da Wikipedia. Da espetacularização da vida: assiste o show da realidade quem não tem tempo e disposição pr'uma conversa despretensiosa. Do mendigo que pede esmola pra comer na rede de fastfood.

No fim da linha, no fim da História, estão em coma todas as metanarrativas, qualquer ideologia que vise coerência totalizante. Não há horizonte, e sim incertezas. Resta a simulação do passado ou do virtual: por isso, tantos óculos retrô, tantas blusas deflagradoras de músculos, lindas negras de cabelos horrivelmente chapados, tantos fakes pela internet. Não basta Ser, e o Ter atende sobretudo à utilidade de Parecer ser alguma coisa. Em meio a tanta fala decorada, é como se o mundo estivesse prestes, tal qual Truman, a deparar-se com as fronteiras estabelecidas por paredes cenográficas.

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Chegou a conta. Mais alto do que deveria. Talvez tenham inventado alguma garrafa a mais. O garçom aguardava de cara amarrada, enquanto nós discutimos discretamente – na sua cara – se dávamos ou não os dez por cento, já que houve tanta demora, ineficácia no serviço e ainda por cima um sabor de carvão na massa. O pessoal quis dar por uma relação voluntária misturada a um quê de obrigação. Era como se devessem ajudar o cara, mesmo que o certo fosse ele ter um salário digno e esquecendo a indiferença ao pedinte de oito minutos atrás. Eu discordo, penso que se é pra ser coerente, deveriam ser solidários sempre. Pois quando deixam de ser, não é necessariamente por falta de grana ou uma visão sistemática, mas pelo critério da sensibilização, quando não da performance altruísta. Fora que...

É gol, gol do Flamengo. Um puta gol chorado do Ronaldinho. Num rompante, eu e o garçom nos abraçamos discretos e até mesmo distantes, porém sem cálculo. Sei que olhando no fundo dos olhos daquele cara, dei as notas amassadas correspondentes aos dez por cento. Havia um nó entre nós, elemento também de identidade, um sentimento de grupo: o Flamengo. Em nada se relacionou a deveres, incoerência ou sensibilização midiática. A questão é que a impaciência, o péssimo atendimento e aquele abraço eram as únicas coisas espontâneas capazes de fazer eu me sentir mais universal, mais gente.

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