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Cultura

Dez centavos

Com uma moedinha a menos no bolso, compreendi mais que nunca aquele que rouba comida

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Marcel Albuquerque*

Como em qualquer outro dia típico, fui ao trabalho e depois à faculdade. Como se tratava de uma quinta, por um conjunto de incompetências com interesses que pouco me favoreciam, não havia aula depois das 20h – mesmo que isto fosse necessário. Pra que não haja incoerência com a realidade, é preciso detalhar que sobrou um incomum trocadinho que permitiu um lanche a mais e que ainda restasse algo em torno de um real além da passagem. Eis que uma menina lá do curso passou por mim na rua. Ela precisava de exatos trinta e cinco centavos pra passagem. Eu tinha pouco mais que isso de contingente, mas não foi problema: mui solidário, dei tudo que sobrava.

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Até essa hora, tudo acontecia normalmente. Mas, num rompante de preocupação, fui conferir se tinha o necessário pra voltar para casa. Ironia do destino: faltavam-me dez centavos. Não conseguia acreditar que, logo após ajudar alguém com o mesmo problema, herdei-o. Olhei para os pontos de ônibus mais próximos, mas não conseguia mais ver a garota. Foi neste exato momento que cogitei estar f... errado. Mas encarei, de começo, como uma mini-aventura. Até porque, dava como certo que encontraria alguma moeda pela rua até chegar ao terminal. Mesmo que não encontrasse, sempre tem uma moeda perdida pela mochila.

Cheguei ao terminal e recebi um veredito cru da realidade: de fato, eu estava f*. Não tinha nada sobrando na carteira, nem uma pratinha brilhante na bolsa, tampouco achei – mesmo depois de muito procurar – moedas pela rua. Entrei num semi-desespero: fui procurando de estação em estação, afinal o preço da passagem não é “inteiro”, alguém deveria ter perdido algum dinheiro. Mas não, não havia nada. Tive, então, que exercer meu ateísmo não-praticante há muito escondido: fechei os olhos e disse sem dizer, querendo sem querer, que se Deus era mais que um amigo imaginário que não procurava há tempos, era só Ele colocar uma mísera moeda de dez centavos e pronto, eu procuraria-O. Contudo, a ressalva, não menos que justa, continha no rodapé: CASO NÃO APARECESSE MOEDA ALGUMA, EU NUNCA MAIS FALARIA COM ELE.

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Não achei nada. Procurei em boteco, achando que algum bebum teria deixado cair um mísero níquel. Quem sabe, perto de algum caixa ou do próprio ônibus. NADA! Então, a solução parecia uma ligação para casa. Só que... por dez centavos? Não valia a pena. Cogitei, alucinado pelo desespero, ir a pé até em casa – coisa que já fiz, sem precisar -, mas além de longe e tarde, estava indisposto – provavelmente, por causa de um maldito risole.

Fui fadado ao que você, caro leitor, pensou ser o óbvio: pedir dinheiro. E o fiz. Qual seria a dificuldade, né? A menina bonitinha achou que fosse cantada e mal olhou. O magnata com um terno de carapaça e algumas compras à mão ignorou. Uma senhora ficou com medo de ser assaltada. Depois disso, fiquei ainda mais inibido. Já não sabia o que tentar. Sem justificar, compreendi mais que nunca aquele que rouba comida. Imagina faltar dez centavos quando falta mais ainda na barriga!

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Por fim, uma ideia genial: comprar uma raspadinha e arriscar. Tal escolha acarretaria em três possibilidades: a)Conseguir o dinheiro suficiente; b)Ficar rico; c)O mais provável: Se fu* de vez.

Enquanto eu enxugava o suor que se arrastava pela minha testa, avistei uma senhora, vendedora de calendários, que eu já havia ajudado várias vezes. Exclamei: - “É ela!”. Muito sem jeito, inverti a situação. Pedi a ela uma esmola. A mulher, com a estranheza estampada em meio às rugas e um buço nada discreto, deu os exatos dez centavos. Segurei com toda força para que não perdesse no caminho, subi no ônibus, entreguei ao cobrador e torci pra estar certo – depois de contar umas treze vezes. Passei pela roleta, um banco estava à minha espera. O cobrador passou... mas não veio me cobrar.

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Desci do ônibus com uma incrível sensação de alívio e me deparei com o maior sarcasmo do acaso. Algo reluzia no chão: nada mais, nada menos que perturbadores dez centavos.

Obs. 1: Deus, ressurreição depois de três dias, beleza. Mas sabe como é... neste mundo desigual em que há monopólio do transporte e pessoas de bolsos vazios, tempo é dinheiro. Então, se for me dar os dez centavos, pague os juros.

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Obs. 2: Confesso, fui dormir pensando se a moça dos calendários tinha chegado em casa.

• Marcel Albuquerque é cronista.

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