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Cultura

"Direito autoral é arma de exclusão social"

Autor de vários sucessos dos anos 80, como "Fixação", "Como eu quero" e "Garotos", o músico Leoni, ex-Kid Abelha e grande arrecadador de direitos autorais, contesta seus colegas que vivem pendurados no Ecad e enxerga na internet um instrumento de libertação; confira seu depoimento a Pedro Alexandre Sanches, da revista Forum

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Por Pedro Alexandre Sanches, na revista Forum

“É uma briga solitária, e uma briga inclusive com os artistas, aqueles que reclamam: ‘O mundo acabou’, ‘a internet veio pra foder com a gente’. Não, não, espera aí, sem internet é que a gente estava fodido! Os privilégios são só para quem está em gravadora, o resto vive em exílio artístico.” O confronto se dá entre o carioca Carlos Leoni Rodrigues Siqueira Jr., conhecido artisticamente como Leoni, e seus colegas de música popular brasileira. Ele discorda de seus pares alocados nas estruturas obscuras do Ecad, o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais, e é dos poucos que gosta de afirmá-lo publicamente.

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Leoni é coautor de um número expressivo de sucessos pop da década de 1980: “Pintura íntima”, “Por que não eu?”, “Como eu quero” “Fixação”, “Nada tanto assim”, “Lágrimas e chuva”, “Garotos”, “A fórmula do amor”, “Exagerado”, “Só pro meu prazer”, “Nosferatu”. Diz receber bem do Ecad. Mesmo assim, passadas as febres de juventude, trilhou rumos contrários aos da elite dos artistas de sua idade ou mais velhos, e fez da internet sua casa, empresa, ágora, palco, palanque.

“As pessoas só reclamam: ‘Tem que cobrar por tudo’, ‘estamos sendo roubados’. Não, não, não, gente, não é isso. Quem estamos sendo roubados? As corporações, as gravadoras, esses sim estão perdendo. Os artistas, não, até porque tem cada vez menos gravadora lançando cada vez menos gente. Deve ter uns 20 ou 30 privilegiados que podem perder alguma coisa. Todo o resto da cultura brasileira ficava alijado nem de fazer muito sucesso, mas de ter uma carreira.” Agora não é mais assim, ele afirma.

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É uma história de muitas idas e voltas. Aos 21 anos, com a banda Kid Abelha & Os Abóboras Selvagens (mais tarde simplesmente Kid Abelha), Leoni virou reizinho das paradas nacionais de sucesso. Com a então namorada Paula Toller e companhia, cravou dois discos cheios de hits pop-rock, Seu espião (1984) e Educação sentimental (1985), numa época congestionada de autores de hits pop-rock: Blitz, Lulu Santos, Marina Lima, Ritchie, Neusinha Brizola, Os Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Ultraje a Rigor, RPM…

A presença de Leoni no Kid acabou com uma pandeirada imprimida por Paula na face do ex-namorado, fórmula de ódio encontrada nos bastidores enquanto no palco o grupo buscava “A fórmula do amor” (1985). A historinha banal era daquelas que entram para a mitologia do pop. “Acho pitoresca, folclórica”, ele ri. “É bacana ter uma história que esteja na história da música brasileira, mesmo puxada para o ridículo.”

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Daí em diante, Leoni seguiu com uma segunda banda, Heróis da Resistência. Assim como a primeira, não era mimada pela crítica musical que, via de regra, fazia o contrapeso do sucesso avassalador dos artistas e bandas destinados mais a produzir bagunça e diversão do que a fazer cabeças. “Nem o Kid Abelha foi aceito no início. Depois, com o tempo, é que as pessoas começaram a falar bem. Na época foi escorraçado, era muito malvisto, o ‘rock de bermuda’. Foi muito ruim de lidar, muito ruim mesmo. Eu era fã de música, não da fama. Queria ter boas críticas.” Não conseguiu pular os muros de preconceitos e efeitos-manada nem no Kid, nem nos Heróis, talvez nem na carreira solo que desenvolve, com entressafras, desde 1993.

Logo na estreia, os Heróis erigiram um hit-chiclete do tamanho dos do Kid, “Só pro meu prazer” (1986). “Noite e dia se completam/ o nosso amor e ódio eterno/ eu te imagino, eu te conserto/ eu faço a cena que eu quiser”, gotejavam versos aparentemente melosos sobre melodia amorosa. Aos 51 anos, o autor tem uma leitura peculiar de sua própria canção: “Tem um lado irônico muito forte, que pouca gente percebe. Acham que é uma canção de amor rasgada, e é muito cruel, de reformular o outro, ‘você é uma merda do jeito que é’, ‘vou te fazer só pro meu prazer’, ‘seus prazeres e sonhos não vêm ao caso’. Não é uma música de amor. Dizem: ‘É a música do meu relacionamento’, caramba!”, diverte-se, lembrando que “Só pro meu prazer” foi regravada em clave sertaneja por Bruno & Marrone. “As pessoas não se tocam da ironia, ou então acham natural: ‘Vou ajudar essa pessoa a ser melhor’. Não percebem que é uma coisa fascista.”

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Talvez “Só pro meu prazer” batesse bem por retratar um tipo de amor vivido por muitos, talvez também um estado espírito da própria indústria de entretenimento em que ele se inseria. “Sem querer, nossa geração foi responsável pela primeira grande monomania no mercado musical brasileiro. Antes as pessoas faziam sucesso, mas não era excludente. Todo mundo tinha seu espacinho no rádio. Quando estouramos, todos os programas de TV e rádio só tocavam rock. Vender 200 mil era bom pra caramba, e vender 100 mil já era muito mais do que a geração MPB vendia antes da gente. Quando entrei na Warner, as carreiras super bem-sucedidas de Guilherme Arantes, Milton Nascimento, Caetano Veloso vendiam 30 mil, 40 mil. A gente vendia muito mais.”

Maduro, Leoni percebe o que não era inteligível no calor da hora. “As gravadoras acharam legal, porque a gente vendia muito e não custava caro. Não tinha que contratar orquestra, arranjador, músicos. Era bem mais econômico. Só que, então, eles descobriram que existiam outras manias mais lucrativas – axé, pagode, lambada, sertanejo. Por que iam ficar aqui vendendo 100 mil se os novos vendiam 3 milhões? A gente acabou sendo vítima do sucesso que fez.”

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A memória de Leoni percorre o antes e o depois dessa transição – e a percepção de seus significados. Sobre a primeira fase, interpreta: “É muito difícil lidar com o sucesso. Em 1982, eu tinha 21 anos e já tinha uma carreira, dinheiro. De repente, parece que você tem direito divino ao sucesso, que aquilo nunca vai acabar, que você descobriu a fórmula. A gente ficou se sentindo importante demais. Caímos de paraquedas, não tínhamos a menor noção se estávamos sendo explorados ou não, ou do que vinha depois”.

Sobre o rescaldo, com os Heróis, também vai direto ao ponto. “Em 1988, fomos gravar o segundo disco em Los Angeles com [o produtor e ex-integrante dos Mutantes] Liminha. Esse foi um fiasco absurdo, porque além de as músicas não serem muito boas pra rádio, a gente gastou uma fortuna. Eu me lembro de o [diretor da Warner] André Midani ir para lá tentar controlar nossos gastos. Liminha estava amarradão, na Disneylândia. Quer aquela guitarra verde de 12 cordas às duas horas da manhã de segunda pra terça? Basta ligar que aparece.”

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O álbum, Religio, deu em nada. “Tínhamos gasto junto com a gravação o dinheiro da divulgação, então o disco foi pro saco. Só depois de vender 100 mil voltariam a pensar em gastar com o disco, mas, se não divulga, não vende 100 mil. Vendeu 20 mil. A gente ficou com uma dívida dentro da gravadora, e o terceiro disco, em 1990, foi feito em condições infinitamente piores. Não tinha o dinheiro da gravadora, o jabá, para investir e fazer tocar. O desinteresse da gravadora era total, e ficamos sem contrato numa época em que ninguém mais queria banda de rock”. A febre de juventude virava vida real para os garotos de “Garotos”, enquanto as gravadoras procuravam as próximas galinhas de ovos dourados.

A ascensão, a queda. E a internet

O primeiro álbum solo, chamado simplesmente Leoni (1993), veio por outra multinacional (a EMI), com um sucesso, a tristonha “Garotos II – O outro lado” (“garotos não resistem aos seus mistérios/ garotos nunca dizem não”), e uma reflexão precoce sobre o drama que se desenrolava nos bastidores, no reggae “Carro e grana”: “Já tive carro e grana e um monte de convites pra qualquer lugar/ hoje eu só ando a pé/ mas eu continuo a andar”.

Leoni reavalia “Carro e grana”. “É a percepção de que o fracasso, ou pelo menos o não sucesso, é também muito importante para você entender em que mundo está vivendo. As pessoas não conseguem manter o sucesso pra sempre, não é assim. Eu ainda era muito iludido com o sistema, achava que com o sucesso de ‘Garotos II’ estava feito, pronto, acabou, como tinha acontecido com o Kid Abelha antes. Comigo não aconteceu. ‘Garotos II’ tocou muito, mas o disco não vendeu bem. Na hora de gravar o segundo, a gravadora não teve interesse, e ninguém mais tinha interesse em mim, porque se espalhou uma fama de que eu tocava bem, mas não vendia.”

Essa história poderia acabar assim, qual uma fábula moral(ista) de ascensão e queda. Mas aí aconteceu a internet.

Fora um single com a lúcida “Tudo sobre amor e perda” (1996), Leoni não lançou mais nada entre 1993 e 2002. “O que fiz mais nessa época foram dívidas.” Em 2002, bancou Você sabe o que eu quero dizer por uma gravadora pequena. “Os meios pra divulgar eram os mesmos: jornal, revista, televisão, rádio. Eu não tinha grana pra participar do jogo nem estômago pra fazer jabá. Então não tocava.” No ano seguinte, a Som Livre, gravadora da Globo, adequou Leoni ao formato em voga de regravar sucessos em roupagens acústicas, intimistas, com participações especiais de outros ídolos mais ou menos caídos de sua geração.

“A Som Livre anunciava o Áudio-Retrato em lugares que têm TV com parabólica, e começou a rolar muito pedido de show no interior. Era guerrilha mesmo, íamos eu, um guitarrista e um produtor, sem técnico nem roadie, a gente montava e desmontava. Foi nessa época que comecei a usar muito a internet”, lembra.

Enquanto os colegas mais conservadores viam – ainda veem – a internet como um inimigo ameaçador, o ex-garoto inconsequente encontrou ali a janela de oportunidade de que precisava para… bem, para continuar trabalhando, talvez mais e mais pesadamente do que nunca. “Eu tinha que criar algum tipo de contato direto com o público, o que era a minha aflição. Sabia que tinha gente que gostava do meu trabalho, mas eles não sabiam que eu tinha lançado um trabalho. Foi em 2004 que entrei no Orkut, vi que tinha uma comunidadezinha que falava de mim, entrei e comecei a conversar com aquelas pessoas. Em 2006, lancei meu segundo independente, junto com o site, um dos primeiros que tinham uma rede dentro, um fórum de discussão. Ainda tem, mas hoje as pessoas discutem mais no Facebook. Passei a focar inteiramente em ser independente, cuidar de internet e show. Esquece rádio e TV, o que tiver disso é lucro, mas não dá pra eu entrar na briga.”

O novo organismo aprendeu a organizar o próprio metabolismo, devagar e sempre. Leoni inventou de lançar singles virtuais mensais, para manter os fãs abastecidos e os próprios desejos criativos alimentados. Entregou sua obra para os admiradores consumirem livremente, de graça. “Os colegas, principalmente os que estão ligados às diretorias das sociedades arrecadadoras, acham uma estupidez. O [produtor musical] Mazzola falou diretamente para mim: ‘Pessoas como o Leoni, que dão músicas na internet, vão perceber que deram um tiro no pé’. Isso não aconteceu, nem vai acontecer, até porque as pessoas cada vez menos precisam comprar ou mesmo baixar música. Ouvem no YouTube”, afirma.

Ele retribui tais críticas com outras críticas, endereçadas àqueles artistas que, por exemplo, terceirizam a própria presença nas redes sociais. “Se o artista está no Twitter e segue todo mundo, que é normalmente a estratégia desse pessoal, o fã sabe que não é especial. Está sendo seguido porque todo mundo está sendo seguido. A internet não é um monólogo, é uma conversa. Se você não faz a sua parte, você aproveita pouco. Pra mim, é muito importante saber o que as pessoas estão achando, ouvir a opinião delas, colocá-las pra produzir e apresentar o que elas fazem também.”

A descoberta dessas ferramentas transformou o modo de encarar cultura, política e vida do coautor de versos gostosos como “diz pra eu ficar muda, faz cara de mistério/ tira essa bermuda que eu quero você sério/ dramas do sucesso, mundo particular/ solos de guitarra não vão me conquistar”. “O que começou como uma estratégia de sobrevivência acabou me ensinando muito sobre cultura, sobre compartilhamento. O que era uma simples posição de negócio virou posição política”, diz.

A politização, assombração das indústrias de outrora, passou a entrar na nova composição: “Com essa coisa neoliberal, a gente tinha perdido a ágora, o local público onde a gente poderia discutir com alguma eficácia para mudar as coisas. Com a internet, a possibilidade de mobilização, ser engajado passou a ser outra coisa. Você pode realmente fazer alguma diferença”.

Munido das novas descobertas, ele transforma rascunho em arte-final. “A gente viveu uma época em que os artistas eram escassos, porque não tinha como não ser. A capacidade das gravadoras de lançar discos era escassa, e o resto estava fora da história. Essa escassez fez com que tanto o público quanto os artistas tivessem uma noção meio de casta, de eleitos. ‘Somos especiais’, ‘somos muito doidos’, ‘podemos fazer o que queremos porque somos artistas’. Com a internet, de repente todo mundo é artista, não tem casta nenhuma. Acho que esse é um privilégio ainda mais complicado de os artistas abrirem mão. ‘Eu não vou competir com esse cara, sou um artista, quem é ele?’. Mas, antes de você ser artista, você não era, era igual a ele. São muitos preconceitos, muito elitismo que os próprios artistas têm.”

O vetor resultante se aproxima do oposto simétrico do tempo em que a indústria dispunha de nós – consumidores, críticos, artistas – só para o seu prazer (ou lucro). “Hoje em dia, tenho um contato com o público que nunca imaginei que fosse ter, e uma liberdade artística que não teria em época nenhuma. Não tenho de agradar a nenhum diretor artístico ou de rádio. Isso me deu uma liberdade de criação e de pensamento que eu nunca tive.” Diz que seu público cativo, quando instado a ajudar a selecionar o repertório de um show, costuma eleger canções mais novas, que entoam em coro na plateia. “Pelo pensamento tradicional da indústria, isso não teria como acontecer.”

Mais que militante pelos downloads gratuitos, Leoni virou um militante político-cultural, daqueles de reivindicar por sua categoria no Congresso Nacional e participar ativamente da CPI do Ecad – mesmo que o escritório continue a remunerá-lo razoavelmente. Suas diferenças com a instituição são menos particulares que coletivas. “Um dos casos que mais me revoltou foi o de uma escola pública do interior que ia fazer uma festa junina, e o Ecad foi lá pra cobrar os direitos autorais do Luiz Gonzaga”, exemplifica. “Como não tinha dinheiro, a escola teve que cancelar a festa. Quem ganhou com isso? Os herdeiros do Luiz Gonzaga com certeza não, porque não receberam dinheiro. A cultura brasileira também não, porque ninguém ouviu as músicas do Luiz Gonzaga. As crianças também não. O direito autoral é usado como uma forma de exclusão social. E as pessoas acham que não, ‘é o meu direito’, ‘direito adquirido’. Ora, todo direito é adquirido, não existe direito natural.”

Poucos garotos sabem bem como Leoni as dessemelhanças entre direitos naturais e adquiridos. Ele os quer, mas prefere dividi-los conosco. E ainda existe quem chame o que ele faz de “tiro no pé”.

Assista, abaixo, a um vídeo de Leoni cantando "Como eu quero":

 

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