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Cultura

Em artigo especial para o livro 'Relações Obscenas', o advogado Cezar Britto disseca a Lava Jato

"Ao tempo da ditadura, a advocacia enfrentou a truculência política do Estado, indo aos porões em busca de contato com os seus clientes, vítimas da ilegalidade. Vários advogados e advogadas sofreram agressões, ameaças, danos à integridade física, tendo a OAB, inclusive, sofrido um atentado à bomba pelo terrorismo estatal que resultaria no assassinato de Lyda Monteiro", diz o advogado Cezar Britto em artigo inédito para o livro "Relações Obscenas"

O que falta para o Deltan Dallagnol desenhar o power point do Bolsonaro? (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)
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247 - A publicação "Relações Obscenas", que reúne artigos sobre a Vaza Jato e será lançada nos próximos dias, traz mais um texto inédito, desta vez, assinado pelo advogado e escritor Cezar Britto. Leia a íntegra: 

O DIREITO DE DEFESA, O TRIBUNAL MIDIÁTICO E O PAPEL DA ADVOCACIA 

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Cezar Britto*

A defesa não é a boba da corte - O direito de defesa é princípio imprescindível ao Estado Democrático de Direito. Fruto da evolução da sociedade, é direito humano por excelência e antídoto natural ao Estado Policialesco. Não podendo se defender, o cidadão fica órfão no seu relacionamento com o aparelho estatal, sendo presa fácil do autoritarismo, da arrogância, da perseguição, da ideologia, da má-fé, da incompetência ou do simples erro do Estado e de seus agentes. Negado o exercício da defesa, somente restaria à cidadania a fé de que todos os agentes públicos são infalíveis, incorruptíveis, isentos de paixão política ou incapazes de arroubos autoritários. Sem a garantia da defesa, os interesses dos economicamente fortes seriam sempre os escolhidos como referência de Justiça, fazendo com que a barbárie seja apontada como sendo a própria expressão do direito.

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Nos tribunais do Santo Ofício (Inquisição), mesmo utilizando a terrível tortura como forma de obtenção da confissão, o direito de defesa era assegurado, inclusive com a inviolabilidade da conversa do inquirido com o seu defensor. O direito de defesa foi também expressamente assegurado na velha Lei do Habeas Corpus inglesa de 1669, que criou pela primeira vez o heroico instrumento de proteção ao direito de ir e vir. Na mesma sequência histórica, a também inglesa Bill of Rights, em 1689, já fazia previsão de que não poderia qualquer homem livre ser privado de sua liberdade ou de seus bens, salvo mediante um juízo legal de seus pares ou segundo a lei da terra. A concepção do devido processo legal – predominante no direito de tradição anglo-saxão – é rigorosamente a mesma em relação ao conceito de Estado de Direito da Europa Continental. 

Não param aí os exemplos da evolução civilizatória a garantir o direito de defesa. A Quinta Emenda da Constituição estadunidense preceitua que: Ninguém será privado de sua vida, liberdade ou bens, sem o devido processo legal, sendo assegurado o direito de defesa através da indispensável assistência do acusado por um advogado. A Constituição da Confederação Suíça de 1874 previa o direito ao julgamento por um juiz constitucionalmente competente (art. 58). A Constituição Mexicana de 1917 reconheceu o direito do cidadão de ser julgado por um juiz natural e não de exceção (art. 13), bem assim o primado do devido processo legal (art. 14, § 1º). A Constituição Alemã de 1919 prescrevia o direito de ser julgado por um juiz independente (art. 103), não se permitindo juízes de exceção (art. 104). 

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Exatamente para evitar os arroubos ditatoriais – e determinada a revogar o que se chamava de entulho autoritário – a Constituição Federal de 1988 abraçou os avanços normativos caracterizadores do Estado Democrático de Direito. Fez-se constitucional o que consta do Pacto de Direito Humanos São José da Costa Rica (art. 8º, 2, d) e da Declaração Universal de Direito Humanos (art. XI, 1). Neste sentido, cuidou de criar um sistema de proteção ao direito de defesa da cidadania (arts. 5º e 6º, CF), inserindo-o no amplo complexo de princípios fundamentais de cumprimento obrigatório, dentre eles o devido processo legal, a proibição de tribunais de exceção, a imparcialidade do julgador, o contraditório, a igualdade processual, a publicidade do processo e o princípio da segurança.

Defender a cidadania é a missão constitutiva e constitucional da advocacia. Exatamente por isso, a Constituição Federal cuidou da advocacia de forma densa, constitucionalizando-a nas diversas formas em que atua (advocacia privada, defensoria pública e advocacia pública), mencionando-a em 19 artigos. Ainda neste contexto, ousou-se fazer da advocacia uma atividade essencial à administração da Justiça, parceira do Poder Judiciário, responsável pela efetivação dos direitos e princípios fundamentais (art. 133). Assim, a Constituição Federal colocou, por meio da advocacia, o cidadão comum no Poder Judiciário.

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O objetivo sempre foi o de impedir que o Estado (polícia, Ministério Público e magistrado), controle de forma uniforme todas as fases do devido processo legal, não permitindo a fiscalização dos atos praticados. Da mesma forma, repartindo as competências, garantir que o Estado respeitasse a advocacia – encarregada do direito de defesa – vedando, sob pena de nulidade do processo e instauração de processo criminal por abuso de poder, que ficasse fragilizada, espionada, bisbilhotada ou vasculhada por aqueles que são encarregados da investigação, acusação ou julgamento. Em síntese mais apertada, a Constituição Federal disse que a advocacia é administradora da Justiça, não é a “boba da Corte”.

Holofotes, autógrafos e o tribunal midiático - As revelações publicadas pelos sites The Intercept Brasil e UOL, pela revista Veja e escritas pelo jornalista Reinaldo Azevedo confirmam o alerta que vários juristas já haviam tornado público. Estas notícias mostram a mistura, em único pacote investigatório-acusatório-julgador, no processo judicial que tramitara na 13ª Vara Federal de Curitiba, tendo como réu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Comprovou-se que deste pacote processual não se sabia quem era o policial, o membro do Ministério Público ou o magistrado. Todos agiam como se fossem uma única e orquestrada voz, impedindo que os freios e os contrapesos constitucionais fossem disparados, comprometendo a necessária imparcialidade do que seria depois julgado. Parecia que todos recitavam como “grito de guerra” o famoso chavão retirado do livro Os Três Mosqueteiros, escrito pelo francês Alexandre Dumas: - Um por todos e todos por um!

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Sabe-se agora – por prova e convicção – que o processo fora conduzido coletivamente, desde o vazamento estratégico de gravações ilegais, passando por divulgações sensacionalistas da imprensa, executando-se conduções coercitivas abusivas, forçando-se prisões para obtenção de liberatórias delações premiadas, promovendo a indução para tornar reais fatos que sequer constavam dos autos, com o magistrado indicando provas a serem colhidas pelos acusadores e até mesmo qual seria a melhor testemunha de acusação para determinada inquirição. O que realmente importava era a estratégia de ter o apoio da opinião publicada para convencer a opinião pública, pouco importando a verdade real ou processual.

Não custa lembrar que se tornara lugar comum a afirmação de que o famoso processo estava alicerçado na “onisciente convicção que dispensa prova”, fazendo-se da demanda judicial um debate que rendia holofotes, autógrafos, palestras milionárias, livros autobiográficos ou de biografia autorizada. E neste pacote popular, os alguns personagens – como revelam as mensagens vazadas – faziam dos processos “emocionantes” novelas, comunicavam seus sentimentos e decisões nas redes sociais internas, não raro lucrando em concorridas palestras, viagens internacionais, finais de semana remunerados na companhia de familiares, audiências parlamentares ou badaladas entrevistas nas redes televisivas. Tudo sem mencionar a autorização para que fossem produzidos filmes comerciais sobre o próprio processo, quando passariam a ser “heróis históricos” da passarela brasileira, inclusive deixando-se fotografar emocionados, enquanto comiam pipocas substitutivas da necessária imparcialidade processual.

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Nestas condições, como não esperar outro resultado além da condenação? Como acreditar que a acusação, repentinamente, perderia o apoio do julgador, ainda mais quando o julgador também comandava a acusação? Como se poderia pensar em julgamento imparcial quando acusador e julgador abandonam os autos para abraçarem, juntos, a escadaria da fama? Como esperar que o processo responsável pela “fama” fosse julgado por eles mesmos como grave erro, que eram falsos os fundamentos dos livros publicados, que deveriam ser rasgados os autógrafos concedidos ou que não mais seriam convidados para palestras, entrevistas e viagens internacionais? Como extrair do acusador e do julgador a sua natureza humana, suas vaidades, paixões políticas ou compreensões ideológicas?

As respostas estão sendo reveladas, pouco a pouco, para a sociedade. Sabe-se, agora, que o magistrado se desnudou da toga, assumiu o seu uniforme ideológico e serve, ministerialmente, ao presidente que se elegeu em razão da condenação do réu que julgara, afastando-o da disputa eleitoral. Na mesma toada, descobriu-se que dois dos acusadores lucravam e pretendiam criar um empreendimento comercial para ampliar os lucros obtidos em razão da “fama”.

Em 2012 – antes mesmo de iniciado o processo agora vazado em seu ilícito bastidor – eu já advertia em livro (140 Curtidas), que “Ao elevar o holofote à condição de fonte de direito, não percebeu o magistrado que trouxe escuridão ao processo”. Na mesma edição, registrei que “Quando sentenciar é confundido com autografar nasce o artista aplaudido. E morre o magistrado vocacionado”. Infelizmente para a democracia, as previsões se confirmaram, tornando autofágica a condenação firmada no processo em que os investigadores-acusadores-julgadores, camufladamente, sabiam que estava mortalmente viciado na sua origem. Era o “Tribunal Midiático” substituindo o Tribunal Legal.  

O papel da advocacia - Narra a História que o imperador Napoleão Bonaparte mandou fechar o Barreau de Paris – a maior organização da advocacia francesa – e cortar a língua dos advogados que lhe faziam oposição. Registra, ainda, o autoritarismo sanguinário de Adolf Hitler quando proibiu os judeus de serem assistidos por advogados e, com isso, impedindo que fosse denunciado o holocausto que iniciava o seu trajeto criminoso nos campos de concentração de Auschiwitz, Treblinka, Sobibó. Nesta mesma linha estava o fascista italiano Benito Mussolini, quando, em uma só noite, mandou incendiar quarenta escritórios de advocacia. E não se pode esquecer também do ditador brasileiro João Figueiredo, quando desabafou que queria alugar o Maracanã para prender os advogados que desafiavam a ditadura civil-militar e o seu patrimonialista plano econômico. 

O Estado Democrático de Direito significa a legitimidade do poder estatal, a vinculação do poder do Estado ao direito, o reconhecimento e proteção da pessoa humana, como também a vinculação dos poderes às leis vigentes e a existência de controle dos atos e decisões por um Judiciário independente. O Brasil não acatou o brado dos que confundem autoridade com autoritarismo, razão por que rejeitou a máxima medieval que afirmava que “Diante da justiça do soberano, todas as vozes devem-se calar”. Tampouco aceitou a ideia do processo secreto e inacessível ao acusado, como previsto no Edito de Nantes de 1598 e nas Ordenações de 1670. Ao contrário, consubstanciado na obrigatoriedade de regras processuais limitadoras do Estado e dos grupos políticos que o sustenta, constitucionalizou o direito de defesa e a advocacia que o torna efetivo.

Como venho registrando em artigos e palestras – anual e repetidamente – entendo que as chamadas “forças-tarefas” ferem as regras constitucionais aqui postas, especialmente quando coletivamente integradas por policiais, membros do Ministério Público e magistrados. Esta conformação viola todo o espírito constitucional protetivo da pessoa humana, especialmente o regime das competências específicas e formadoras do devido processo legal. Ademais, o “Tribunal Midiático” não pode substituir o Tribunal Legal, assim como o aparelho estatal não pode se sobrepor ao direito de defesa, anulando o papel constitucional da advocacia.

Ao tempo da ditadura, a advocacia enfrentou a truculência política do Estado, indo aos porões em busca de contato com os seus clientes, vítimas da ilegalidade. Vários advogados e advogadas sofreram agressões, ameaças, danos à integridade física, tendo a OAB, inclusive, sofrido um atentado à bomba pelo terrorismo estatal que resultaria no assassinato de Lyda Monteiro. Hoje, um dos grandes desafios da democracia moderna é fazer com que a Justiça seja aplicada segundo as regras democráticas estabelecidas na própria Constituição Federal, já incorporadas ao patrimônio da humanidade há várias gerações. Sobral Pinto exigia coragem da advocacia, até porque, como advertiu Rui Barbosa: “O advogado pouco vale nos tempos calmos; o seu grande papel é quando precisa arrostar o poder dos déspotas, apresentando perante os tribunais o caráter supremo dos povos livres”.

    

* Advogado e escritor. Foi presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da União dos Advogados da Língua Portuguesa. É membro vitalício do Conselho Federal da OAB, da Academia Sergipana de Letras Jurídicas e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.

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