“Eu não morro. Apenas fico mais e mais velho”
A frase é de um homem que vive 256 anos, personagem do livro "O ladrão do tempo", de John Boyne, nova leitura e resenha de João Paulo Cunha; escritor "mistura amor e tempo e escreve uma bonita história de paixão, entrecortada por acontecimentos históricos onde o tempo é periodizado", descreve o ex-deputado
247 – Uma história que "mistura amor e tempo", protagonizada por um homem que vive 256 anos. Assim é a obra O ladrão do tempo, de John Boyne, objeto da nova resenha de João Paulo Cunha, da série Janelas do Cárcere. Ele descreve a aventura e a paixão do francês Matthieu Zéla, que deixa Paris com 15 anos "deixando para trás uma lembrança tormentosa do assassinato de sua mãe pelo seu padrasto" e carregando seu irmão mais novo, Tomas.
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"Eu não morro. Apenas fico mais e mais velho"
O amor não se desfaz no tempo. Transveste de esquecimento. Ele é o mais duradouro dos sentimentos. A quentura do momento, os vestígios do passado e as expectativas do que vem são elementos constitutivos do verbo amar. Independe do seu tempo.
A humanidade busca incessantemente uma resposta para esse mistério chamado tempo. Ele é a memória recuperada no presente que tenta eternizar o passado através de lembranças. Esse presente é súbito e, ao piscar, vira pretérito. Sonhamos o amanhã que aguarda a chegada para daqui a pouco.
John Boyne, em seu livro "O Ladrão do Tempo", da Companhia das Letras, mistura amor e tempo e escreve uma bonita história de paixão, entrecortada por acontecimentos históricos onde o tempo é periodizado. São passagens rápidas, lentas e outras de média velocidade. Esses acontecimentos são conduzidos por pessoas virtuosas e imperfeitas que, com características próprias e inseridas nas circunstâncias da época, acabam marcando aquele período.
O personagem carrega em seus 256 anos de existência o amor como uma chama que não se apaga. Eterniza no seu tempo! E se complementa com uma relação de compaixão e gratidão (pois aí localiza o único ponto a dizer que ele não é só no mundo), com um fio de família que o obriga a cuidar, como uma pajem, dos descendentes de seu irmão que vão morrendo pelo caminho de seus longos anos, mas sempre deixando uma semente.
No primeiro capítulo ele apresenta sua história em três tempos e, ao final, resigna-se. O ano é 1999 e ele vive bem: "Participo de uma reunião com os principais acionistas, almoço com o diretor executivo e passeio pelo prédio, tentando pensar em maneiras de melhorar a audiência, aumentar os lucros, expandir a base de consumidores." É um respeitável acionista de uma emissora de televisão e vive "em um apartamento agradável, com face sul, em Piccadilly", centro principal de Londres. Lembra-se de sua crença que a aparência é a mais enganosa das características humanas. "E fico feliz por ser a prova viva da minha teoria", pensava ele que, desde 1793, vivia com a mesma cara. E olhando para frente, concluía: "Eu não morro. Apenas fico mais e mais velho." Para, ao final, resignar-se a espera do ocaso: "Talvez minha vida não seja eterna."
Mas antes de "perceber algumas rugas pequenas sob os olhos" e do "cabelo... ter começado a embranquecer" e de ter visto "debaixo da orelha esquerda uma marca escura, parecida com uma mancha senil", ele se permitiu contar em 24 capítulos, mais o início e o epilogo, uma vida de 256 anos.
Matthieu Zéla é um francês que abandona Paris com 15 anos de idade (nasceu em 1743), deixando para trás uma lembrança tormentosa do assassinato de sua mãe pelo seu padrasto. Carrega em seu colo e, com o andar da obra (563 páginas), percebe-se que também no seu coração, o irmão mais novo, Tomas, que deixará descendentes que nunca mais abandonarão Matthieu.
No navio, atravessando o mar que o levaria a Inglaterra com destino a Londres, ele conhece Dominique, uma menina linda, um pouco mais velha, que o impressiona pelo carinho que demonstra ao cuidar do irmão mais novo que passa mal na viagem. Mas desperta também uma flama no lado esquerdo do seu peito. Nasce então o amor que nunca mais largará Matthieu.
Já em território Inglês e fazendo o trajeto até Londres por terra, Matthieu, Dominique e Tomas acabam vivendo aventuras e desafios. Matthieu descobre a coragem ao assassinar um bronco que encontraram pelo caminho e que quis abusar de Dominique. Descobrem a solidariedade de um casal que, além de dar carona, abrigam os três em sua casa, num povoado chamado Cageley. Matthieu e Dominique começam a trabalhar na mansão de veraneio de um ricaço londrino. Ele cavalariço e ela ajudante de cozinha. Enquanto Tomas começa os estudos morando com o casal que os abrigou.
Nesta cidadezinha Matthieu, que já tinha, apesar de sua pouca idade, vivido acontecimentos marcantes, descobriu o valor da palavra e da amizade. No trabalho, Matthieu conhece Jack, outro cavalariço com mais experiência e com mais tempo de casa e viram amigos ("- Você já viu o mar, Matthie? - Claro! -Eu nunca vi o mar. Mas já ouvi falar sobre ele. O mar, as praias").
O filho do patrão, Nat Peps, é arrogante, estúpido e desalmado. Trata os empregados como escravos. Ele acaba se envolvendo com Dominique e deixa Matthieu triste e desolado. Jack nutre um ódio de classe, de inveja e sonha em breve ir embora do emprego e da cidade. Guarda dinheiro há muito tempo para realizar este sonho e confessa para Matthieu seu plano.
Um dia Matthieu se atraca com Nat Peps e fica em desvantagem, sendo socorrido pelo amigo Jack. Este fere violentamente Nat, aplicando-lhe uma surra que o faz parar no hospital. Jack foge, mas é preso no dia seguinte e comentam uma pena de cinco anos.
Ao visitar Jack na prisão, Matthieu recebe o plano para a fuga. Buscar as economias de Jack escondidas no sótão da mansão, corromper o guarda que cuida da cadeia, arrumar dois cavalos e fugirem. Matthieu se integra ao plano e comunica a Dominique, que sugere outro plano. Pegar o dinheiro de Jack, deixá-lo preso e fugirem os dois (Ela e Matthieu) com o dinheiro de Jack. Matthieu não concorda: "Um preço alto a pagar pela perda da própria honra." De qualquer forma, quando Matthieu vai buscar o dinheiro, à noite, Dominique vai com ele. Ela continua tentando convencê-lo do seu plano ("Jack vai ficar cinco anos preso. Vamos pegar o dinheiro e fugir nós") e apela "Jack não é seu amigo".
Contudo, Matthieu está firme e decidido a ajudar o amigo. "Jack só está preso porque não quis que eu acabasse preso. Ele é meu amigo...nunca vi gesto mais altruísta". Sua atitude "me fez valorizar as amizades, acreditar que ser leal aos amigos e recusar-se a traí-los era uma virtude tão importante... um amigo verdadeiro é algo raro."
Quando estão saindo do sótão, já com o dinheiro em mãos, acirra a discussão entre Dominique e Mathieu. Num descuido abrupto, Dominique cai e morre "empalada em uma lança dez metros abaixo". Dominique jamais sairia da vida de Matthieu e ficaria "segura dentro de mim, longe de estar morta". A vida de Matthieu se definiu ali: "Pela primeira vez na vida, me senti completamente sozinho." Ele ajuda Jack a fugir da cadeia e partem para o mundo.
O livro entrecorta essa fase da vida de Mathhieu, quando ele descobre, já em plena Revolução Francesa, que não envelhece, mantendo a mesma fisionomia de cinquentão. "Em 1793, quando a Revolução Francesa estava no auge, comecei o processo que me transformaria em um ladrão do tempo." Acompanha a Revolução e seus terrores. Seu sobrinho, numa ânsia juvenil, aproxima-se de Robespierre e acaba com a cabeça na lâmina da guilhotina.
Assim, ele passa a desfilar por vários acontecimentos da história da humanidade. Alguns, como ator principal. Outros, como mero coadjuvante. Ele relembra sua participação, exercendo os mais diversos ofícios, em grandes momentos.
Recebe um convite do Papa Pio IX para administrar um sonho Papal de "construir uma casa de ópera na cidade de Roma". Acompanha a revolução industrial e suas mudanças. Encerra o Século XIX com um feito na preparação dos Jogos Olímpicos e que viria a se transformar nas Olimpíadas.
No século XX, Matthieu lembra de sua participação na Hollywood dos anos 20 e na luta contra o Macarthismo, que tanto infelicitou os EUA. Acompanha ainda a queda da bolsa de Nova York e a crise de 1929.
Como dito acima, nos entrecortes, Matthieu mostra suas atribulações e seus prazeres no tempo que a vida lhe reservou. No entanto, o marco divisor de sua vida foi à morte de Dominique.
Apesar dos casamentos feitos e desfeitos e das inúmeras mulheres que perfilaram por suas camas, ele jamais esqueceu Dominique (nenhuma das 19 esposas e das 900 amantes poderiam ser comparadas a Dominique).
No presente, cuidando do sobrinho e trabalhando na TV, sofre ao ter que demitir uma apresentadora e ver o sobrinho fracassar diante das drogas. No entanto, Tommy, o sobrinho internado no hospital por overdose, se recupera e decide tomar um novo rumo na vida. Casado, anuncia ao tio a gravidez da mulher. Matthieu, nos seus mais de 250 anos, se alegra: a descendência dos Tomas estava assegurada. Ele olhava para seu futuro. Nos últimos 9 anos o sobrinho Tommy se tornara parte da vida do tio que vivia acabrunhado com a crise na TV.
Vendo a recuperação do sobrinho e de frente para a necessidade de administrar com dedicação a empresa, Matthieu entrega os negócios ao sobrinho e se despede da vida.
O homem sempre quis durar. Mas, uma pergunta sempre o acompanhou: para que? Ele, sem saber se foi uma dádiva ("Aproveite tudo que sua época oferece, estou lhe dizendo. Esta é a essência da vida.") ou uma punição ("Já vivi na penúria e já vivi na opulência"), viveu o tempo de sua vida. Foi quase eterno. Viveu 256 anos: "No fim, todas as histórias e todas as pessoas se fundem em uma só."
A única certeza é que os homens e sua matéria terminam em pó. Os mortais deixam testamentos, exemplos, histórias e descendentes. Os desejosos da imortalidade tentam se agarrar as barras da eternidade para perenizarem. Bobagem. O futuro é um presente de expectativas. Imensurável. O agora, infinitesimalmente já passou. É tão efêmero o presente que não se consegue medir. E o passado é o presente da lembrança futucando a memória. Algures!
O tempo não é a lembrança do que eu deveria ter sido.
João Paulo Cunha
Fevereiro/2014
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