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Cultura

Ferreira Gullar e eu

O que não coube no discurso, num encontro acidental com o poeta, e o poema que ainda lhe devo

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Sempre que observei alguém manifestar que tinha tal ídolo ou herói, encarei este módulo de assertiva com um estranhamento traduzido na seguinte reflexão: será mesmo que todos têm ou, melhor, precisam deste tipo de referencial? Me esforcei, na adolescência em particular, pra encontrar alguém que se encaixasse na soma de minhas predileções e posições político-culturais. Após constatar que, mesmo esmiuçando todas as pastas, caixas e estantes da minha mente, não conseguia encontrar esse tal, percebi que o máximo condizente com minha subjetividade é admirar. Pela dificuldade de haver linearidade em termos qualitativos na obra ou conduta de um indivíduo, e até pela improvável similaridade subjetiva e de capital cultural, não aprecio em plenitude, mas não sou tão em-si-mesmado a ponto de rejeitar parâmetros. Infelizmente, a maioria destes com quem compartilho de tantos momentos – sem eles sequer imaginarem - já morreram, o que faz de minha contemplação póstuma. Entretanto, existe alguém fronte à tamanha escassez de vozes e poesia. Sujeito das terras do Maranhão, de cabelos mui alvos, pele marcada pelo sem-número de expressões que fez de inquietação e dono de um andar fraquejado: um poeta, o poeta, Ferreira Gullar.

Há pouco mais de uma semana, fui informado que ele estaria em uma de minhas casas, a Universidade Federal Fluminense, num evento promovido para receber os calouros do curso de Letras. Desde então, entre os fluxos intensos do mundo de concreto, fugi para o abstrato: desenhei linhas na cabeça e esbocei criar um poema para entregá-lo. O pior é que não havia tempo suficiente, já que a palestra seria no dia seguinte. Sentei, passei horas elaborando um misto de concepções filosóficas com jogos de palavras. Ainda que fosse um tanto ousado entregar rabiscos de minha autoria, a consequência máxima era ele não me procurar, como houvera de ser, visto que somos desconhecidos um para o outro.

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Enfim, havia chegado a hora. Não consegui parar de olhar para o relógio, mesmo ignorando o movimento preciso dos ponteiros. Tic-tac, tic-tac, tic-tac. Ele não chegava. Saí do auditório, fui para o corredor. Não havia porquê de volumosa ansiedade, era só mais um cara. Tão cheio de significados e valores criados quanto eu. Alguém que não deve ter uma ou outra habilidade que tenho. Por mais que fosse o que fosse, era só mais um cara. Pronto, me convenci momentaneamente até tornar à minha carteira e ter que encarar um veredito. Ele chegou e, por enorme que tenha sido a coincidência, sentou exatamente na minha frente.

No momento em que foi chamado ao tablado, tão errante quanto qualquer um, já trôpego pelos anos passados, caiu e quase se chocou de encontro à quina da mesa. Pensei em levantar, mas a inércia provocada pelo nervosismo mandou-me ficar sentado. Afinal, naquela noite, conheci aquele que tanto fecundou em mim o que hoje nasce, que por hora estava ali tão perto, tão poeta, tão gente. Gente que propiciou emoções dualistas: ele já não era mais o poeta de outrora e, tão por isso, eu discordava e concordava com ele – se eu mirasse no espelho, também já não encontraria o mesmo reflexo.

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E por entorno de duas horas ouvi e vi as faces mais diversas. Um homem que não acha que é fora de moda ser político, que pensa, que vive de palavras, mas que apesar de dizer “a poesia se faz por desejar o outro”, já parecia cansado do sem-número de entusiasmos e utopismos provenientes do mundo acadêmico tão enclausurado. Apregoava que sua poesia era espontânea, não carecia de Teoria Literária. Nitidamente, seu 'outro' interlocutor não é a Universidade.

Diante disso, havia aplausos dentro de mim. O mesmo não ocorreu quando expressou sua crença de que o ser humano tem uma essência e, por conseguinte, apenas torna-se o que sempre foi. Afirmava que o poeta nasce poeta, pensamento que, para um ateu, significa ter como pilar um biologismo rudimentar e falacioso. Não neguemos inteiramente a genética, mas reconheçamos o quão somos construídos nas dinâmicas sociais.

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Seus versos sonoros, inclusive os em oposição aos meus, não me cansavam. Questionado sobre a qualidade dos que fazem sucesso na poesia contemporânea, demonstrava categoricamente crer que se deve ao mérito destes. Aqueles com obra de poder atemporal, seriam reconhecidos um dia. Gullar parecia não observar que tantos gênios jamais serão conhecidos, porque, como ele repetia, a vida é injusta. Mozart só veio a ser considerado gênio tempos depois de seu falecimento, não por anacronismo, mas porque os conceitos são mutantes, construídos culturalmente, dentro de contexto e historicidade.

Hora do momento derradeiro. Entrei na fila de autógrafos, com o Poema Sujo em mãos. Não queria ser tiete, mas como eu poderia ir embora sem ao menos falar com ele? O problema era a impossibilidade de superar a relação admirador x admirado. Ferreira Gullar, um dos poucos indivíduos que admiro, estava diante de mim e jamais compreenderia o quanto suscitou de perguntas, tampouco vislumbraria minhas réplicas. O máximo que consegui foi balbuciar meia dúzia de palavras bonitas, ensaiadas em um discurso estabanado que pensei durante a palestra, além de pedir a dedicatória endereçada à minha “moça branca como a neve” – que não precisou me levar no esquecimento. Em resposta, apenas uma risada quase silenciosa, exausta da noite. Tratava-se apenas de mais um cara. Admirável, mas incapaz de suprir as expectativas de uma imagem criada à distância, baseada na seleção do que ele é em excelência.

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Não é justo que julguem quem ele é pelo que digo, porque minhas palavras são incapazes de sê-lo. Ele é muito do que eu vi, assim como sua obra é mais do que ele. Afinal, o significado é público, então as interpretações dos leitores ultrapassam sua criação. Já indagaria o poeta – e não qualquer um, senão ele: “O que o poeta quer dizer no discurso não cabe, e se o diz é pra saber o que ainda não sabe (...) Como enfim traduzir na lógica do ouvido o que na coisa é coisa e que não tem sentido?”.

Confesso não ter tido coragem de entregá-lo o poema, pois é de sua natureza ser obra inacabada. Ferreira Gullar, o poeta, não morreu e te digo porque será imortal: o poema que lhe devo, é de sua autoria - sou eu.

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• Marcel Albuquerque é cronista

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