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Cultura

Namorado de minuto

A crônica de um amor fugaz e diminuto, dentro de um ônibus

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“Dinheiro ou cartão?”, perguntou o cobrador do minimizador de passos para a escravidão – vulgo trocador de ônibus. Como sua submissão ainda era para com os pais, o pagamento era em pratinhas, que pouco valem, mas muito custam no fim do mês.

Uma vez que ela tinha sido a segunda passageira a entrar no ônibus, ficou observando todos que chegavam. Antes de tudo, calculou: “Lado direito ou lado esquerdo? Sempre falam pra se sentar do lado do motorista, pra não se machucar em caso de acidente, mas se o acostamento é do lado direito, ele vai se desviar por lá, então uma batida seria do lado esquerdo”. Mas, como mamãe vive recomendando, ela foi à esquerda mesmo – afinal, se sempre dizem isso, deve fazer algum sentido, pensou. Pra completar, ficou ali pelo meio mesmo, porque se na frente é perigoso, atrás, naquele horário, é muita bagunça.

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Para cada um que chegava, mente fértil que ela tem, chutava profissões e, na bola de cristal de seus palpites, brincava de adivinhar a vida de estranhos. O velhinho que poderia sentar na frente e ficou lá pra trás, junto com a menina de saia: tarado; Uma mulher descabelada, com cheiro forte de água sanitária: empregada sofredora e esforçada ou vadia desleixada – se é que vocês entendem; O rapaz com a blusa do Che, óculos de armação grossa e barbão: algum militante partidário que queria mudar o mundo, com palavras fora da realidade de Mariazinha, ainda que reivindicasse saber o que era melhor pra ela mesma – ou seja, chato e pretensioso!

O que encucou Mariazinha é que todos os personagens daquela cena iam entrando e ninguém sentava em sua companhia. Era a mochila que ocupava espaço em demasia? A perna muito aberta, por estar morta de sono? Teria ela cara de santinha demais para algum homem vir para sentar-se ali? Talvez, estivesse feia. Quiçá, com o cabelo fedendo – pois só ia lavar daqui a dois dias. Pranchinha, sabe como é. Não, ela se auto-sugeriu que deveria ser porque as pessoas gostam de ir na frente ou atrás e a parte média é o que sobra. Ah, mas olha lá,olha lá! A mão estava no outro banco, parecia que estava guardando lugar pra alguém. Devia ser isso. “É isso”, disse. O fato é que ninguém senta ao lado de alguém no ônibus se há um par de bancos vazio – as pessoas querem espaço e distância.

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E então chegou alguém que a despertou. Cabelo baixinho, barba por fazer e moreno – mas com pelinhos loiros na raiz, deve ter sido loiro quando pequeno. Olhos verdes, talvez esverdeados, não deu pra perceber. Daquela beleza imperfeita, própria para quem tem um algo imperceptível, porém avassalador. Sua roupa era uma calça jeans surrada, uma camisa social que apertava um pouco no peito – deve fazer exercícios – e um sapato brilhando – deve ser caridoso e ter ajudado um engraxate. Realmente, trata-se de um bom rapaz. E, no mais, algumas pulseirinhas, quebrando sua imagem de rapaz sério. Se bobear, a sobriedade do vestuário era porque está procurando emprego – ou seja, além de tudo, é dedicado. Dentre os apetrechos no braço, uma indicação de crença em Santo Expedito, o que não batia com ela, pois, apesar de evangélica, quem ela queria naquele momento era Santo Antônio.

Mirava ele como criança querendo doce, só não sabia como abordá-lo. O que falaria? Aquele ali não era lugar para ficar com alguém, muito menos àquela hora. Pra piorar a inquietação da menina, parece haver retribuição. Se revezam em olhares, segundos intercalam o cruzamento. Ela não viu de fato ele olhando para ela, mas sabe que o fez, assim como se conhece o gosto de barata sem comer.

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Mas e aí? Deve falar de futebol, esperar alguma deixa? Ou parar de fazer doce? Ah, claro, doce: é só oferecer uma bala. Uma abordagem sutil, mas de claras intenções. Será mesmo? E se ele não entender ou, muito pior, achar que ela está insinuando que ele tem bafo? Ok, melhor não.

Tamanho era o deslumbre com aquele rapaz, que ela só sabia o nome porque viu mexendo na carteira. Diga-se de passagem, também reparou nas mãos que manuseavam-na - não havia aliança. Só que...opa! Um livro de poesias. Será que está apaixonado? Será que tem um desamor? Será que ama apenas as poesias? Será que, se amasse Mariazinha, faria uma pra ela?

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Reticências. Os pontos passam e nada acontece. O tempo passa e o nada continua a a acontecer – boa prova de que o tempo não é senhor de nada. Sua ansiedade aumenta, junto com o calor, ao passo que diminui a distância para casa. Suas pernas se tocam. Ela consegue sentir, por debaixo daquele jeans grosso, um carinho delicado – mostrando que, apesar da cara de homem, tem sensibilidade. Mas e aí, senhores? Deve ela arrastar a perna nele? E se parecer vulgar?E se ele não entender? Ou, como não deve ser, se ele estiver encostando nela sem querer?

Ela está morrendo de sono, mas não quer dormir. Apesar de também não querer acordar – aquele sonho lhe parecia suficiente. Na verdade, ela não quer que ele a veja de boca aberta, de tão cansada. Ou, quem sabe, é o receio dele perceber que ela usa aparelho. Mas... vejam que sorte: ele também usa!

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Em breve, ele vai descer do ônibus. Ela não terá feito nada. Melhor dizendo, chegou a imaginar um beijo quente, com aquela barba arranhando seu rosto, deixando marcada a sua passagem. Devo dizer que, tratando de arranhão, ela imaginou mais, mas vamos censurar o que ela também policia em si.

A Maria mulher tomou a frente da Maria menina: respirou fundo, puxou assunto e deu seu jeito sorrateiro de ir ao que queria. Perguntou a ele se pretende se casar na igreja e quais seriam os nomes dos seus filhos. Ele gosta de ‘Ariel’, por causa do anjo – ela, por causa da pequena sereia. Porém, ela quer um casal, então precisa de um nome para o garoto – e ele para uma garota, pois acha que ‘Ariel’ é nome de menino. Nada importa diante daquele encanto recíproco.

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Ele encosta nela, pedindo passagem e ela acorda. Ele vai descer, e ela que cogitou acompanhá-lo, atordoada com o que acabara de sonhar, não o fará porque está atrasada, mas quis ver, em câmera lenta, sua despedida.

Ele se foi. Levou-a, sem saber. Talvez, o amor da vida dela. Provavelmente, uma ilusão passageira. Algo nele fazia relembrar o ex, mas soava como sendo o inverso: ela via no antigo namorado algo que fazia se compenetrar nesse estranho. Seria o cheiro, a forma de gesticular ao conversar no celular? O sorriso de canto de boca? Na verdade, a sensação estava era impregnada na Mariazinha, pois o carinho no outro era pra fazer bem às suas mãos e a fome que tinha do estranho era a busca de amar a si.

Piscou os olhos de novo e estava no terminal. Mais um namorado diminuto.

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