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Cultura

Não quero ser grande

Tempo, tempo, tempo, tempo. Aniversário! 24 anos, Marcel, 24 anos! Idade que não é marco de porra nenhuma. Os 21 tem lá seu peso. 24 é apenas um sussurro: é hora de se travestir do homem que está por vir

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Aniversário é a boda de si mesmo, com o digníssimo direito à confirmação de votos do auto-casamento. Mensuração tiquetaqueada da capacidade de suportar a inseparável própria companhia. E cá está Marcel, com 24 anos e uma semana completos de razoável êxito nesta árdua tarefa – que eu me desculpe o atraso, mas não somos lá organizados, por isso o parabéns atrasado.

Recordo Marcel nos idos da década de 90, quando sua família transitava de casa pelos afluentes do Rio de Janeiro, restaurando a vida como no vídeo-game, impedindo o menino de ter uma infância repleta de amigos. Marcel era um guri que conciliava dentes de leite e acavalados, catequese e questionamento metafísico – a bem da verdade, sem ter muita noção disso. Para ele, era época do descompromisso permitido e até estimulado, da fadiga companheira das caracas nas dobras do corpo e não das atuais rachaduras mentais em busca de ser coerente. Os painéis naturalmente infantilóides, juntos aos bolos nada discretos, bexigas um tanto coloridas e blusas sujas de algum doce escorrido formavam o cenário, apesar de mutáveis de acordo com os anos. A única coisa que se perpetuava a olho nu era um rabinho de cabelo cultivado por Marcel, lembrado de ser esquecido de cortar, numa referência a Peter Pan. Francamente, não sei ao certo se o personagem tinha esse tal rabicó, é só o que aquele Marcel me conta.

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Pouco tempo depois, largou os bonecos numa favela – me arrependo por Marcel não ter guardado algum. Como, pra ele, Superman tinha outro nome e os Power Rangers não formavam um grupo – inspiração da banda Restart? -, abandonar a brincadeira fora mais doloroso, pois se tratavam de criações suas, amigos imaginários encolhidos. A despedida aconteceu quando as espinhas surgiram no rosto e a malícia nas mãos. Seu jeito de canalizar o desejo criador, sentenciem assim os analistas ou não, foi passar a escrever historinhas. Indicado a prestar prova para o Colégio Naval, abdicou da oportunidade de ser defensor [ou parasita] da pátria nem sempre gentil – sirva-se com a ideologia que lhe couber – em prol de tornar-se, dizia, escritor de novelas.

Ainda que os personagens aristocráticos e hierarquizados não lhe aprouvessem, sempre quis ser Napoleão, grandioso. Daí, na hora supostamente decisiva de escolher uma profissão, secundarizou a escrita e foi de encontro ao engajamento político, instrumentalizando as Ciências Sociais, com sintomas ligeiramente megalomaníacos. Recebeu um bolo, coitado. Frustrações que a dialética lhe trouxe: não conseguiu muita coisa além de, destinando-se ao desenvolvimento lógico, compreensivo e interpretativo da realidade, descobrir que a vida não tem um sentido essencial, portanto não havia cabimento em incumbir-se de ter qualquer papel missionário. Qualquer interação deveria, assim, se basear no gozo – mesmo que pudesse resvalar nos outros, o que chamam “solidariedade”. Resolveu tornar aos escritos, tão amigos imaginários quanto os bonecos, mas que pareciam, diferentemente de Marcel, serem sedentários e com moradia fixa em arquivos .doc.

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Mas, senhores, de que eu falava? Ah, sim, do aniversário de Marcel. Me permitam, hoje ele merece, pois esta crônica é uma homenagem. E já que estou a comentar meus escritos errados em linhas retas, peço perdão pela certa descontinuidade deste texto, mas é disso que deve viver um cronista: o completo desinteresse e inabilidade para observar o mundo exclusivamente através da obviedade factual, com um tempo linear.

Tempo, tempo, tempo, tempo. Aniversário! 24 anos, Marcel, 24 anos! Idade que não é marco de porra nenhuma. Com 15, a menina vira mulher, aos 18 se alcança a maioridade. Os 21 tem lá seu peso. 24 é apenas um sussurro: é hora de se travestir do homem que está por vir. No caso de Marcel em especial, isso foi deflagrado por ter acabado de sair de casa. Você só percebe o quanto nada acontece devido ao tempo quando ninguém te faz as coisas. É como andar na rua: espaço que o tempo é, não te move, você que o percorre. Acostumado a ser inerte em relação aos detalhes rotineiros domésticos, impossível não estranhar que a infiltração não suma sozinha da parede , que se adiar mais a compra da mangueira pra máquina vai faltar roupa logo-logo. Vai ver, existia um curso para habilitá-lo adulto e Marcel não se matriculou.

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É nesse tipo de situação que todo mundo se encara no espelho e pergunta: - “Será mesmo que a gente só sente falta quando perde?”. Parecemos estar diante de uma oposição sem fuga: como diria Sartre, “o inferno são os outros”, mas digo eu, os outros próximos, uma vez que é fácil apreciar o distante, pois nos toca pouco. Nossos pais sempre são os piores, dos outros os melhores – concepção inversamente proporcional aos avós. Não à toa, a Literatura ensina, o movimento que vem nega o que passou, pois sempre “se mata o velhote inimigo que morreu ontem”. Tudo teu que é novo, coloca o que é de teus pais como velho. Daí, já que seus pais foram a oposição aos seus avós e você é a oposição aos teus pais, existe a chance nada remota da casa da vó ser um incrível aconchego. E você achando que era só o misto de bolo de fubá com o cafuné depois do almoço!

Saudoso, mas com a necessidade do devir a seguir, fiz uma mini-festa para celebrar a data de Marcel. Não havia painel, crianças correndo e quase esquecemos do bolo. Em vez de reunir amigos no mesmo lugar e confirmar que de nada adianta, porque eles se fragmentam colados aos seus nichos, resolvemos fazer uma reunião com os mais íntimos quase debruçados um no outro, apartados na sala do apertamento. Marcel não fez sequer um amigo na festa, como fazia em todas enquanto infante. Dessa vez, reiterou todas amizades: variamos de debates epistemológicos para piadas e de piadas para orgasmos. O trivial sexo oral... digo, verbal. Tsc! Podem imaginar o que for de maior satisfação. Lá no fundo, toda conversa é sobre gozo mesmo – só mudam os buracos a serem preenchidos. Falando em entra-e-sai, de agora em diante, não há mudança que tire seus amigos de perto, são sua família por opção. Quanto à outra família, a de natureza, de criação, de Édipo: optou vivê-la de verdade, sem se ater ao pragmatismo científico moderno. Puro amor incondicional.

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Devo confessar, a famigerada festa no apê suscita-me memórias tão diversas e excitantes que não cabem nesta crônica. Quem sabe, finjo ter acontecido em outro momento e divulgo. Agora me atenho às velhinhas já apagadas. Hoje, em celebração quase tardia dos 24 anos, eu, Marcel, escrevo este texto em homenagem a mim mesmo, para se um dia não me aguentar mais, lembrar de quem fui e aí poder me reconhecer. É isso, exatamente isso que preciso saber que tenho, porque anda comigo desde quando ainda possuía o rabicó e espero carregar da natureza infantil: o desejo de inventar o ininventável ao escrever a novela da minha vida. De resto, muita saúde, paz e sucesso. Quanto a este singelo presente, não liguemos, é só uma lembrancinha.

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