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    Pela cultura e pelo país, o jeito é ‘ir pra rua, tocar, cantar, fazer a nossa parte’, diz Moacyr Luz

    “A gente está desperdiçando a oportunidade de crescer com educação, com cultura. Mandar filmar professores… São coisas impensáveis”, diz o compositor carioca Moacyr Luz

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    Da Rede Brasil Atual - Aos 61 anos, completados em abril, Moacyr Luz conta que recentemente sentiu tristeza, uma certa depressão, pelo que acontece com o país. “A gente está desperdiçando a oportunidade de crescer com educação, com cultura. Mandar filmar professores… São coisas impensáveis”, diz o compositor carioca, que imediatamente dá a receita para resistir. “Ir pra rua, tocar cantar. É fazer a nossa parte”, afirma Moa, como é conhecido, ao lado do músicos que formam o Samba do Trabalhador, que nesta sexta-feira (28) estrearam um formato novo do programa Hora do Rango, gravado ao vivo no Sesc da Avenida Paulista, que lotou durante as duas horas de apresentação.

    A nota triste durou pouco. Conversando com Oswaldo Luiz Colibri Vitta, apresentador do Hora do Rango, destaque da Rádio Brasil Atual, Moacyr brincou, tocou, cantou e contou histórias saborosas de suas parcerias. Como a que resultou na música Saudades da Guanabara,  no final dos anos 1980, uma incomum parceria entre dois letristas do primeiro time da MPB, Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro.

    Estavam os três na casa de Moacyr, na Tijuca, zona norte carioca, diante de um samba cuja letra Beth Carvalho pediu para mudar. A cerveja acabou, e Aldir Blanc subiu até seu apartamento para pegar mais – ele e Moacyr moravam no mesmo prédio, no quarto e no primeiro andares. Pela narrativa, não se sabe se voltou com a bebida, mas depois de pouco tempo tinha pronta metade da música. Talvez se sentindo provocado, Paulo César fez logo a segunda parte. Lá pelas 7 da noite (“Para ela, era meio-dia”), Moacyr ligou para Beth e cantou a música toda. Trinta anos atrás, a sambista lançava LP com a canção que deu título ao álbum, Saudades da Guanabara. “Falar da Beth me emociona muito”, diz Moacyr.

    A pedido de Colibri, o compositor fala sobre a origem do Samba do Trabalhador, movimento surgido há 14 anos no Clube Renascença, fundado por negros, no Andaraí, pequeno bairro da zona norte do Rio. Desde então, as apresentações são semanais, sempre às segundas-feiras. “Só se acontecer o imponderável, uma tempestade dessas de filme”, diz Moacyr. “Não foi nada programado. No primeiro dia, tinha 50 pessoas. No segundo, 200. A gente já viu coisas inacreditáveis, 2 mil pessoas la dentro e 2 mil fora.” Para o samba, ele diz que gosta da casa cheia. “Praia deserta é coisa para recém-casado”, brinca o compositor, que conta ter Ary Barroso como primeira referência musical. Coincidentemente, ambos flamenguistas.

    Tem que saber tocar

    O público continua chegando ao Sesc, se acomodando em cadeiras, almofadas ou em pé. Muita gente do samba paulista. Moacyr recorda seu primeiro show em São Paulo, em 1982. Lembra também de apresentações no Villaggio Café, espaço já desativado no bairro da Bela Vista (Bixiga), com Luiz Carlos da Vila, dona Ivone Lara. Shows com o grupo Café com Leite, que depois se tornaria o Quinteto em Branco e Preto.

    E aproveita para apresentar seu grupo. “A maioria está comigo há 14 anos. Tem dia que eu erro o nome…”, afirma. “Quase todo dia”, brinca um deles. Estão no palco Daniel Neves (violão 7 cordas), Alexandre Marmita (cavaquinho), Nego Alvaro e Júlio de Oliveira (percussão), neto de Silas de Oliveira, compositor que morreu em uma roda de samba, em 1972. Mais adiante, eles cantarão Aquarela Brasileira, samba-enredo composto por Silas para a escola Império Serrano, no carnaval de 1964. Mas a primeira a ser tocada é A Reza do Samba, de Moacyr e Gustavo Clarão.

    Pausa para falar que “no samba não tem essa coisa de corpinho”, tem que saber tocar. E nem idade: Moacyr lembra de gente que começou a aparecer depois dos 50 ou até dos 60, casos de dona Ivone Lara e Clementina de Jesus. Comenta diferenças entre sambas enredo, de raiz e de mesa, e vai para a segunda canção, Toda Hora. Os demais músicos se apresentam, contam um pouco de sua história, e já é hora de Coração do Agreste, parceria de Moacyr e Aldir Blanc.

    Durante o programa, Moacyr Luz comenta sobre sambas-enredo e seu contato com o universo das escolas de samba. “É um mundo totalmente diferente. Encantador e assustador ao mesmo tempo”, diz o autor de composições para Renascer de Jacarepaguá, Grande Rio e Paraíso do Tuiuti, que se projetou com Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?, sucesso do carnaval de 2018 (“Pela luz do candeeiro/ Liberte o cativeiro social”.)

    Moacyr fala também de seu trabalho como produtor, responsável por dois discos de Guilherme de Brito, famoso parceiro de Nélson Cavaquinho, e pelo único álbum de Casquinha da Portela. E conta que ele mesmo está para lançar um trabalho, já emendando com as dificuldades impostas pela nova realidade da indústria fonográfica: quem hoje em dia consome CDs e DVDs?

    Uber e pirataria

    O tema rende outra história: um dia, Moacyr estava saindo do mercado e fez sinal para um táxi, enquanto falava ao celular com sua mulher. O motorista achou que ele estava, na verdade, pedindo um Uber e começou a discutir, falando que aquilo tinha acabado com sua vida. Foi quando Moacyr reparou que no carro havia vários discos piratas, e foi à forra: “Sabe que eu sou compositor? Isso (pirataria) acabou com a minha vida”.  Sobre direito autoral, ele afirma: “Tem mês que eu compro um carro, tem mês que eu compro uma caixa de fósforo. Não dá pra contar”.

    Depois de Pra quê pedir perdão?, Moacyr conta a história de outra música, Estranhou o quê?, que segundo ele tem duas origens. A primeira vem do projeto Batucadas Brasileiras, coordenado por Robertinho Silva, com oficinas de percussão para jovens. Lembra das dificuldades daquele meninos, sempre negros, tentando aprender um instrumento. A segunda vem de Angola, quando, em Luanda, ele observava “iate pra lá, iate pra cá”, sempre com negros a bordo. Alguém notou sua curiosidade e afirmou: “Tá estranhando o quê? Aqui quem manda somos nós”. E aí surgiu a composição: “Estranhou o quê?/ Preto pode ter o mesmo que você”.

    Compor não exige recolhimento nem silêncio, explica o autor de mais de uma centena de obras. “Eu faço música com televisão ligada, empregada gritando”, diz, para emendar que o disco novo trará uma parceria com Zeca Pagodinho. “Estou apaixonadíssimo por essa música”, conta. O público pede, mas ele afirma que não pode cantar. Vida da minha Vida, parceria de Moacyr e Sereno, é um dos sucessos de Zeca. Foi composta em 2006, mas foi preciso um pouco de paciência, porque a gravação só aconteceu em 2010. Refere-se a Zeca como “o maior artista vivo do Brasil” e conta que ele escuta diariamente a Ave Maria.

    Dá tempo ainda de falar sobre o seu Rio de Janeiro, “um grande reflexo do Brasil”, sofrendo com violência urbana e outras mazelas. “Não saio de lá por nada deste mundo.” Sobre o país, ele pede “respeito às diferenças”.

    Alguém lembra de Beth Carvalho e Ivone Lara, cita Élton Medeiros, com problemas de saúde, e quer saber se esses e outros artistas da chamada velha-guarda conseguiram o devido reconhecimento pelo que fizeram para a música brasileira. Imediatamente, ele recorda da capa do disco Esquina Carioca, lançado em 2000. Uma fotografia com seis pessoas à mesa: Walter Alfaiate, Ivone Lara, Luiz Carlos da Silva, Beth Carvalho, João Nogueira e o próprio Moacyr. Os outros cinco já partiram. “Quando você decide fazer a samba, é por amor à música, é dedicação. Você sabe que não vai ter moleza”, afirma. “A velha-guarda sempre dá um jeito de sobreviver. Com dignidade.”

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