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Cultura

Relações Obscenas: mais um artigo inédito para o livro sobre a Vaza Jato, desta vez de Vanessa Grazziotin

A ex-senadora pelo PCdoB, Vanessa Grazziotin, afirma que a reportagem do The Intercept sobre a Lava Jato permanece como testemunho do vale tudo em que mergulhou a democracia brasileira. Ela diz: "o conteúdo das mensagens é gravíssimo. A seletividade, o desrespeito às leis, que chocam a população, deveria no mínimo gerar, nos agentes da lei, um sentimento de que algo há de ser feito, à luz sempre do estado de direito e no eixo da democracia."

Brasília- DF. 02-07-2019- Ministro Sergio Moro durante depoimento na CCJ da câmara. Foto Lula Marques (Foto: Marcelo Camargo - ABR)
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247 - A ex-senadora pelo PCdoB, Vanessa Grazziotin, afirma que a reportagem do The Intercept sobre a Lava Jato permanece como testemunho do vale tudo em que mergulhou a democracia brasileira. Ela diz: "o conteúdo das mensagens é gravíssimo. A seletividade, o desrespeito às leis, que chocam a população, deveria no mínimo gerar, nos agentes da lei, um sentimento de que algo há de ser feito, à luz sempre do estado de direito e no eixo da democracia."

Leia o artigo inédito de Vanessa Grazziotin, feito para a publicação "Relações Obscenas", volume que conta com a colaboração de vários autores renomados do direito, da psicanálise e da ciência política, a ser lançado em setembro pela editora espanhola Tirant Lo Blanch:

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“COM O SUPREMO, COM TUDO”

Vanessa Grazziotin[1]

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A expressão que dá título a esse despretensioso artigo foi dita em meados do mês de março de 2016 pelo senador Romero Jucá, num diálogo telefônico com Sérgio Machado, então presidente da TRANSPETRO, e foi divulgado pelo jornal FSP, em maio de 2016.

Estava em plena ebulição o movimento e as articulações pelo impeachment da presidente Dilma. No diálogo, o senador sugeria uma "mudança" no governo federal para viabilizar um “pacto político” e "estancar a sangria" representada pela Lava Jato. 

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A fim de reavivar a memória de todos e por sua atualidade diante de outras gravações, igualmente comprometedoras, me permito transcrever aqui parte do referido diálogo, cuja gravidade e sordidez falam por si só.

SÉRGIO MACHADO - Mas viu, Romero, então eu acho a situação gravíssima.

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ROMERO JUCÁ - Eu ontem fui muito claro. [...] Eu só acho o seguinte: com Dilma não dá, com a situação que está. Não adianta esse projeto de mandar o Lula para cá ser ministro, para tocar um gabinete, isso termina por jogar no chão a expectativa da economia. Porque se o Lula entrar, ele vai falar para a CUT, para o MST, é só quem ouve ele mais, quem dá algum crédito, o resto ninguém dá mais credito a ele para porra nenhuma. Concorda comigo? O Lula vai reunir ali com os setores empresariais?

MACHADO - Agora, ele acordou a militância do PT.

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JUCÁ - Sim.

MACHADO - Aquele pessoal que resistiu acordou e vai dar merda.

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JUCÁ - Eu acho que...

MACHADO - Tem que ter um impeachment.

JUCÁ - Tem que ter impeachment. Não tem saída.

MACHADO - E quem segurar, segura.

JUCÁ - Foi boa a conversa mas vamos ter outras pela frente.

MACHADO - Acontece o seguinte, objetivamente falando, com o negócio que o Supremo fez [autorizou prisões logo após decisões de segunda instância], vai todo mundo delatar.

JUCÁ - Exatamente, e vai sobrar muito. O Marcelo e a Odebrecht vão fazer.

MACHADO - Odebrecht vai fazer.

JUCÁ - Seletiva, mas vai fazer.

MACHADO - Queiroz [Galvão] não sei se vai fazer ou não. A Camargo [Corrêa] vai fazer ou não. Eu estou muito preocupado porque eu acho que... O Janot [procurador-geral da República] está a fim de pegar vocês. E acha que eu sou o caminho [...]

JUCÁ - Você tem que ver com seu advogado como é que a gente pode ajudar. [...]. Tem que ser política, advogado não encontra [inaudível]. Se é político, como é a política? Tem que resolver essa porra.... Tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria [...]

MACHADO - Rapaz, a solução mais fácil era botar o Michel [Temer].

JUCÁ - Só o Renan [Calheiros] que está contra essa porra. 'Porque não gosta do Michel, porque o Michel é Eduardo Cunha'. Gente, esquece o Eduardo Cunha, o Eduardo Cunha está morto, porra.

MACHADO - É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional.

JUCÁ - Com o Supremo, com tudo.

MACHADO - Com tudo, aí parava tudo.

JUCÁ - É. Delimitava onde está, pronto. … (Folha de São Paulo, 23.05.2016)

Frente a tão graves revelações, chegamos mesmo a imaginar que poderíamos estar diante de uma possível reviravolta no cenário político de então que, compreensivelmente, nos era totalmente desfavorável. E que, por fim, a lei e a justiça prevaleceriam.

Que nada! Tais revelações – a confissão explícita de uma ação criminosa e golpista - foram solenemente ignoradas e em nenhum momento abalaram os rumos do golpe. O grande acordo, uma enorme concertação de direita, envolvendo agentes brasileiros e estrangeiros, estava consolidada.

O golpe foi parte da estratégia geopolítica do império americano.

O impedimento da presidenta Dilma Rousseff (PT) era apenas o obstáculo imediato e mais visível para que eles voltassem a aplicar, em larga escala, a velhíssima política de estado mínimo e supressão de direitos sociais dos trabalhadores, bem como de submissão de nossa soberania aos Estados Unidos da América.

Era parte da contraofensiva do império americano e de seus agentes no país, visando dois objetivos básicos: conter o avanço das forças progressistas no continente e sua política de promoção de direitos sociais; bem como impedir arranjos geopolíticos como, por exemplo, os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que eventualmente servissem de contraposição às pretensões hegemônicas do império americano.

Aliás, quanto a isso, recorro a nada menos do que ao próprio ex-embaixador americano no Brasil (2010 a 2013), Mr.Thomas Shannon que, numa entrevista à revista Época de 08.07.2019, afirmou que os EUA tinham a convicção de que o governo brasileiro atrapalhava seus planos para a América do Sul, pois tinha um projeto de “construção de uma grande e coesa América do Sul”, o que seria um obstáculo à reanimação da Área de Livre Comércio das Américas. Na longa entrevista Shannon afirmou, ainda, que havia livre trânsito de informações e provas entre os procuradores americanas e os procuradores da lava-jato, confirmando outra ilegalidade praticada no âmbito da operação.

Nunca é demais relembrar que o golpe de 2016 começou a ser gestado pelo inconformismo de Aécio Neves e dessa concertação de direita com a sua derrota nas eleições de 2014. Após quatro tentativas eleitorais frustradas e impedidos, pela vontade popular, de conter os avanços sociais e retomar à política de desmonte do estado nacional, as forças conservadoras e de direita sequer se preocuparam com as aparências: apelaram diretamente ao golpe.

Duas ações básicas representavam o centro da tática dessas forças de direita: a primeira medida era a criminalização da esquerda; a segunda, com a mesma virulência e intensidade, visava aprofundar a crise econômica, criando um ambiente de verdadeiro caos. Assim, a partir de uma ampla ofensiva da mídia e da lava-jato contra a esquerda, especialmente contra Lula, as forças conservadoras formaram uma poderosa coalisão, uma maioria política, com a participação inclusive de “aliados“ governistas. Inviabilizaram o governo recém eleito para assumir o controle do país e voltarem a aplicar a política neoliberal. E a cada dia, desde Temer até o presente, têm se empenhado para atacar a nossa soberania, o nosso desenvolvimento, os avanços sociais, a luta pela superação das assimetrias regionais, a liberdade de expressão e até mesmo científcia, que ultimamente tem sido grosseiramente atacada.

O diálogo entre Jucá e Machado, transcrito acima, não deixa dúvidas quanto a armação. E as revelações do The Intercept Brasil confirmam plenamente essa assertiva.

Portanto, "Com o Supremo, com tudo", talvez tenha sido a afirmação que melhor explicitou o golpe de 2016. Um golpe viabilizado com a leniência de parte do Judiciário, na medida em que é pouco provável que esses membros da suprema corte não soubessem que o impedimento de Dilma advinha de uma decisão política e não de um crime cometido. Eles sabiam. Como igualmente sabiam que, respeitado o mínimo processo legal, é impossível afastar um governante movido tão somente por decisões políticas. Sabiam que tal aberração não tem amparo no arcabouço jurídico brasileiro. O arranjo das pedaladas foi apenas a farsa, a qual a direita recorreu, para emprestar um certo caráter de “legalidade“ a uma flagrante ilegalidade: o “impeachment”.

Assim, enquanto parlamentares e políticos, sob a batuta de Eduardo Cunha, tramavam a queda da presidenta, boicotando suas iniciativas e atuando para aprofundar a crise econômica, a força tarefa lava-jato, com as bênçãos das instâncias superiores do poder judiciário, seguia com suas decisões e condutas parciais e ilegais, gozando de uma ampla, privilegiada, sensacionalista e apoteótica cobertura midiática. Um verdadeiro massacre, que talvez alguns imaginem ser sem precedentes na nossa história. Uma avaliação mais cuidadosa, todavia, nos faz ver que esse modus operandi – com pequenas variações - têm precedido a todos os golpes, seja no Brasil ou no exterior.

Dessa forma, conscientemente, os operadores reais do golpe – a intelligentsia – começou a misturar ações reais de combate a mal feitos e mesmo a esquemas de corrupção, em boa parte deles próprios, com uma geral e indiscriminada criminalização da política. Assim, ações contra executivos da Petrobras, empreiteiras, empresas públicas e privadas, políticos e partidos logo começaram a pavimentar a mescla entre o combate a delitos reais e a retaliação política seletiva, como indicava o diálogo Romero Jucá/Sergio Machado, agora confirmado pelo diálogo Moro/Dallangnol.

A Lava Jato foi se revelando como de fato era: um instrumento de intervenção política. Conduções coercitivas ao arrepio da lei, prisões espetaculosas, delações premiadas sem lastro em provas, denúncias oferecidas sem base material, mas com “absoluta convicção” dos procuradores, se repetiam sem qualquer resistência dos demais aparelhos de estado. 

Ficava claro, portanto, que os partidos e os políticos de esquerda eram os principais alvos da operação. E a lava-jato só pôde agir assim, com tamanha ilegalidade e impunidade, porque estava protegida por essa concertação de direita que comandou o golpe contra o estado democrático de direito, cujas consequências a sociedade já começa a perceber.

O objetivo era criminalizar apenas a esquerda, prender Lula e proteger os seus, como fica evidente tanto nas conversas de Romero Jucá, quanto nos diálogos de Moro, quando este revela preocupações com eventuais investidas contra Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e a possibilidade de perder um apoio “muito importante”, ou ainda quando os procuradores discutiram sobre a oportunidade de conceder uma entrevista, a qual acabaram por recusar, para evitar a “bola dividida Flavio Bolsonaro”, ou seja não queriam melindrar o chefe do executivo, tampouco pôr em risco a vaga no STF prometida à Sergio Moro.

Mas como nem sempre o planejado pode ser executado à risca, alguns fatos obrigaram a Lava Jato a ter que fazer flexões para não ser completamente desmoralizada. Dentre esses fatos se pode destacar a prisão de Eduardo Cunha (outubro/2016); as cenas dantescas de Rocha Loures, emissário de Temer, correndo com uma mala recheada de propina da JBS (maio/2017); as imagens de um primo de Aécio Neves pegando e transportando recursos financeiros possivelmente ilícitos (junho/2017); a descoberta de um apartamento que guardava mais de cinquenta milhões de reais em espécie, possivelmente do PMDB de Gedel, Temer et caterva (setembro/2017); contas milionárias no exterior, dentre outros fatos escabrosos. Todas essas ações ocorreram após o golpe de agosto de 2016.

Diante dessas provas – não de “convicções” do procurador - não havia como impedir que se ampliasse o leque das investigações e isso era exatamente o que mais os golpistas temiam. Acendeu o botão do pânico e esse temor foi revelado no diálogo aqui transcrito, entre Jucá e  Machado:...“É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional. Com o Supremo, com tudo. Com tudo, aí parava tudo. É. Delimitava onde está, pronto” … 

Hoje, tal qual maio de 2016, também estamos diante de um conjunto de revelações, que apontam exatamente na mesma direção e nos levam às mesmas conclusões. 

As mensagens entre operadores da lava-jato, reveladas pelo The Intercept Brasil, não deixam dúvidas de que o modus operandi dessa força tarefa amparava-se em condutas parciais e ilegais, feriam e desrespeitavam todos os princípios do nosso arcabouço legal. Uma ação que deveria ser de “combate a corrupção” passou a se orientar por objetivos políticos e de vergonhosa negociata por cargo e emprego para o então juiz Sergio Moro.

Infelizmente, o combate a corrupção foi utilizado para perseguir pessoas, destruir projetos, empresas e favorecer sobretudo os interesses dos EUA sobre o Brasil e a América Latina, como atesta um telegrama localizado no Wikileaks e divulgado por Luiz Nassif (29.03.2019), assim intitulado, “Wikileaks: como o DoJ preparou a lava-jato e cooptou a Justiça brasileira” https://wikileaks.org/plusd/cables/09BRASILIA1282_a.html.

Demonstra-se ali como os protagonistas da lava-jato, juízes, procuradores e policiais foram formados e treinados pelos órgãos de inteligência americanos, através de um projeto denominado “Pontes”. Previa-se, inclusive, que os locais ideais para a preparação de um projeto piloto seriam São Paulo, Campo Grande e Curitiba e que especialistas dos EUA dariam orientação e apoio contínuos.

Assim, assistimos a um golpe contra uma presidenta eleita, a prisão da maior liderança política do país, o ex presidente Lula, e a inacreditável eleição de Bolsonaro.

Enfim, com as revelações expostas pelo The Intercept Brasil, jornal Folha de São Paulo, revista Veja, Rede Bandeirantes, entre outros, cujo conteúdo é claro e autoexplicativo, creio que não há mais quem consiga esconder ou camuflar os fatos reais. Esperamos, entretanto, que estas revelações não sejam solenemente ignoradas, como foram em 2016.

O conteúdo das mensagens é gravíssimo. A seletividade, o desrespeito às leis, que chocam a população, deveria no mínimo gerar, nos agentes da lei, um sentimento de que algo há de ser feito, à luz sempre do estado de direito e no eixo da democracia.

Quem eventualmente tem ilusão quanto ao caráter de classe do estado certamente está impactado. Quem, todavia, tem presente que o estado nada mais é do que um instrumento de dominação da classe dominante, sabe que a lava-jato, os meios de comunicação, e as partes do legislativo e do judiciário que apoiaram o golpe, apenas serviram como aparelhos desse vergonhoso assalto à nossa democracia.

Compete a todos nós, brasileiras e brasileiros, que efetivamente têm compromisso com a democracia, com a nossa soberania, o estado de direito e a defesa dos direitos sociais do povo, preparar a resistência, mobilizar a sociedade e denunciar, com ênfase, o crime de lesa pátria que está sendo cometido contra o nosso glorioso país.

    

[1] Membro do Comitê Central do PCdoB, Vereadora em Manaus (1989-1998) Deputada Federal (1999-2010), Senadora da República (2011-2018).

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