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Economia

Endividamento das famílias brasileiras cresce e classes mais baixas são levadas à pobreza

"No momento em que uma parte da renda que as famílias tinham era decorrente das transferências dos R$ 600 do auxílio emergencial, na medida em que há uma diminuição e depois uma parada dessas transferências, é de se esperar que a renda das famílias diminua", diz o professor do Instituto de Economia da UFRJ Ricardo Summa

(Foto: ABr)
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Sputnik - O Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV) divulgou recentemente sondagem que aponta que uma em cada quatro famílias brasileiras tem alguém com dívidas em atraso.

De acordo com o estudo, mais da metade dos endividados afirmam que o problema está relacionado à pandemia, principalmente por causa da perda de emprego ou redução de salário. Ainda segundo a pesquisa, 26% dos entrevistados vivem em lares em que há pelo menos uma pessoa com dívida. Esse percentual sobe para 44% para famílias com renda de até R$ 2.100, especialmente após o fim do pagamento do auxílio emergencial do governo no ano passado.

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​A Sputnik Brasil conversou com dois especialistas para discutir as implicações econômicas e financeiras do impacto da pandemia no endividamento das famílias, e como esse cenário pode repercutir de um modo geral na sociedade como um todo.

Ricardo Summa, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, avaliou as implicações econômicas da questão levantada pela pesquisa. Ele afirmou que não viu nenhum estudo que tivesse uma mensuração bem sistemática sobre esse efeito da inadimplência como também do endividamento das famílias.

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"Mas, com certeza, no momento em que uma parte da renda que as famílias tinham era decorrente das transferências dos R$ 600 do auxílio emergencial, na medida em que há uma diminuição depois uma parada dessas transferências, é de se esperar que a renda das famílias diminua, não só pelo feito direto com uma redução considerável da renda, mas também nos efeitos indiretos que isso gera", começou avaliando o especialista.

Para Summa, uma vez que as famílias reduzem o consumo e o pagamento de contas, isso tem um segundo efeito sobre a economia, o chamado efeito multiplicador dos gastos, que também vai reduzir a renda de outras pessoas que não recebiam inicialmente o auxílio emergencial.

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Ainda segundo publicado na sondagem do Ibre-FGV, nos últimos meses, o endividamento cresceu para todas as faixas de renda, mas o quadro tem sido dramático para os mais pobres porque a capacidade desse grupo de acumular uma poupança de precaução, destinada ao pagamento de algum imprevisto, é bem menor.

"Então é de se esperar sim que haja uma redução da renda das famílias, e tendo em vista o endividamento que elas têm isso aumentaria a parcela que é comprometida da renda para pagar as dívidas. Ou essas famílias ficam mais endividadas, reduzindo ainda mais o consumo, ou uma parte vai se traduzir em inadimplência", continuou o economista

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Valor ideal do auxílio emergencial

Considerando que o auxílio emergencial do governo ajudaria a mitigar o problema do endividamento das famílias, Summa esclareceu que seu valor deveria ser fruto de um estudo muito mais detalhado, com uma certa previsibilidade de quanto tempo vai durar a pandemia.

"Então é muito difícil dizer o que seria um valor justo e necessário e por quanto tempo. Mas acho que temos que ver o que deu certo em termos de crescimento, [que foi] uma leve retomada no nível mais baixo do PIB e da renda ali no segundo trimestre de 2020. Me parece que esse valor de R$ 600 foi o que deu um impacto bem considerável e ajudou a manter a economia funcionando, ajudou a manter os índices de pobreza no nível que estavam para que não aumentassem tanto tanto nesse período", avaliou.

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Segundo Summa, o valor de R$ 600 por um período mais longo seria importante para enfrentar algo que não foi de curtíssimo prazo, pois a pandemia continua ainda se manifestando. "Vimos que a classe C, que foi a grande conquista dos anos 2000/2010, tem diminuído, que a fome voltou, a pobreza absoluta também voltou […] Então, o que foi feito não foi certo e o que teve um resultado muito forte foi o auxílio de R$ 600.

Uma pesquisa elaborada pelo Instituto Locomotiva mostrou que, com o aumento do desemprego e a queda geral da renda das classes mais baixas, a classe C deixou de compreender a maioria dos brasileiros. O percentual da população brasileira pertencente à chamada classe média tradicional caiu de 51% em 2020 para 47% em 2021, ou seja, o mesmo 'tamanho' da classe baixa

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Impacto da inflação

Na opinião do economista o impacto da inflação sobre a economia das classes menos favorecidas foi muito baixo, "se bobear quase zero", porque a maioria dos alimentos da cesta básica tem o preço determinado no mercado externo.

"O aumento dessa demanda frente ao aumento da demanda mundial que poderia aumentar o preço dessas commodities é bem negligenciado. Então não veria por aí um impacto. E outros produtos também, eles são muito mais afetados pelos custos de produção, que aí sim envolve uma série de insumos que são denominados em dólar e isso teve um impacto muito forte", continuou o especialista.

Summa explicou que quando se tem problema de alta dos preços muito forte dos alimentos, quando eles não são transacionáveis, quando não são determinados em dólar, é porque houve uma quebra de safra e não um aumento repentino. O que houve foi uma desvalorização cambial muito forte, que afetou diretamente os preços dos alimentos denominados em dólar e afetou os custos de produção dos bens que são determinados na moeda doméstica, mas que usa uma série de insumos denominados em dólar.

​​Perguntado se a pandemia é a única responsável pela situação econômica e financeira atual do país, o professor da UFRJ diz acreditar que — se for olhar uma série de crescimento do PIB —, desde 2014 o país teve dois anos de queda muito forte do PIB no segundo governo Dilma Roussef e quando entra o de Michel Temmer.

"Agora nesse último governo antes da pandemia o que você vê é um crescimento muito baixo do PIB, incompatível para pelo menos incorporar a mão de obra que está entrando no mercado de trabalho. Então o crescimento era baixo e o desemprego muito alto já antes da pandemia e não havia nenhum sinal de que fosse mudar esse panorama de estagnação", declarou.

Para ele, obviamente que a pandemia e as respostas a ela, o auxílio — que foi por pouco tempo e que foi finalizado, depois foi reduzido — e o fato dela estar durando muito mais tempo do que talvez o governo previsse quando pensou nos auxílios, isso sim está levando uma economia que já vinha frágil para outro patamar, e não a inflação.

"Aí sim eu diria que a pandemia coloca o país numa situação mais crítica. Os dados sociais, os dados de fome, de aumento da desigualdade, de desemprego, todos esses fatores levam o país a entrar em uma situação muito mais crítica", opinou Summa.

Inadimplência, bancos e linhas de crédito

A Sputnik Brasil ouviu outro economista — Norberto Martins, também professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ) — para comentar sobre a questão financeira relacionada ao endividamento das famílias brasileiras.

Ele disse que vê nos dados divulgados pelo Banco Central (BC) em relação ao último trimestre — que terminou em março, embora os dados sejam da última semana de abril — que, no geral, não houve aumento de inadimplência de pessoas físicas.

"Na verdade a inadimplência total ficou estagnada em torno de 4,1% no total da carteira de crédito, o que é uma queda relevante em relação ao período pré-pandemia que estava na casa de 5,1%, muito em função da redução de taxa de juros, das renegociações dos empréstimos que foram sendo realizadas com prazo de carência e tudo mais. À margem disso, tivemos um pequeno aumento da inadimplência no crédito rotativo do cartão de crédito, que saiu de 28,7% em fevereiro para 30,9% em março. E isso traz até um uma espécie de paradoxo, porque se de um lado a gente tem visto nos últimos meses uma redução relevante da renda das famílias por outro lado isso ainda não se traduziu no mercado de crédito numa maior inadimplência das famílias", explicou Martins

E por que isso não aconteceu? Segundo ele porque a queda da renda atingiu principalmente pessoas e famílias que não tem um acesso tão regular ao mercado de crédito formal. São pessoas que simplesmente não acessam esse mercado por não ter um histórico de pagamento, por não ter capacidade de repagamento de suas dívidas e isso já é visto pelas próprias instituições financeiras, que já racionam crédito para essas famílias.

"Entretanto existe outro indicador que é interessante: ao longo do tempo essas famílias também em média tiveram maior comprometimento da sua renda com dívidas. Isso ainda não virou inadimplência, se a gente olhar agora para o futuro, para o que vai acontecer esse ano, inclusive com aumento da taxa de juros, pode ser que em algum momento essa inadimplência possa se materializar de fato aqui no Brasil", analisou o economista.

Taxa Selic e impacto nas dívidas

Martins também fez um comentário sobre a influência da taxa Selic, hoje em 12,75% ao ano, sobre os indicadores de custo de crédito. Ele disse que no ano passado houve uma redução significativa do indicador, que por sua vez levou a uma redução significativa dos custos de captação das instituições financeiras, e no contexto da pandemia essa redução foi sim repassada para os preços em termos dos empréstimos.

"Usando dados do Banco Central mais uma vez como referência, se pegar a taxa média das operações livremente pactuadas no mercado brasileiro em fevereiro do ano passado antes da pandemia ela era de 40,1% ao ano e no final de 2020 essa taxa chegou a 33,5%, acompanhando o movimento na taxa Selic. Essa questão se dá por dois elementos: primeiro porque o custo da Selic vai afetar diretamente o custo de captação das instituições financeiras, daí elas não repassam totalmente esse custo, mas a gente tem situações que isso nem sempre se mantém, porque o que está aí no meio é o spread bancário", avaliou.

Martins explicou que a taxa Selic, nesse caso em relação ao spread, funciona como uma espécie de "custo de oportunidade". A maior parte dos trabalhos acadêmicos que tentam avaliar porque o spread bancário atual ainda é alto chegam a uma conexão muito importante entre o nível de spread e o nível da taxa Selic, porque em última instância é esse nível que vai determinar a aplicação dos recursos captados em determinadas operações ou não.

"Então é bem possível que um aumento da taxa Selic seja transmitido para os custos do crédito das pessoas físicas e gere o aumento efetivamente desse custo até o final do ano, o que vai complicar e comprometer ainda mais a capacidade de pagamento de várias famílias", disse o especialista.

Bancos públicos e empréstimos

Mas será que os bancos públicos não poderiam entrar em cena e atenuar o "sofrimento" das famílias com um crédito mais barato? Segundo Martins, não, pois nos últimos anos houve um redimensionamento, um encolhimento dessas instituições.

"Antigamente a gente tinha um peso muito grande desses bancos em todos os tipos de financiamento, hoje — principalmente depois de 2016 — começou a haver um redimensionamento para baixo do peso dessas instituições do sistema financeiro brasileiro. Isso muito em função menos de uma concepção técnica em relação ao papel dessas instituições e mais por uma decisão política de fazer com que elas encolhessem para abrir espaço para o setor financeiro privado no Brasil", lamentou o economista.

Porém, para ele, nada impede que os bancos públicos funcionem auxiliando a população mais vulnerável, emprestando dinheiro a juros mais baixos, com prazos mais largos para pagamento. "Entretanto, no Brasil atual, para ser honesto, desde a gestão anterior, a gente tem uma política que não favorece esse tipo de solução, que vai procurar no sistema financeiro privado as principais soluções inclusivas em momentos de crise". 

Cenário financeiro das famílias brasileiras pós-pandemia

O período pós-pandemia, certamente vai trazer desafios importantes inclusive traz um cenário muito preocupante em termos do que se chama "fragilidade financeira" das famílias, segundo Martins.

"Todo mês a gente tem nossas contas a pagar, as obrigações que temos que dar conta, pagar conta de luz, aluguel, a comida que botamos na mesa, e para isso precisamos de recursos, seja trabalhando, acessando empréstimos, mas precisamos ao longo do tempo compatibilizar o quanto gastamos e o quanto ganhamos. O que aconteceu no último ano foi que tivemos uma piora muito grande do rendimento aferido", analisou o economista.

Martins explicou que mais do que isso, o Brasil voltou ao mapa da fome, uma condição extremamente preocupante em termos dos indicadores sociais, que se agravam pelo fato de durante o primeiro trimestre o governo ter adotado uma estratégia de não prorrogar e não conceder um novo auxílio emergencial no pior momento da pandemia,

"Desse lado da equação, a situação é desoladora, muito complexa e vai exigir uma resposta do estado brasileiro. Efetivamente é difícil tratar disso do ponto de vista do mercado de crédito pensando que daqui a um tempo a gente vai ter possivelmente uma massa de inadimplentes. As famílias brasileiras saem dessa crise num patamar de endividamento que é substancial, a maior da série histórica, comprometidas com o pagamento dessas obrigações financeiras que se acumularam nos últimos meses. Vemos que mais de 50% da renda auferida nos últimos 12 meses pelas famílias vai se destinar ao pagamento de empréstimos e isso efetivamente vai comprometer ainda mais a situação", finalizou o economista.

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