Bete Mendes relembra tortura e reencontro com Ustra: “passei dias apavorada”
Durante a conversa, Bete descreveu a tensão de viver sob repressão enquanto sua carreira despontava na televisão
247 - A atriz e ex-deputada federal Bete Mendes revisitou um dos capítulos mais dolorosos de sua vida ao relembrar os anos de militância contra a ditadura militar e o reencontro com Carlos Alberto Brilhante Ustra, o coronel que a torturou nos anos 1970. As declarações foram dadas em entrevista ao programa Conversa com Bial, da TV Globo.
Durante a conversa, Bete descreveu a tensão de viver sob repressão enquanto sua carreira despontava na televisão. Na época em que atuava na novela Beto Rockfeller (1968), da TV Tupi, ela também fazia parte da resistência ao regime. “Eu não tinha ideia das coisas. Primeiro, que eu não sabia o que era televisão. Eu comecei no teatro, aí fui chamada para a televisão e a novela estourou. Claro que não ia dar certo. Como não deu. Eles estavam caçando e prendendo todo mundo. A barra era pesadíssima”, contou.
Com o codinome Rosa, inspirado na revolucionária Rosa Luxemburgo, a atriz manteve suas atividades políticas em segredo. “Não só pela responsabilidade e consciência, mas pela segurança dos outros. Naquela época, a situação era tão violenta em termos de repressão que, se alguém soubesse de alguma notícia e comentasse para outra pessoa, passava a ser um risco”, lembrou.
O primeiro contato direto com os agentes do regime veio quando foi chamada para depor por suspeita de envolvimento com grupos de resistência. Bete relatou que o convite partiu do então marido da atriz Irene Ravache, o Capitão Maurício. “Ela foi a minha madrinha, quem me levou para a TV Tupi […] me disse que ele queria conversar comigo, porque eu estava sob suspeita de participar (da resistência), e que se eu negasse seria tudo normal. Eu topei, tudo na ingenuidade que a gente tinha na época.”
Preservada por falta de provas, Bete passou quatro dias em uma cela solitária. “Foi tão traumático que eu perdi quatro quilos em quatro dias. Eles me liberaram como suspeita”, relatou. Pouco tempo depois, no entanto, foi novamente presa — desta vez sob o comando de Ustra, então um dos mais temidos oficiais da repressão. “Ele foi diretor, orientador e torturador em diversas regiões do país. Ele era considerado um dos campeões dos torturadores da ditadura. A história é perversa como tudo que esse homem fez”, afirmou.
Anos mais tarde, já eleita deputada federal pelo PT, Bete Mendes voltou a cruzar com o torturador. O encontro aconteceu durante uma missão oficial no Uruguai, ao lado do então presidente José Sarney. “Esse homem, que já estava demissionário de adido militar, vai com pompa, com uniforme de gala, e fica na recepção do aeroporto para nós. Na hora que eu o vi, a tortura inteira voltou”, recordou.
O impacto emocional do reencontro foi devastador. “Eu fiquei desesperada. Passei quatro dias em Montevidéu quase sem dormir, tomando banho frio, fiquei apavorada. A única coisa que eu tinha consciência é que eu não podia denunciar lá, porque eu ia melar um programa de democratização vagarosa. Mas eu não podia me omitir. Mandei uma carta para o Sarney, fazendo a denúncia daquele adido que foi responsável pelas torturas e que estava premiado”, relatou.
A denúncia feita por Bete Mendes foi um dos primeiros gestos públicos de responsabilização de agentes do regime militar por crimes de tortura. Décadas depois, seu testemunho segue sendo uma das vozes mais contundentes na luta pela memória e justiça em relação às violações cometidas durante a ditadura.
