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Bombas na Cidade Baixa: ordem ou retrato da escalada de violência policial?

Na madrugada do último domingo (16), a rua João Alfredo, reduto boêmio de Porto Alegre, foi palco de uma ação da Brigada Militar, com spray de pimenta e bombas de efeito moral para liberar o tráfego de veículos e acabar com uma festa; pessoas que frequentam a Cidade Baixa denunciam o uso excessivo de força pelos policiais; a BM afirma que tentou resolver a situação por meio do diálogo e foi recebida com garrafadas; existe a costumeira reclamação de moradores da João Alfredo sobre as festas que vão até altas horas e impedem seu descanso; o contra-argumento de frequentadores das festas é que aquele é um bairro de caráter tradicionalmente boêmio e que agora passa por uma tentativa de higienização

Na madrugada do último domingo (16), a rua João Alfredo, reduto boêmio de Porto Alegre, foi palco de uma ação da Brigada Militar, com spray de pimenta e bombas de efeito moral para liberar o tráfego de veículos e acabar com uma festa; pessoas que frequentam a Cidade Baixa denunciam o uso excessivo de força pelos policiais; a BM afirma que tentou resolver a situação por meio do diálogo e foi recebida com garrafadas; existe a costumeira reclamação de moradores da João Alfredo sobre as festas que vão até altas horas e impedem seu descanso; o contra-argumento de frequentadores das festas é que aquele é um bairro de caráter tradicionalmente boêmio e que agora passa por uma tentativa de higienização (Foto: Leonardo Lucena)
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Luís Eduardo Gomes, Sul 21 - Na madrugada do último domingo (16), a rua João Alfredo, tradicional reduto boêmio de Porto Alegre, foi palco de uma ação da Brigada Militar que resultou no emprego de spray de pimenta e bombas de efeito moral para liberar o tráfego de veículos e acabar com a festa de quem ainda permanecia no local, por volta das 3h. Passados alguns dias do caso, as versões sobre o que de fato ocorreu são conflituosas. Pessoas que frequentam a Cidade Baixa denunciam o uso excessivo de força pelos policiais e que não houve nada de anormal que motivasse a ação. Já a Brigada Militar afirma que tentou resolver a situação por meio do diálogo e foi recebida com garrafadas. A questão, no entanto, envolve ao menos dois aspectos mais profundos. O primeiro deles é a costumeira reclamação de moradores da João Alfredo e ruas adjacentes da Cidade Baixa sobre as festas que vão até altas horas e impedem seu descanso. O contra-argumento de frequentadores das festas é que aquele é um bairro de caráter tradicionalmente boêmio e que agora passa por uma tentativa de higienização. Outro fator, que se desenrola em paralelo, é o crescente uso pela Brigada Militar de “instrumentos de baixo potencial ofensivo” – notadamente spray, bombas de gás e balas de borracha – e o elevado número de denúncias de violência policial.

JP Filiprandi, 20 anos, era um dos frequentadores da Cidade Baixa que preferiu ficar na rua na noite de sábado e madrugada de domingo. Ele conta que havia um grupo de pessoas que estava na via, bloqueando o fluxo de veículos, como ocorre na maioria dos finais de semana. Por volta das 3h, teriam então começado a circular seis viaturas – três da BM e três da Guarda Municipal -, dando voltas na quadra, como em uma tentativa de avisar os transeuntes de que estavam prontos para agir. JP diz que a primeira ação mais concreta da BM foi ligar as sirenes das viaturas em um volume alto. “Começou como uma violência sonora, ninguém entendeu o porquê”.

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Na versão de JP, após algumas voltas na quadra, um grupamento de 10 policiais do Batalhão de Choque “vestidos para a guerra” abordou as pessoas que estavam no João Alfredo já com o emprego do spray de pimenta. A partir disso, teria havido uma reação, com pessoas atirando garrafas, o que motivou a BM a jogar pelo menos sete bombas de gás lacrimogênio. “Aí começou a correria. Vieram limpando em direção ao Largo da Epatur. Só restou na CB, quem estava dentro dos bares”, diz.

O tenente-coronel Eduardo Amorim, comandante do 9º Batalhão de Polícia Militar – responsável pela região da Cidade Baixa – tem outra versão para os acontecimentos. Ele diz que a Brigada inicialmente tentou o diálogo e que só passou a empregar os instrumentos chamados de menor poder ofensivo quando as primeiras garrafas foram atiradas em brigadianos. “Aceitar que joguem garrafa em brigadiano, aí passou do ponto do diálogo”, diz.

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Há quatro meses no comando do 9º BPM, Amorim afirma que é comum o batalhão receber denúncias de som alto e de pessoas bloqueando o tráfego de veículos durante as madrugadas, mas salienta que, usualmente, a Brigada vai ao local, propõe às pessoas, com diálogo, que vão para as calçadas e baixem o volume e a situação se resolve. “Se as pessoas estiverem lá, seja de carro ou a pé, e vão para a calçada, entram no bar, não tem problema nenhum. Agora, se o pessoal ofender as pessoas que passam, aumentar o volume do som, começar a ameaçar os moradores, aí já não é uma conduta normal. Isso a Brigada Militar não vai aceitar”, afirma.

Segundo o tenente-coronel, na madrugada de domingo não houve resposta às tentativas de diálogo e um grande grupo de pessoas se colocou contra a Brigada. “se fosse um comportamento isolado, a maioria das pessoas iria para a calçada”, afirma. Questionado se o emprego desses instrumentos é o protocolo para situações como essa, afirmou que as granadas de efeito moral são utilizadas, por um lado, para evitar que a multidão parta para cima da tropa e, de outro, que seja necessário a utilização de bastões, que têm potencial para causar lesões mais graves.

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Denúncias por grupos de Whatsapp

O barulho na Cidade Baixa durante as madrugadas, especialmente nos finais de semana, é uma reclamação constante dos moradores da região. Tanto é assim que há diversos grupos de Whatsapp – ao menos quatro ou cinco – voltados especificamente para denunciar e discutir com policiais militares sobre casos como o do último final de semana.

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Carla Santos, presidente da associação de moradores Vizinhança na Calçada, que engloba a Cidade Baixa e outros bairros próximos, afirma que os grupos indicam que, na madrugada em questão, o número de denúncias por esse caminho e também pelo número 190 foram maiores. No entanto, ela diz não saber apontar se houve alguma diferença em relação a outas noites.

Na opinião de Carla, a situação no bairro está fora de controle durante as madrugadas. “Há meses que a gente vêm reclamando. Eu sei que no nosso grupo de vizinhos as pessoas reclamam. Até as 4h tu não consegue dormir. É uma gritaria, gente bebendo, pessoas usando drogas ilícitas, e aí, de manhã, quando o morador acorda para ir trabalhar ou abrir o estabelecimento comercial, tem garrafas, urina e fezes na porta”, reclama.

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Carla afirma que as pessoas têm o direito de se divertir no bairro e que ela própria frequenta os bares e restaurantes, mas diz que é preciso respeitar limites e os moradores do bairro, enquanto haveria grupos que “acabam olhando só para os seus direitos e não para suas responsabilidades”. Ela demonstra indignação com a argumentação de que a Brigada Militar “causou o tumulto”, defendendo que a corporação agiu apenas para “impor a ordem”.

Higienização?

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JP é firme na posição de que as pessoas que estavam na rua na madrugada de domingo não estavam fazendo nada de errado, nada de diferente de outros finais de semana. Para ele, a ação da BM faz parte de uma tentativa de “higienização das ruas”. Ele diz que esse não foi o primeiro caso de “autoritarismo” da BM no bairro. Ele conta que, recentemente, fez um vídeo de um episódio em que policiais militares também utilizaram o recurso de dar voltas na quadra de bares que tinham movimentação e que, em determinado momento, sem nem descerem do carro, empregaram spray de pimenta contra pessoas que estavam no local. Naquela ocasião, ele diz que sequer se trataria de uma noite de intenso movimento, teria sido por volta da 1h de um dia frio, com ruas vazias.

Essa visão é compartilhada pelo estudante Pedro Lara, 21 anos, que estava na casa noturna Margot na madrugada de domingo e saiu para a rua pouco antes do início da ação da BM. “Quando eu saí, vi diversas viaturas da BM com sirenes ligadas como se tivesse em alguma operação para combater algum tipo de crime. O pessoal, a princípio, ficou assustado, achando que teve briga, mas percebeu-se que não teve briga nenhuma, era mais um trabalho de higienização, de um local que o pessoal faz festa. Era realmente isso que estava acontecendo, o pessoal estava fazendo festa. Após a reclamação de alguns moradores, a BM montou uma operação completamente desproporcional”, afirma.

Lara relata que o que viu na sequência foi um “clima de guerra”, correria pelas ruas vizinhas, pessoas chorando, amedrontadas. “A BM chegou ali declarando a gente culpado de alguma coisa que a gente não fez, tocando o terror”, diz o estudante, que se refugiou em um dos bares durante a ação, tendo apenas ouvido os sons das bombas e a correria que se seguiu. Ele também diz ter estranhado o emprego do Choque com capacetes, escudos e bastões para uma ação na Cidade Baixa. Passados cerca de 40 minutos, ele diz que passou pela João Alfredo voltando para casa e que já não havia mais ninguém na rua, apenas policiais “rindo e conversando na frente da viatura, como se fosse uma coisa normal”.

Violência policial?

O emprego de spray de pimenta, bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha é defendido pelo tenente-coronel Amorim como algo normal diante do fracasso do diálogo. No entanto, há quem considere que os aparatos estão sendo utilizados de forma excessiva. A Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa está analisando pelo menos nove casos que ocorreram este ano de violência policial, alguns deles envolvendo tais instrumentos.

Há o caso de um torcedor que denuncia ter sido alvo de spray de pimenta na boca durante um jogo na Arena do Grêmio, uma vítima de assalto que denuncia ter sido agredida por policiais por ser negro, uma travesti que denuncia ter sido estuprada por PMs dentro do Presídio Central, o emprego excessivo da força nas desocupações da comunidade Alto da Colina e da ocupação Lanceiros Negros, em Porto Alegre – este último que também traz a denúncia de excessos contra o presidente da comissão, deputado estadual Jeferson Fernandes (PT), que acompanhava o caso – denúncias de agressões a detentos dentro do Instituto Penal Pio Buck, denúncias de agressão a professores municipais durante a greve geral do dia 31 de junho, denúncia de um morador de Estrela que teria sido perseguido e agredido pela BM, e de um jovem que teria sido agredido e humilhado em uma abordagem de trânsito em Porto Alegre. Fora isso, há as lembranças recentes da repressão a manifestações de servidores públicos no final do ano passado, na Praça da Matiz, a protestos contra o aumento das passagens de ônibus da Capital e também na retirada de vendedores ambulantes do Centro de Porto Alegre.

O professor Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS especializado em estudos sobre Segurança Pública, afirma que o emprego desses instrumentos está “absolutamente fora de protocolo”. “A negociação, que sempre foi uma marca da Brigada, nesses casos está sendo deixada de lado. Esta mudança de comportamento da polícia tem sido construída a partir do comando, com um discurso de que agora é hora de colocar ordem na casa. Chega dos defensores de direitos humanos, chega de admitir determinados fatos que precisariam ser coibidos de maneira cada vez mais violenta. Não é por acaso, não é por ação de subordinados, é uma orientação que vem de cima e que vai justamente nessa direção de mudar toda uma lógica e um padrão de atuação da BM que é histórico, que não é do último governo, que vem de bem mais tempo, no sentido de evitar confronto, de evitar o uso de meios, mesmo que não letais, antes de esgotar todas as possibilidades de negociação”, afirma.

Amorim diz que não existem regras específicas que determinem quando tais instrumentos devem ser usados, que depende da reação das pessoas às ações da BM e que a corporação sempre agiu dessa forma, não havendo uma orientação diferente para recorrer a eles com mais frequência. No entanto, há um marco temporal, citado pelo próprio oficial, que pode indicar o porquê da percepção de que isso tem aumentado.

Em outubro de 2012, manifestantes atacaram o boneco inflável do mascote da Copa do Mundo de 2014 que estava no Largo Glênio Peres, conhecido como o episódio do “ataque ao Tatu Bola”. Um grande efetivo policial foi empregado para conter a ação dos manifestantes. Na reação, o policial Eriston Mateus de Moura Santos foi atingido por pancada na cabeça, uma pedra ou um paralelepípedo, ficou ferido, foi levado ao hospital e, semanas depois, começou a perder movimentos de braços e pernas. Segundo Amorim, Eriston continua paraplégico. “Uso esse caso porque não podemos esquecer esse caso, a sociedade de bem não pode esquecer”, diz o tenente-coronel, que reclama de “inversão de valores” sobre as críticas e o que chama de desrespeito à polícia. “Cito o caso porque a sociedade que apoia quando se joga pedras e garrafas em policiais militares é a mesma sociedade que quer um maior número de policiais na rua. Hoje, eu tenho um sargento a menos no policiamento”.

Três vetores

Ghiringhelli tem acompanhando os casos de violência policial registrados pelo Centro de Referência em Direitos Humanos da Defensoria Pública desde 2013 e salienta que há um crescimento constante de denúncias desde o início do governo José Ivo Sartori (PMDB). Em 2013, foram 73. Em 2014, 67. Em 2015, primeiro ano de governo, 81, número que foi atingido somente até junho de 2016. Apesar de os números não estarem totalmente consolidados desde então, o professor diz que 2016 fechou com o dobro de denúncias de violência policial em relação a 2015 e que, mais uma vez, somente nos seis primeiros meses de 2017, os números do ano anterior já teriam sido alcançado.

“Juntamos isso com todos os casos referidos [pela Comissão de DH], atos públicos, em situações onde muitas vezes não há a necessidade, ou pessoas estão simplesmente se manifestante e ocupando determinados espaços, e esses instrumentos são utilizados de forma absolutamente descabida e produzindo efeitos, embora muitas vezes não letais, mas graves do ponto de vista físico. Estamos construído hipóteses para entender o que está acontecendo”, diz.

O professor afirma que pelo menos três vetores foram identificados em sua pesquisa que estariam relacionados ao aumento dos casos de violência policial. O primeiro seria o chamado “efeito Lava Jato”. “Tudo aquilo que vem acontecendo nessa operação especificamente, em termos de total desconsideração de princípios e garantias fundamentais que até então norteavam o funcionamento do processo penal no Brasil, está dentro de uma lógica que os fins justificam os meios. Ou seja, no combate ao crime, vale tudo. O Estado pode violar as regras constitucionais se em contrapartida o resultado é o combate ao crime, a captura, prisão e condenação de criminosos”, analisa.

Ghiringhelli diz que esse efeito, apesar de originado no âmbito do combate à corrupção pelo judiciário, casa com a legitimação de um discurso que já estaria sendo construído “há muito tempo” dentro das forças de segurança de que a “legalidade democrática atrapalha o combate ao crime”.

O segundo vetor seria a degradação da estrutura de segurança pública no Rio Grande do Sul, as situações de perda do efetivo das polícias, superlotação carcerária, dificuldade do governo Sartori em pagar policiais, etc. “Isso vem causando efeitos, desde que o governo assumiu, de perda de controle sobre a segurança pública, com aumento da criminalidade, dos homicídios e da letalidade dos fatos, e uma incapacidade das polícias de reagirem a isso, até pela falta de estrutura. Diante disso, para manter a moral da tropa elevada, especialmente da BM, e redirecionar o foco das críticas, o governo passa a legitimar e aplaudir ações violentas da polícia como forma de dizer: ‘olha, nós estamos combatendo o crime, estamos sempre ao lado dos policiais'”. O professor cita como exemplo desse comportamento o caso em que criminosos foram executados, depois de já estarem imobilizados por policiais diante do Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre, caso que acabou sendo flagrado por câmeras. “Esses policiais foram condecorados pelo governo Sartori, mesmo tendo agido contra qualquer princípio de ação policial, como aquelas imagens mostram”, afirma o professor.

Por fim, o terceiro vetor seria o apoio de parte da opinião pública ao aumento da violência policial, diante da escalada da violência no Estado. “O aumento da violência, dos assaltos, da sensação de insegurança fazem com que a opinião pública acabe por legitimar ações violentas por parte da polícia. Se sentindo muitas vezes desprotegida, talvez vendo como último recurso, e percebendo que há uma perda de controle do estado sobre a criminalidade, as pessoas amedrontadas aderem a qualquer discurso e mesmo a práticas ilegais na tentativa de enfrentar o problema”, pondera o professor. Somando-se a isso, acrescenta, estaria o “caldo cultural” criado para criminalizar quaisquer ações que possam ser relacionadas à esquerda e a movimentos sociais, o que legitimaria a repressão a protestos e o silenciamento perante eventuais abusos policiais.

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