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Comunidade sofre ameaça de remoção em Pelotas

Em agosto de 2017, moradoras e moradores da ocupação Estrada do Engenho, conhecida como Vila Dique, recebem uma notificação da Prefeitura Municipal de Pelotas dando 60 dias para desocupar o local; a ocupação existe há cerca de três décadas e encontra-se em uma Área de Preservação Permanente (APP); lá, residem 72 famílias, cujo sustento se divide basicamente entre a pesca, a construção naval e a coleta de resíduos sólidos para reciclagem; um impasse entre MPE e Prefeitura de Pelotas ameaça remover, até o fim do ano, a comunidade

Em agosto de 2017, moradoras e moradores da ocupação Estrada do Engenho, conhecida como Vila Dique, recebem uma notificação da Prefeitura Municipal de Pelotas dando 60 dias para desocupar o local; a ocupação existe há cerca de três décadas e encontra-se em uma Área de Preservação Permanente (APP); lá, residem 72 famílias, cujo sustento se divide basicamente entre a pesca, a construção naval e a coleta de resíduos sólidos para reciclagem; um impasse entre MPE e Prefeitura de Pelotas ameaça remover, até o fim do ano, a comunidade (Foto: Leonardo Lucena)
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Liana Coll, Sul 21 - Em agosto de 2017, moradoras e moradores da ocupação Estrada do Engenho, também conhecida como Vila Dique, recebem uma notificação da Prefeitura Municipal de Pelotas. No papel, a sentença: 60 dias para desocupar o local, sob pena de multa. Situada entre o Clube Veleiros Saldanha da Gama e o Engenho Pedro Osório, a ocupação existe há cerca de três décadas e encontra-se em uma Área de Preservação Permanente (APP), às margens do canal São Gonçalo, que liga a Lagoa Mirim à Laguna dos Patos. Lá, residem 72 famílias, cujo sustento se divide basicamente entre a pesca, a construção naval e a coleta de resíduos sólidos para reciclagem. Um impasse entre Ministério Público Estadual e Prefeitura Municipal de Pelotas ameaça remover, até o fim do ano, a comunidade.

“Queria eu ter estudo para não estar aqui”, disse em uma de nossas conversas Paulo Antônio Osana, 64 anos, pescador e morador da ocupação há mais de 20 anos. Osana, de fala tranquila, começa a ficar nervoso ao mostrar a notificação da Prefeitura. Levanta da cadeira, colocada no quintal de seu chalé, e aponta: “só saio daqui se for pra continuar na beira da água, e com meus bichos”. O morador vive com 42 gatos, todos gordos, castrados. Com eles, divide o que pesca. Paulo fala da desconsideração do Executivo com a população de baixa renda e especialmente com os pescadores. As dificuldades e os constrangimentos começam nos trâmites burocráticos para se fazer existir: “pescador não tem impressão digital”.

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Luis Fernando Machado, também pescador e morador da Estrada, busca sintetizar a questão: “estamos sob pressão daquelas que podem”. A Vila Dique, ou corredor da Estrada do Engenho, está cercada de empreendimentos imobiliários de grande porte, voltados à elite pelotense, e entre vazios urbanos, que servem à especulação imobiliária na cidade. A comunidade pobre em meio a esse contexto, para o morador, parece incomodar esse cenário de luxo. É o que se pode chamar de processo de gentrificação: o progresso na cidade só vem para quem tem poder aquisitivo para usufruí-lo.  Ele pontua que, além da dificuldade enfrentada atualmente, com a ameaça de despejo, são diversos os problemas que a comunidade passa: “o trabalho é escasso e o ônibus é caro”. E esse é um dos motivos do desejo de permanecerem onde estão. As atividades de sustento acabam se desenvolvendo também naquela área, próxima do centro e de outros bairros, nos quais a comunidade desempenha serviços como o de limpeza de residências. Machado também coloca o medo da população de ir para um local em que tenham que construir tudo do zero, já que a maioria vive em chalés, os quais, se desmanchados, correm o risco de deterioração.

O processo

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O processo movido pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, iniciou em 2009. O MP, através de um inquérito, acusa a Prefeitura Municipal de Pelotas de negligência com a APP – que também é área de risco -, apontando a falta de fiscalização do Executivo municipal, que permitiu a instalação de uma comunidade na área, e pede providências para a desocupação. Acusa a população da Vila Dique de poluição ao Canal, com dejetos, o que é tratado com ironia pela comunidade, já que ao lado da ocupação está o Clube Veleiros Saldanha da Gama, que, além de despejar dejetos, joga no São Gonçalo também resíduos dos combustíveis das embarcações.

Em novembro de 2016, durante a gestão do ex-prefeito Eduardo Leite (PSDB), um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) entre MP e Prefeitura foi assinado. Nos termos, o Município compromete-se em ofertar moradia para as famílias em outra área no prazo de 12 meses. Segundo o TAC, nos primeiros três meses seriam ofertados 20 lotes no bairro Getúlio Vargas como alternativa às famílias que desejassem sair da Estrada do Engenho. Nenhuma das famílias aceitou a proposta. Um dos motivos é a distância do bairro Getúlio Vargas do Canal São Gonçalo ou de qualquer outra reserva de água. A mudança, segundo a comunidade, interromperia o meio de sustento de muitas das famílias: a pesca. Outra questão é a quantidade de lotes oferecidos no Getúlio: eram 20 lotes para que as 72 famílias saíssem da Estrada. Além de tudo, os laços de pertencimento ao corredor da Estrada do Engenho são fortes, e lembrados sempre pela comunidade, que aponta a união entre os moradores como um dos fatores de contenção de situações de violência.

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Passado o prazo da proposta de alocação no Getúlio Vargas, em abril de 2017, a Prefeitura lança outra, que seria mover as famílias para terreno em frente ao Clube Veleiros, que dista menos de um quilômetro da ocupação. No entanto, o local é um banhado. Caso a proposta se efetive, será necessário aterramento, além de construção de moradias pois, como dizem os moradores da ocupação, “campo não é casa”. Conforme o conhecimento dos pescadores, o local é propício a alagamentos. As inundações, na Vila Dique, são contornadas com perspicácia pelas famílias, que usam o conhecimento empírico para arquitetar soluções que preservem os pertences e as moradias.

A questão ambiental e o Plano Diretor

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Apesar da comunidade da Estrada do Engenho estar em APP, o Plano Diretor (Lei Municipal 5.502/2008) da cidade de Pelotas, no seu artigo 60, versa sobre Áreas de Preservação Permanente Ocupadas (APPO): “são aquelas com processos de uso e ocupação consolidados, que atendam o interesse social, público e comunitário, podendo ser regulamentados, mediante ações mitigatórias e compensatórias e de recuperação do meio-ambiente, proporcionais ao dano causado e sua escala”. Ou seja, seria viável traçar um plano de estratégias para reduzir o impacto ambiental naquela localidade, a começar por tratamento de esgoto, fator negligenciado pelo Executivo em diversas regiões em situação de vulnerabilidade social da cidade de Pelotas. Estima-se que 130 mil habitantes da cidade não tenham acesso a saneamento básico, cerca de 30% da população do município.

A revisão do Plano Diretor de Pelotas está prevista para 2018, quando o documento completa 10 anos. Um dos itens que o Conselho do Plano Diretor (CONPLAD) pretende mudar centra-se justamente no artigo 60. A composição do CONPLAD é tripartite, com representantes do Poder Público, Produtores e Usuários. Entre as entidades integrantes, estão órgãos diretamente ligados à construção civil, fato que o movimento “Muda Conplad” denuncia, por entender que o planejamento urbano na cidade está influenciado por interesses financeiros. O movimento também clama por um conselho participativo e democrático para pensar em uma cidade inclusiva e que democratize os benefícios urbanos, levando em conta o contexto histórico e cultural em que está inserida.

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A relevância histórico-cultural: o Passo dos Negros

A ocupação da Estrada do Engenho não é um lugar qualquer na cidade. A comunidade está em uma região conhecida como Passo dos Negros, área que, nos séculos XVIII e XIX, concentrava grande movimentação de escravos, que ali eram comercializados e remetidos em direção aos saladeiros. Uma alternativa de fundação da cidade de Pelotas foi projetada no espaço, mas o projeto não se efetivou, já que o padre Felício e o charqueador Antônio Francisco dos Anjos possuíam interesse em loteamentos mais ao norte do local. Ainda, conforme consta no livro “Negros, Charqueadas e Olarias”, da historiadora Ester Gutierrez, outro motivo consistia em que, no local, reinava o mau-cheiro, causado pelos dejetos da população saladeiras. Além disso, a grande população de escravos punha medo nos charqueadores, receosos de revoltas.

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O Passo dos Negros era uma região estratégica, com intensa atividade comercial. As águas eram utilizadas para escoamento de produção charqueadora e de outras indústrias. Também serviam de controle das mercadorias que entravam e saíam de Pelotas. Hoje, a zona do Passo é uma área de grande especulação imobiliária. A Estrada do Engenho é uma das menores ocupações existentes no antigo Passo dos Negros e ao longo do Canal São Gonçalo. Contrastando com ela, figuram condomínios de luxo, mansões e o Clube Veleiros. Quase ao lado da ocupação também está o engenho Pedro Osório, antiga propriedade do Coronel de mesmo nome que hoje nomeia a principal Praça do centro da cidade.

O descaso com uma parte emblemática da história de Pelotas, que remete às experiências de negras e negros que viveram sob o regime de escravidão, resultou no apagamento da importância da região. Exemplo disso foi a edificação, nos últimos anos, de um condomínio de luxo, de nome “Lagos de São Gonçalo” em cima do Passo dos Negros. Outros condomínios também estão na área, como o loteamento Parque Una (cujo empreendimento se descreve como localizado “na região de maior potencial de valorização da cidade”). Mas o MP apenas entrou com ação para a remoção da comunidade da Estrada do Engenho, uma das poucas ocupações de baixa renda do curso do Canal.

Para o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPel, Maurício Polidori, a remoção não resolve qualquer problema social e urbanístico da cidade. Não resgata a experiência histórica do Passo dos Negros, “não inclui a historicidade do sítio e da preurbanização, não melhora a macrodrenagem, não resolve a preservação e reprodução ambiental (inclusive agride uma parte da natureza), não resolve os conflitos com a geomorfologia, não combate a especulação imobiliária, não prioriza as questões das populações de baixa renda, não encaminha os conflitos da população de alta renda, não propõe solução para a habitação, não propõe soluções para o trabalho com a pesca e embarcações, não enfrenta as questões de coleta, guarda e triagem de lixo, enfim, não dialoga com a população que vem resolvendo e enfrentando tudo isso”.

Além dos condomínios, uma segunda via de acesso à Praia do Laranjal também passaria pela Estrada. São especulações às quais as 72 famílias da Vila Dique estão submetidas.

Diálogo com o Executivo

No mês de agosto, dezenas de moradores da Estrada do Engenho foram à Câmara Municipal de Vereadores exigir uma Audiência Pública, que acabou ocorrendo no dia 4 de setembro. Frente ao esgotamento do prazo do TAC, que finda em novembro, cobraram do Poder Público respostas para a situação. Apesar de terem recebido avisos da remoção, não receberam alternativa de moradia, o que descumpre o Termo, que indica a  resolução do impasse com a alocação das famílias em outras residências.

Compuseram a mesa da Audiência vereadoras e vereadores de Pelotas; Divandro Antunes, representante do deputado estadual Pedro Ruas (Psol), que integra a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa; Luis Carlos Matoso, representante da deputada Manuela D’Ávila (PCdoB); Milton Martins, representante da deputada Miriam Marroni (PT); Nino Rafael Kruger, membro do Observatório de Conflitos da Cidade (UCPel); Rodolfo Ribeiro, do Escritório Modelo de Arquitetura e Urbanismo (UFPel); Maurício Polidori, professor da faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFPel; o representante da ocupação da Estrada do Engenho, Luis Fernando Machado; Secretário de Habitação e Regularização Fundiária de Pelotas, Ubirajara Leal, e a Secretária de Governo do município, Clotilde Victória.

Inicialmente, Victória falou para as e os presentes que não havia jeito: a remoção aconteceria de qualquer forma: “a situação, me parece, é irreversível”. Também afirmou que as novas famílias, que entraram na ocupação depois do fim de 2016, não serão compensadas caso haja a desocupação. Ou seja, não terão direito a terreno e casa em outro local, pois não estão no cadastro realizado pela Prefeitura no fim de 2016.

As dezenas de famílias da Estrada, na Audiência, solicitaram que os direitos para todos residentes sejam iguais. No entanto, reiteraram a necessidade de permanecerem na ocupação, com condições mínimas de vida, já que mais da metade das famílias não possuem luz ou água encanada e não há rede de esgoto no local. Além disso, questionaram o Poder Público do porquê de terem procurado a comunidade somente em abril (mês em que ocorreu a primeira Audiência Pública), se o TAC fora assinado em novembro.

Divandro Antunes, representante do deputado Pedro Ruas, traçou um paralelo com a situação nacional, já que as remoções e o déficit habitacional não são exclusividade de Pelotas. “Quando avança a especulação imobiliária, com condomínios, as pessoas começam a ser empurradas para onde não há cidade. E o que é não haver cidade? É não haver saneamento, não haver posto de saúde. E as pessoas precisam se indignar contra isso. […] A demanda por moradia é muito maior que a oferta, mas não por um problema de não haver terra. Há terra, o problema não é o espaço, mas o poder aquisitivo para adquirir uma moradia digna. A renda da maior parte dos brasileiros é incompatível com o preço do metro quadrado, que cada vez mais se torna objeto de especulação de mercado”.

Já o assistente social Nino Rafael Kruger, do Observatório de Conflitos da Cidade, abordou os dados sobre a situação da moradia no município. Segundo Kruger, nos anos de 2008/2009 havia um déficit de cerca de 13.000 moradias em Pelotas. Entre os anos de 2009 e 2016, 60 empreendimentos do Minha Casa Minha Vida (MCMV) foram construídos, totalizando 11.919 moradias. No entanto, quase 80% deles destinaram-se às faixas 2 (renda entre 2,6 a 4 mil reais) e 3 (renda de 4 a 9 mil reais) do MCMV. “Estes números além de revelarem uma total inversão de prioridade no ato de planificação da política pública, apontam para a priorização por parte das construtoras e incorporadoras das faixas de maior lucratividade e ainda, esclarecem o porquê de não se ter avançado em direção da solução dos problemas habitacionais da cidade, uma vez que os 23,59% das moradias produzidas para a Faixa 1 – 2.812 moradias – ainda acabaram sendo localizadas nas bordas periféricas do município, em localidades onde os terrenos são mais baratos por localizarem-se relativamente mais distantes do centro da cidade, em áreas sem infraestrutura urbana”, explica.

O representante da comunidade, Luís Fernando Machado, lembrou que uma série de governos já se alternou no Executivo Municipal e nenhum fiscalizou a área. “A fiscalização é feita precariamente, se não ninguém moraria lá”. À ameaça de destruir a ocupação com máquinas, intimidação levada por agentes da Prefeitura quase toda a semana à comunidade, o pescador responde: “se podem colocar uma máquina em cima para destruir, podem levar as máquinas para construir, porque é para isso que elas foram feitas”.

Resolução

Da última Audiência Pública, algumas alternativas para o impasse foram apontadas. Uma delas, a mais urgente, é o agendamento de uma reunião entre o Executivo municipal, o MP e a comunidade, para que se possa prorrogar o prazo definido pelo TAC, que terminaria em novembro. Outra proposta é de tombamento da região do corredor da Estrada do Engenho, visto que a localização é um legado histórico-cultural da cidade, e as comunidades tradicionais deveriam ser preservadas. 

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