'Criar leis não resolve a violência’, diz advogado sobre maioridade penal
Advogado especializado em ciências criminais, Jader Marques é um dos líderes do Instituto Tolerância, que faz uma forte campanha contra a Proposta de Emenda Constitucional 171, da redução da maioridade penal; segundo ele, a redução da maioridade "vai criar um problema jurídico gravíssimo, que é o seguinte: o sujeito hoje é menor de 18 anos, e responde pelas medidas sócio-educativas, ou maior de 18 anos, e responde pelo Código de Processo Penal"; ele duvida da capacidade do governo para investir em novos centros de estabelecimentos para jovens; "Não há estabelecimento para cumprir", acrescenta
Luís Eduardo Gomes, Sul 21 - Advogado especializado em ciências criminais, Jader Marques é um dos líderes do Instituto Tolerância, que faz uma forte campanha contra a Proposta de Emenda Constitucional 171, da redução da maioridade penal. Na terça-feira passada (30), ele esteve em Brasília para acompanhar a primeira votação do tema, quando a redução não foi aprovada. Na quinta-feira, horas depois de uma questionável segunda rodada de votação aprovar a redução, ele conversou com a reportagem do Sul21.
Na entrevista abaixo, Marques tenta explicar a manobra adotada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB), para aprovar a redução, quais os efeitos práticas que a PEC terá se for adiante e dá a sua opinião sobre o que seria de fato necessário para diminuir o número de crimes cometidos por menores de 18 anos.
Sul21 – Qual é a sua avaliação do projeto de redução da maioridade penal aprovado pela Câmara dos Deputados?
Jader Marques: Inicialmente, a gente tem que pontuar que a redução da maioridade penal por Proposta de Emenda Constitucional (PEC) foi rejeitada. Esse tema só poderia ser tratado no ano que vem, só na próxima legislatura. Faltaram cinco votos para aprovar uma emenda à Constituição que reduzisse a maioridade penal no dia 30 de junho de 2015. Isso é inegável.
O que aconteceu? Por algo que está sendo chamado de 'manobra', o presidente da Câmara (Eduardo Cunha) fez aquilo que ele vai sustentar até o fim da vida que o regimento permite, que é colocar em votação emendas. No caso, é uma emenda aglutinativa, porque ela pega pontos de outras emendas que estavam vinculadas à PEC 171 e cria uma nova emenda. Ele sustenta que está correto fazer isso porque o que foi votado no dia 30 foi um substitutivo da PEC.
A proposta original da PEC 171 é uma redução simples da maioridade de 18 para 16 anos em todos os casos e sem fazer distinção nenhuma do tipo de encarceramento. Seria reduzir para 16 anos e colocar os jovens na cadeia dos adultos. Como o presidente sabia que a PEC dessa maneira não passaria na Câmara, porque nem os deputados aliados a ele votariam esse tipo de mudança muito drástica, e vendo que a PEC seletiva também não passou – faltaram poucos votos -, eles atenuaram um pouco mais o substitutivo. Criaram essa emenda aglutinativa, tirando o tráfico de drogas, que era a maior preocupação, e o roubo com aumento de pena, que estava criando um embaraço jurídico.
Atenuaram um pouco porque isso serviria de álibi para virar a opinião de alguns deputados e trazê-los para votar a favor da redução. O que acontece é que para que haja uma emenda aglutinativa, na votação do substitutivo deveria ter sido feito um destaque para deixar essa emenda pendente de votação.
Sul21 – Essa manobra teria que ter sido planejada antes?
JM: Exatamente. O plano B foi pensado depois, mas esta hipótese precisa ser pensada antes. Como houve a derrota, e não contavam com isso, o plano B foi pensado depois. Aí acabou que regimentalmente ficou inviável essa situação.
Sul21 – Mesmo que a PEC seja aprovada no Senado, é possível que o Supremo Tribunal Federal (STF) a considere inconstitucional?
JM: Esse é o problema. Essa manobra já foi utilizada na votação do financiamento privado de campanha, que é um dos maiores horrores num país que caminhava para a moralização desse processo. Nenhuma empresa vai justificar um gasto, uma aplicação de recurso, sem que tenha um interesse. Seria uma filantropia absurda.
O financiamento privado das campanhas foi afastado na primeira votação e aconteceu a mesma coisa. O deputado Eduardo Cunha joga com a pauta e joga com um grande número de deputados do chamado baixo clero. Ele comanda esse tipo de pessoa, convoca elas e refaz a votação por meio de uma nova emenda. O grave é que, quando esse mesmo tipo de manobra foi levado ao STF, a ministra Rosa Weber manteve a situação, porque há uma política de que o STF não interfere nas questões que dizem respeito ao regimento interno da Câmara para que não haja aqueles constrangimentos de que um poder está interferindo no outro. Mas, quando a questão é de legalidade, de regularidade do procedimento legislativo, o STF precisa intervir. Esse exemplo obviamente serviu de precedente para que o Eduardo Cunha fizesse isso. As votações geralmente são apertadas. Então, ele vota uma vez, tira a temperatura para ver quantos faltam e então passa a madrugada inteira fazendo telefonemas, pressão, não se sabe que tipo de medidas, e vira a votação no dia seguinte.
Acontece que o artigo 60 da Constituição Federal é muito claro: ‘a matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa (ano legislativo)’. Então, não poderia colocar isso em votação. Nem mesmo dessa forma.
Sul21 – Como já houve esse precedente do STF na questão do financiamento empresarial de campanha, a expectativa é que o Supremo não interfira novamente no procedimento legislativo?
JM: Um mandato de segurança impetrado por um deputado do PMDB, contrário à redução, lá na tramitação da PEC na CCJ (Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara), foi recebido e teve a liminar indeferida pelo ministro Dias Toffoli. Eu não sei se ficará prevento para as demais matérias relativas a isso. Então, vai depender do ministro Dias Toffoli se vai manter ou não essa posição.
Sul21 – Depende da vontade do ministro?
JM: Depende, em primeiro lugar, da decisão política de encarar o Congresso. Em segundo lugar, se esse enfrentamento vai ficar no plano formal, realmente mostrar que procedimentalmente não está correto, ou se, por outro lado, vai fazer a leitura do regimento igual ao Eduardo Cunha e dar suporte a ele.
Sul21 – Imaginemos que a PEC seja aprovada pelo Senado e sancionada pela presidente Dilma Rousseff. Quais os efeitos práticos dessa redução da maioridade penal ‘atenuada’?
JM: Como ela prevê um tipo de estabelecimento específico, que não pode ser o mesmo dos inimputáveis, de 16 a 18 anos, e dos imputáveis, de 18 para cima, precisa de um estabelecimento próprio – era outro ponto dessa emenda que era necessário para seduzir a maioria dos deputados. Como não existe esse estabelecimento e para um edital dessa natureza, que envolve construção de edificação de segurança, os prazos são muito longos.
Pegando o Rio Grande do Sul como exemplo, qual a disponibilidade de recursos do governo federal e do governo estadual, para dar uma contrapartida, para construir esses centros, que seriam uma terceira forma de casa prisional? Qual a possibilidade prática de construção desses centros? E não adianta construir um em Porto Alegre, porque a pessoa detida tem o direito de ficar próxima ao local onde aconteceu a ocorrência. Nas audiências, ela precisa estar próxima. A regra, inclusive, é fica na própria cidade. Como construir, se até hoje, passados vários governos de vários partidos, não foram construídos ainda os estabelecimentos necessários para desafogar as casas em que são aplicadas as medidas sócio-educativas?
Hoje nós temos um pequeno, mas já importante, déficit de vagas para os menores de 18 anos. E isso não foi solucionada porque é realmente difícil, por falta de verbas, por toda essa questão. O sistema prisional dos adultos a gente não precisa nem gastar tempo falando, porque se sabe que faltam 300 mil vagas no País. O sistema só vai valer para os próximos crimes praticados pelos adolescentes na faixa de 16 a 18, dentro da hipótese da PEC, quanto tiver esses estabelecimentos.
Sul21 – Se, por exemplo, levar 10 anos para serem construídos esses estabelecimentos, a lei não vai valer neste período?
JM: É por isso que o caso do financiamento empresarial de campanha está sendo avaliado em outro clima no Senado. Aquele momento em que a emoção, o ódio, a questão partidária levada a termos até infantis pela Câmara, acaba recebendo um tratamento mais sereno no Senado, porque são ex- governadores, senadores antigos, pessoas há mais tempo afeitas a esse tipo de decisão. O que aconteceu com esse projeto no Senado? Parou. Está engavetado e não será levado a discussão tão cedo. Por incrível que pareça, por mais que a gente queira que a tramitação seja célere, isso é muito importante.
No caso da PEC 171, não tenho a menor dúvida que ocorrerá o mesmo. O senador Paulo Paim (PT) e o senador Lasier Martins (PDT) já manifestaram opinião contra à redução da maioridade penal. E nós vamos trabalhar muito próximos da senadora Ana Amélia Lemos (PP) para que ela entenda a questão sob o ponto de vista técnico, científico, acadêmico, que não quer dizer nada distante da prática. Pelo contrário, é a prática analisada a partir dos dados e do conhecimento acumulado que nós temos de todas as medidas desse tipo que já foram implementadas no País, como, por exemplo, a lei dos crimes hediondos, a lei das penas alternativas, a leis dos juizados especiais criminais. Eu tenho certeza que no Senado vai ser diferente.
Sul21 – Voltando às conseqüências práticas, o que seria necessário para implementar a redução da maioridade penal como aprovada na Câmara?
JM: Não há estabelecimento para cumprir, então a entrada em vigor dessa PEC vai esbarrar na ausência do estabelecimento adequado. Em segundo lugar, além do estabelecimento, nós precisamos de todo o suporte para ele. Como nós temos a Susepe e os agentes que trabalham com as medidas socioeducativas, nós teremos que ter as pessoas que trabalhem com a nova modalidade.
Sul21 – Tem que ser criado um órgão?
JM: Vão ter que ser criados vários órgãos. Nós precisamos das pessoas que lidem com esses imputáveis, precisamos do transporte, da segurança, da alimentação…
Sul21 – Na verdade, então, não se está reduzindo a idade do adolescente ser julgado e punido como adulto, mas criando uma terceira classe?
JM: Exatamente. Essa terceira classe vai criar os problemas de ordem estrutural. Nós não temos estrutura. E, além do mais, vai criar um problema jurídico gravíssimo, que é o seguinte: o sujeito hoje é menor de 18 anos, e responde pelas medidas sócio-educativas, ou maior de 18 anos, e responde pelo Código de Processo Penal. Nós vamos ter agora, e isso vai ser o maior problema, dentro de um processo criminal, uma pessoa respondendo como maior e como menor ao mesmo tempo, porque ele pode ser responsabilizado por um furto e uma lesão corporal grave ou inicialmente um homicídio doloso.
A classe média acha que esse negócio é para preto, pobre e marginal e que ela está fora. Um acidente de trânsito de um sujeito da classe média ou alta que está embriagado, o que é considerado hoje um dolo eventual, torna uma pessoa de 16 a 18 anos maior de idade, sujeito às regras do tribunal do júri.
Então, ele é maior de idade para isso e vai ao júri. Só que o júri pode dizer: ‘não é caso de dolo eventual, é caso de culpa’. Ele volta a ser menor. Só que o procedimento aplicado todo foi o do maior. Juridicamente, o que eu vou fazer? Vou ter que anular o procedimento desde o início, porque agora ele é menor e não maior, e devolver esse material todo para o Juizado da Infância e da Juventude para processar ele como menor.
Sul21 – Vai ter que começar do zero?
JM - Vai começar do zero. Como o processo penal não está preparado para isso, que tipo de decisão é essa? Ela não está prevista nessa lei.
Sul21 – Acaba criando um limbo judiciário?
JM - Com certeza. Vai criar vácuos. Não tem solução para algumas coisas. Tu crias situações em que o Judiciário vai acabar, no vácuo, legislando. E esse é o maior perigo. Porque um juiz numa determinada Vara vai dizer: ‘Isso aqui anula e volta’. O outro vai dizer: ‘Não, não anula. Eu mesmo aplico aqui porque eu sou juiz’. Ou manda para a Vara da infância com o processo sem ser anulado. Olha a quantidade de situações.
Sem falar que em casos gravíssimos o sujeito será responsabilizado como adolescente, enquanto em casos de quase nenhuma gravidade, mas que se enquadraram na PEC, vão acabar sendo julgados como adultos. O terrorismo ficou fora. Então, o terrorista é adolescente, mas o sujeito que, no seu veículo, numa velocidade excessiva, aquilo que fica no limite entre o acidente de trânsito e o dolo eventual, vai ser maior. São situações que não são compatíveis.
O homicídio doloso, que é o homicídio simples, hoje ele pode ter uma pena de três anos no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). No sistema de adultos, ele vai ter uma pena de seis anos, em que pode cumprir um sexto. Então, ele vai passar a ter uma pena de um ano no regime semiaberto.
Sul21 – É capaz de ficar preso menos tempo?
JM: Com certeza vai atenuar a punição para vários crimes. Basta ver o roubo, que eles queriam colocar. O roubo, para o maior, tem uma pena de cinco anos, portanto ele começa no semiaberto. O menor cumpria no fechado. Se os dois cometessem o crime em coautoria, o maior iria para o semiaberto e o menor para o fechado.
Problemas estruturais, problemas procedimentais e, finalmente, o resultado disso tudo: o que nós ganhamos como sociedade? Nós ganhamos mais segurança, menos violência? Essa não é uma discussão que possa ser levada por qualquer pessoa. O argumento de que mais de 80% da população quer a redução da maioridade penal só é um dado que mostra o quanto a população está insegura e está se sentindo impotente diante da criminalidade. Só isso.
Agora, quando os deputados, quando alguns setores da imprensa utilizam esse argumento a favor da redução, eles estão fazendo uma leitura a partir do senso comum. Mexer na política criminal passa por pensar na questão carcerária, pensar na questão judiciária, pensar na questão executiva, de cumprimento de atenção alimentar, de transporte. Passa por tudo isso. Mas os criminólogos, quando analisam essas questões, mostram outro dado que não é acessível ao público: o que esse tipo de medida acarreta naquilo que nós queremos, a redução da criminalidade.
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