Documentário fala sobre o fim dos cinemas de rua de BH
“Metrópoles”, dirigido pelo cineasta Bellini Andrade, debate a crise das salas de exibição fora dos grandes shopping centers, mostrando 24 prédios que eram cinemas e hoje são igrejas, bancos, casas de show e até sauna e oficina mecânica
Minas 247 - O cineasta Bellini Andrade, da produtora Emvideo, acaba de concluir o documentário “Metrópoles”. O filme fala de um assunto que ele conhece bem: o fim dos cinemas de rua da capital mineira. Este ano, fechou o Cineclube Savassi, dois anos depois de a Usina Unibanco de Cinema também ter deixado de exibir filmes. Com isso, há apenas uma sala de exibição na cidade fora dos espaços dos shopping centers: o Usiminas Belas Artes, perto da Praça da Liberdade.
O nome do documentário, realizado com ajuda da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, é uma referência ao tradicional Cine Metrópole, inaugurado em 1942 no coração de Belo Horizonte e demolido em 1983. “A gente mostra 24 edifícios da cidade que eram cinemas e hoje deram lugar a igrejas, bancos, casas de show, sauna masculina, oficina mecânica, dentre outras coisas”, diz Bellini.
Leia a entrevista que ele deu sobre o novo documentário ao site Cinema em Cena:
Para começar, já que você está envolvido com essa pesquisa dos cinemas de rua de Belo Horizonte, gostaria que falasse um pouco da ascensão e queda dos cinemas de rua daqui. Como aconteceu, quem foram os responsáveis, como isso é registrado na memória das pessoas...
Bom, primeiro vamos falar da ascensão. Os cinemas de rua foram se espalhando pelas ruas de Belo Horizonte, a maioria dos bairros tinha cinema de rua, alguns bairros tinham mais de um. E no Centro, que era a maior concentração de tráfego de pessoas, havia muitos cinemas.
A programação do Centro da cidade era dividida: em alguns cinemas passava um tipo de filme, em outros cinemas passava outros tipos de filme. Então, se chegou até a dividir a audiência, o tipo de público que ia. O Cine Brasil passava mais filme de ação, por exemplo.
E os cinemas faziam parte do dia-a-dia do belo-horizontino, as pessoas os frequentavam e, pelo que elas dizem em depoimento, principalmente as pessoas mais velhas, é que elas se encontravam no cinema. Ir ao cinema era um programa diferente, as pessoas se preparavam para ir ao cinema... Era um evento.
E isso foi mudando, principalmente na década de 80, quando começou a decadência do cinema. Eles começaram a enfrentar uma concorrência, e aí foram vários motivos que levaram à decadência: essa concorrência da televisão, que começou a exibir filme, e principalmente do VHS. Isso era uma inovação tecnológica e todo mundo passou a ter um em casa. As pessoas passaram a alugar filmes, as locadoras começaram a se espalhar por Belo Horizonte e isso passou a afetar os cinemas também.
Outra coisa: o crescimento da cidade e a especulação imobiliária. Os cinemas eram grades edifícios, de grande porte, não eram só galpões. Com a decadência da bilheteria, com esse tanto de problema, a especulação imobiliária começou a entender que ali era um lugar para se fazer outra coisa. E as igrejas evangélicas, principalmente a Igreja Universal, começaram a ocupar vários cinemas, porque ali era um lugar ideal, já estava pronto: já tinha o palco, você tinha plateia cheia de cadeiras, você tinha pontos centrais já bastante conhecidos por todo mundo, e com o cinema já em decadência.
E outro motivo: as pessoas começaram a não ir mais nesses locais porque encontravam dificuldades de parar o carro, por causa de violência... Coisas do dia-a-dia das grandes metrópoles. Todas as grandes cidades sofreram esse problema com os cinemas de bairro.
E não é só no Brasil, não é?
Não, isso aconteceu também em outras cidades pelo mundo. O Brasil ficou muito marcado, pois não só em Belo Horizonte, mas em todo o país a gente teve isso. Nessa pesquisa que fizemos para o documentário, vimos que esse problema que aconteceu aqui, também ocorreu no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Porto Alegre, e também nas cidades do interior. A maioria das cidades do interior tinha cinemas, e praticamente todos foram fechados. É difícil você ver um cinema no interior hoje que conseguiu se manter como cinema, é raríssimo. Pelo mesmo motivo: também começou a chegar o VHS lá, televisão também chegou lá, a especulação imobiliária também chegou lá...
E o período de crise econômica também. A bilheteria começou a ir lá pra baixo por causa disso, por esses problemas todos. E aí os cinemas começaram o optar por outro tipo de público, que era o das artes marciais e pornô. Então, vários conseguiram sobreviver buscando esse tipo de público e se mantiveram com isso até não suportarem mais.
E aí teve cinema abandonado, teve cinema que virou igreja, teve cinema que na época virou sacolão. Olha a especulação imobiliária, coisa de cidade grande! O poder econômico ocupa os espaços. Quem tem condição de entrar ali viu um atrativo. Isso foi mudando com os anos 90, as igrejas também começaram a sair e começou a entrar outras coisas, tipo estacionamento... Tudo reflexo da metrópole. Não tinha onde parar carro e tem aquele lugar enorme ali, que não tem função, que não dá mais dinheiro. Vários viraram estacionamento.
O curioso é que antigamente existiam muito mais salas do que existem hoje, quando existe a possibilidade do multiplex e muitas outras. Por que você acha que existe menos salas? Deveria ter mais, não?
Deveria ter mais. É engraçado, porque os cinemas começaram a migrar para os shoppings. É outro motivo da decadência e também é coisa de metrópole. Você passou a ter o conforto do shopping, onde tem vaga para você parar, você tem segurança e você não vai lá só para ir ao cinema. Aí mudou completamente o perfil das pessoas que vão ao cinema. Você não vai mais igual as pessoas iam ao cinema e se encontravam lá, era um programa e tal. Não tem muito disso hoje. Você vai ao shopping, e aí você também vai ao cinema, mas você pode, do lado do cinema, comprar roupa, pode ir ao supermercado, você pode jantar, você pode lanchar, jogar um jogo, tudo do lado do cinema. É o consumismo, que está atrelado também a você consumir o cinema. Isso passou a ser diferente.
Mas nos shoppings há possibilidade de você ter muitas salas. No começo não era assim, eram poucas salas e elas eram cubículos, sem conforto. Hoje você tem salas com surround, o som é muito melhor, a projeção é digital e etc. E eu acho até que tem muitas salas, o problema é que elas passam a mesma coisa. Então, por exemplo, ao invés de ter, igual era antes, muitos filmes passando em salas diferentes, a mesma coisa que passa em um shopping vai passar em outro. Vão passar os mesmos filmes, que são os filmes ditados por Hollywood, são filmes de ação americanos. É difícil você ver filmes que saiam fora desse circuito.
Seria uma pasteurização?
Completamente pasteurizado. Homogeneizado. E poucos cinemas fora disso sobreviveram, e passaram dificuldades também, como é o caso do Belas Artes.
Ainda assim a maioria destes cinemas são subsidiados, o Belas Artes, por exemplo, tem patrocínio da Usiminas. Eles não se mantêm sozinhos?
É, se ele não tiver o patrocínio, acredito que fica difícil dele sobreviver, principalmente por ele ser na rua. Muita gente fala que é muito melhor assim, ser na rua, mas não adianta: a metrópole não deixou. Se você vai a um cinema de rua, você vai parar o carro onde? Então, você tem que ir de ônibus, e aí você cai no problema do transporte coletivo. Os cinemas de shopping suprem isso, mas passando os mesmos filmes.
E o que você acha que mudou na cultura de assistir a filmes, de fazer filmes, nos costumes? Por exemplo, não sei se é impressão, mas parece ter muito mais filmes dublados em cartaz hoje.
Bom, mudou uma coisa fundamental: a tecnologia. Assim como as salas são muito mais sofisticadas tecnologicamente, a internet também é, e o acesso das pessoas aos filmes também. Hoje, você pode baixar o filme e assistir em casa, não precisa nem ir à locadora. E ainda tem o problema do filme pirata. É tão “democrático” que qualquer pessoa baixe o filme, baixe a legenda e assista em casa. Então, para que você precisa ir ao cinema? Já imaginou o cinema de rua? Aí que não sobrevive mesmo... E como o público do cinema hoje, a maioria dele é de shopping, os filmes também passaram a ser feitos para quem vê esses filmes, por isso que são os mesmos filmes. É difícil você ver hoje Hollywood fazer um E o Vento Levou. Acabou a segmentação. Mesmo os brasileiros. Você tem o cinema brasileiro que evoluiu muito tecnologicamente, em termos de linguagem, você normalmente tem filmes brasileiros no circuito comercial. Mas frequentemente eles são da temática comédia romântica ou filmes de ação, como os americanos, adaptados para a realidade brasileira.
Nessa época dos cinemas de rua, década de 70, os filmes brasileiros tinham muito mais prestígio e bilheteria do que hoje, mesmo com a população sendo o dobro, praticamente. Você acha que isso tem relação com essa mudança de espaços?
Ah, com certeza. O público do cinema é diferente hoje. Eu ia muito mais ao cinema antes, e eu vou pouco hoje. Para ir ao shopping ver os mesmo filmes, eu prefiro ver lá em casa, pela NET, por exemplo, que também é outra forma de democratizar o acesso. Assisto lá em casa com a tecnologia ótima, imagem ótima. Não tem a telona, que para nós é essencial, mas pra ir ao shopping ver isso, prefiro ver lá em casa. Então, isso tem relação mesmo com os espaços. O cinema virou coisa de consumo, muita gente no documentário falou isso, "o templo de consumo". Se você foi lá ao shopping é porque você quer consumir. Antes o cinema servia para você ir ao cinema.
Mas a lógica do consumo também não foi invertida? Porque antes havia filmes que davam bilheteria e, hoje, não mais, como os filmes nacionais, por exemplo...
Eu até acho que o filme nacional voltou a ser rentável. Mas a temática dos que chegam a passar no cinema é igualzinha a dos americanos. E os que chegam a passar no cinema chegam junto, normalmente, com filmes europeus, aí eles vão pra outro tipo de cinema. Esses filmes não dariam essa bilheteria se fossem exibidos em uma sala de shopping, os filmes que passavam naquela época nos cinemas de arte de Belo Horizonte, como o Roxy, o Pathé, e algumas vezes o Regina. E para você ver, o Regina hoje continua funcionando como cinema pornô, e não passam filme em película, eles projetam o filme em um telão, tela de vídeo, aquela quadrada... Então, desvirtuou completamente a ideia de passar cinema. Filmes de arte não têm circuito mais, circuito hoje é alternativo. Você quer ver, você vai lá para o Palácio das Artes para ver no Humberto Mauro, senão você não consegue ver. Em shopping então? Impossível.
Você vê vantagem nos cinemas multiplex, de shopping, de hoje?
Vantagens têm. Você tem onde parar o carro, por exemplo, os shoppings exploraram isso e os cinemas também. A questão da segurança e a vantagem de se investir em tecnologia e conforto. Você tem essa vantagem na inovação tecnológica, as salas vão ficando muito bacanas, maiores, com telas adequadas, poltronas confortáveis. Mas para você ver o que eles querem, você não tem opção. E o maior problema para mim: se você vai a outro shopping, é a mesma coisa. Tem sala de cinema que passa o mesmo filme em mais de uma sala, dentro do mesmo shopping.
Cidade grande virou isso. Shopping é coisa de cidade grande, e eles ajudaram a engolir os cinemas de rua. E eles [cinemas de rua] ficaram decadentes mesmo. Nós fomos a quase todos os cinemas de rua, e é impressionante: salas lindas, enormes e maravilhosas, e a gente têm que citar o bom exemplo, o de restauração, como o Palladium e o Cine Brasil, por exemplo. Eram dos maiores cinemas do Brasil e fecharam já em franca decadência.
E a reforma do Palladium [antigo cinema que virou um centro cultural neste ano], evidentemente se adaptou as novas condições, à tecnologia, mas o cinema mesmo não ficou lá. O cinema virou uma sala lá embaixo para 90, 100 pessoas. A grande sala de cinema virou teatro. Quase todos os cinemas tinham em torno de 800 lugares. Hoje você tem isso? Talvez se você somar todas as salas de um shopping, mas passando os mesmo filmes de sempre. Aí, por exemplo, no Cine Brasil [cinema no centro da cidade que está sendo restaurado], eu fui lá e visitei a obra, está lenta e tem muita gente que critica a demora da restauração. Mas é porque eles descobriram lá dentro pinturas originais que tinham sido cobertas por lambris de madeira, e agora estão fazendo um projeto para restaurar essas pinturas.
Quem está fazendo essa restauração?
Quem está restaurando o Cine Brasil é a V&M. Vai ter cinema e a cidade vai ganhar um centro cultural, igual foi feito com o Palladium. O Cine Brasil era um cinema enorme ali na Praça Sete [principal praça do centro de Belo Horizonte]. Se não me engano, sempre ganhava entre as maiores bilheterias da América Latina, e caiu em decadência. Felizmente, ele não virou estacionamento e igreja.
Nada contra estacionamento e igreja, porque se existe estacionamento e igreja é porque tem gente para frequentar. A gente mostra isso no documentário. Não é uma crítica ao que eles [os cinemas de rua] viraram. Nós estamos mostrando o que eles viraram, e eles viraram isso porque passaram a ter função.
Eu perguntei para o pastor de uma igreja, onde era o antigo Cine Floresta: “Aqui antes era um cinema e hoje é uma igreja. Como o senhor vê isso? Antes ele tinha uma função e hoje tem outra função”. Ele me deu uma resposta que serviu para eu cutucar vários depoentes depois. Ele falou que, antes, as pessoas iam lá para ver um filme, e elas ficavam duas horas lá se divertindo, era uma diversão para eles, e que saiam dali e isso acabava. E hoje as pessoas vão lá para ouvir a palavra de Deus, e a palavra de Deus não dura duas horas, ela é eterna. Então, ele considera que o cinema hoje é menos importante que a igreja. É a visão dele, mas está vendo que tem gente que vai preferir que aquele lugar lá seja outra coisa?
Eu questionei várias pessoas, tem gente que achou um absurdo isso, que o cinema também é eterno. No documentário vocês vão ver isso, a gente fica contrapondo essas visões. Mas é engraçado, a gente não conseguiu ter no documentário alguns depoimentos que achávamos super importantes, como o da Igreja Universal. Nós não tivemos acesso, vinha segurança. Tentamos contato durante quase dois meses, até chegar a resposta de São Paulo: "definitivamente, não". Não podia gravar dentro de igreja nenhuma deles que fosse um antigo cinema. Em outras igrejas a gente conseguiu depoimentos.
O Cine Amazonas, por exemplo, virou Igreja Batista, um lugar enorme, e eles mostraram que ali estava abandonado. As pessoas entravam de moto dentro do cinema, era ponto de venda de drogas, de guardar coisa de assalto, de gente dormir lá. Então, eles compraram e reformaram, e hoje têm vários programas que ajudam a comunidade da região, vários espaços que a comunidade usa. Então, não é só criticar. Não sei se ele é mais importante do que quando funcionava como cinema. Para mim, não, mas hoje, do estado que ele estava nos anos 80, totalmente degradado, o que eles fazem lá agora é mais importante.
Todos os cinemas que estão funcionando hoje são da iniciativa privada. Você acha que faltou alguma iniciativa pública?
Ah, com certeza. Faltou interferência nisso. Para você ver o descaso do poder público com isso: você vê o Cine Pathé, um cinema tão importante para o circuito de filme de arte, a comunidade artística belo-horizontina se reunia para ir ao Pathé. Você vai à porta do Pathé hoje, ele é completamente abandonado, o prédio está caindo aos pedaços, na Savassi [bairro nobre de Belo Horizonte]. A Prefeitura está revitalizando a Savassi toda e vai ficar aquela coisa lá, apodrecendo, totalmente degradada, fechada com cadeado, pichada. Nós não conseguimos entrar de jeito nenhum para mostrar o que tem lá dentro. Ele já foi igreja e também já saiu. Nos últimos meses (ele fechou faz mais de um ano), ele foi estacionamento. E eu tenho certeza que muita gente adorou ter um lugar para parar o carro na Savassi.
Para finalizar, como você acha que vai ser o futuro do cinema? Ele vai gerar a mesma memória que os cinemas de antigamente?
Acho que não. O futuro do cinema é muito tecnológico. Por exemplo, hoje você faz filme com o telefone celular, você não tem os mesmos locais de exibição, mas o recurso de imagem, de captação hoje, é muito expressivo. Esses dias, eu peguei um jornalzinho do bairro Gutierrez, na padaria, que dizia assim: “Pesquisas mostram que moradores querem cinema no Gutierrez”. Eu li e o jornalzinho fez uma pesquisa de que os moradores gostariam muito que tivesse um cinema no bairro. Não tem, não existe cinema no Gutierrez. Aí as pessoas falavam: “Que saudade dos cinemas de bairro”. E eu duvido que vá ter, não vai ter mesmo. Não sei, não... Acho que é shopping mesmo, acho até que vai começar a ter mais salas, muitas salas, porque parece que o cinema voltou a ser lucrativo, mas nessas condições e com esses filmes.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com redacao@brasil247.com.br.
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: