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José Miguel Wisnik defende Emicida no episódio da prisão em BH

Para o ensaísta, rapper apenas fez um protesto artístico confundido pelos policiais locais como uma questão de desacato

José Miguel Wisnik defende Emicida no episódio da prisão em BH (Foto: Edição/247)

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Minas 247 - O músico, compositor e ensaista José Miguel Wisnik saiu em defesa do rapper Emicida no polêmico episódio de sua prisão em Belo Horizonte, há uma semana. Emicida foi detido por policiais logo depois de se apresentar em um festival de rap no bairro Barreiro, na capital mineira, supostamente por desacato. Antes da música “Dedo na Ferida”, ele protestou contra políticos e policiais na esteira da desocupação da Comunidade Eliana Silva, um movimento de 300 famílias que construíram seus barracos em terreno sem uso na região. Há denúncias de uso excessivo de violência na desocupação, ocorrida um dia antes do show de Emicida.

Em artigo publicado no jornal O Globo, Wisnik compara a prisão do rapper ao que ocorreu com a cantora Rita Lee, também detida pela polícia. “A polícia local tomou para si uma questão que fora levantada, na verdade, e mais propriamente, no âmbito do protesto artístico e cidadão contra a atuação da força policial em certas condições dadas”, escreve Wisnik.

Leia abaixo o texto de José Miguel Wisnik publicado em O Globo:

Nesses dias vi pela primeira vez o clipe de Jorge Ben cantando “Umbabaraúma”, regravação do clássico “Ponta de lança africano”, do disco “África Brasil”, de 1976, com a participação poderosa, agora, de Mano Brown. O vídeo foi gravado em 2010, mas o que me chamou a atenção foi a relação dele com outro, recente, de Emicida (“Zica, vai lá”), que conta com a participação curiosa de Neymar. A música de Ben Jor é uma das suas maravilhosas exaltações do herói jogador de futebol, o “homem-gol”, com a intervenção poética do rapper máximo, Mano Brown. A música do rapper Emicida é uma fábula sobre a luta do negro, jogando com metáforas das artes marciais, e tendo como participante engraçado, no papel de mestre oriental, o jogador máximo de futebol deste momento, Neymar (cuja fome de bola o faz estar em todas).

Não é comum que o jogador de futebol se aproxime do rap. Nem que uma voz das quebradas, como Emicida, se una ao vencedor no jogo das logomarcas, Neymar. Mas alguma coisa maior talvez esteja se desenhando aí, sob a égide simbólica de Ben Jor, que paira acima de todas as oposições.

Antes de mais nada, Emicida viveu esta semana um incidente policial em Belo Horizonte. Depois de um show, foi levado para a delegacia por ter, segundo as autoridades, incitado a massa contra a polícia. O episódio lembra de certo modo as confusões relativamente recentes do show de despedida de Rita Lee, em Aracaju. A polícia local tomou para si uma questão que fora levantada, na verdade, e mais propriamente, no âmbito do protesto artístico e cidadão contra a atuação da força policial em certas condições dadas. No caso de Emicida, trata-se da música “Dedo na ferida”, cujo clipe oficial e cuja interpretação ao vivo em BH podem ser acessados na internet, e que é um manifesto contundente contra as desocupações unilaterais de áreas tomadas por famílias de sem-teto nas “quebradas devastadas pela ganância”, fazendo referência a Moinho, Pinheirinho, Cracolândia, Rio dos Macacos, Alcântaras.

Coerente com a motivação inspiradora da composição, Emicida estendeu-a explicitamente, no show em Minas, ao caso da Ocupação Eliana Silva, movimento popular de mais de 300 famílias demandando a utilização social, na região do Barreiro, de um terreno sem proprietário e sem uso.

Fiel à raiz virulenta do rap, tomando o gênero mesmo como o resistente “dedo na ferida”, Emicida chamou a plateia a identificar-se com a população expulsa do local, levantando “seu dedo do meio para a polícia que desocupa as famílias mais humildes” e “para os políticos que não respeitam a população”, mandando- os todos “se foder”.

A violência do gesto é ao mesmo tempo inequívoca e simbólica, e não é para ser tomada num plano simplório. O dedo que se levanta contra a polícia e contra a política que leva às ações repressivas, incapaz do diálogo que a situação demanda, é nomeadamente o “dedo na ferida” social, mais abaixo e mais acima. O gesto seria meramente provocativo e restrito ao horizonte imediato se não fosse movido por um arco de linguagem mais abrangente. O prontuário que transcrevia incorretamente as palavras do rapper como “levantem o dedo do meio para cima, direcionem aos policiais, pois todos esses têm que se foder”, dava às palavras um alcance restrito e uma dimensão ofensiva imediatista que elas estavam longe de ter. 

É necessária uma capacidade de leitura maior, em todos os sentidos, para se entender a dimensão vital e crucial que esses artistas tidos como simplesmente desescolarizados souberam trazer e fazer circular nas nossas veias. “Dedo na ferida” cita Machado de Assis como representante da força dos que vêm de baixo, cita Elis e Cazuza, e eu já relatei, aqui, com que integridade Emicida leu Carlos Drummond de Andrade no evento que homenageou o poeta no Sesc Vila Mariana em março deste ano.

Volto ao princípio. Em “Umbabaraúma” Jorge Ben Jor faz a apologia rítmica, melódica, poética, cantante, onomatopaica, mântrica, da potência de vida que se encarna no goleador, e que nos vem do nosso fundo de África (o disco original da canção, como já dissemos, é “África Brasil”). Mano Brown intervém dizendo no fluxo ritmado do rap o ponto de vista de quem está na galera, de quem espera seco por aquele gol, de quem comemora aquele gol em tempo de carência, e o real coletivo que cerca aquele gol. Na soma dos dois, os princípios da luta e da festa, da dimensão política e lúdica da vida, não estão separados, mas reunidos numa dimensão superior.

Assim também o clipe de Emicida “Zica, vai lá” fala da importância de saber lutar, do ponto de vista do negro, mas dessa vez num clima bem-humorado de “Karatê Kid”, em que Neymar figura como mestre das artes marciais. A violência está posta, mas o imaginário moleque tem vez ali, tomando o jogador de futebol como referência de concentração, espírito vencedor e capacidade de responder criativamente às situações contrárias. Neymar tem esbanjado tudo isso, não só em campo mas na sua ao que parece inesgotável fome festiva de brincar e de fazer arder a energia da vida em fogo alto. Pasolini reconhecia essa liberdade no corpo popular brasileiro.

É impossível entender o mapa do Brasil contemporâneo sem contar com essas estrelas — Jorge Ben, Mano Brown, Emicida e Neymar. Sabemos de que lugar social eles vêm. E de que linguagens falamos — música, poesia e futebol.

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