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Geral

Moradora que assistiu o teatro de Doria detalha como foi a farsa

A moradora das imediações da Praça 14 Bis e professora da Universidade Federal do ABC (UFABC), Maria Caramez Carlotto, não aguentou e desceu quando ouviu o barulho de helicópteros, carros, caminhões, imprensa e funcionários públicos que acompanhavam o gari/prefeito João Doria. O que ela viu e relata aqui é uma grande farsa de marketing barato promovida pelo prefeito populista envolvendo funcionários comissionados, empresas contratadas e uma legião sem fim de puxa sacos. Vale ler cada palavra

João Doria vestido de gari lixeiro Cidade Linda (Foto: Leonardo Attuch)
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Por Maria Caramez Carlotto, na revista Fórum

Acordei às 6hs da manhã ao som de helicópteros de TV. Eu moro a duas quadras da Praça 14 Bis e a gestão Doria estava começando com enorme cobertura midiática. Levantei numa verve etnográfica e desci até a praça para tentar entender minimamente o sentido dessa “Operação Cidade Linda” que parece ter sido eleita como a grande marca da gestão Dória. Fiquei na praça das 6hs às 8hs da manhã e compartilho com vocês algumas impressões gerais. Deixo maiores avaliações para outros ou para outros momentos.

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Primeiro, a Operação se concentrou em um perímetro restrito da Praça e o grosso do trabalho foi feito de madrugada, antes da chegada do Prefeito e das equipes de TV. Isso até que foi bem divulgado pela mídia, aliás. O que não foi dito é que, durante a madrugada, além de lavar e varrer as ruas, a operação liberou um espaço embaixo do Viaduto Plínio de Queirós – por onde passa o elevado da 9 de julho – e parte das pessoas em situação rua que estava ocupando a parte central da Praça foram levadas para esse abrigo improvisado, que fica a menos de 30 metros de distância da 14 Bis. Como não haveria espaço para todos, outros foram temporariamente acolhidos na APGC.Tem (Associação “Tem Progresso Geração Construir”), dirigida pelo radialista Paulo Costa, que também funciona embaixo do viaduto Plínio de Queirós. Outros tinham ainda destino incerto.

O discurso oficial da gestão Dória era de que tudo seria feito “sem violência” e durante o auge da ação, de fato, não houve nenhum confronto explícito, nem violência direta, inclusive em relação a duas mulheres, uma delas grávida, que se recusaram a sair da parte central da praça. Importante frisar, porém, que elas ficavam em um ponto menos visível , sobretudo para o ângulo das câmeras de TV. Além disso, pouco antes das 8hs, quando o movimento mais forte começava a dispersar, passou a chegar com mais peso a Guarda Civil Metropolitana e o patrulhamento da Praça ficou mais ostensivo.

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Estou falando isso porque a operação de hoje me pareceu, mais do que uma ação de política pública em si, uma estratégia de comunicação. A primeira “cena” de um governo que será essencialmente baseado em Marketing. Mas não é só. A Operação Cidade Linda não é apenas um slogan. É uma grande oportunidade de negócios para as empresas de limpeza urbana da cidade, grandes patrocinadoras da ação de hoje. Tenho a sensação de que perceber essa economia política da gestão Doria será fundamental para definir o que serão os primeiros anos do seu governo e o que eles significarão para o Alckmin nos próximos meses.

Não por acaso, tudo foi cuidadosamente planejado para ser filmado, fotografado e repercutido sob o controle direto das equipes de comunicação da nova gestão e dos setores de marketing das empresas de limpeza urbana.

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Primeiro, havia uma quantidade totalmente desproporcional de caminhões das quatro principais empresas de limpeza urbana que atuam na cidade: a Loga, a Soma, a Eco Urbis e a mais recente e aparentemente mais importante de todas, a Inova. Parecia um desfile militar que, ao invés de armas, apresentava aparato de limpeza urbana. Eram dezenas de veículos, de todos os tipos. Todos não só recém-pintados, como totalmente limpos. Alguns eram estilizados para o final do ano ou para o início da operação. Parte deles ficava estacionada na praça, parte simplesmente girava em círculos sem parar: “lixo reciclável”, “lixo seco”, “material orgânico”, “uma nova forma de limpar a rua”. Aspiradores de rua, caminhões lava-jato, cata entulho. Era como um desfile militar, mas no lugar de armas eram tecnologias de limpeza da cidade.  Eles claramente não faziam nada na operação estavam ali apenas para estampar as marcas – tanto das empresas de limpeza urbana que competiam por visibilidade quanto da nova Operação “Cidade Linda”.

Aliás, o slogan da Operação já amanheceu espalhado em pontos de ônibus e relógios da cidade, além de letreiros eletrônicos da CET em pontos estratégicos. Uma campanha publicitária gigantesca paga com dinheiro público.

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Os garis (de verdade), que traziam no peito um broche com o Logo da Operação, também estavam em número muito superior ao necessário, mas praticamente nenhum deles trabalhando de fato. Tanto que as lixeiras e vassouras estavam novas e limpas (ver o detalhe na foto). Eu brinquei com um deles dizendo que o trabalho tinha sido pesado, ele riu e disse que não podia “criticar assim” porque os fiscais estavam ali “de butuca”. De fato, havia uma quantidade enorme de fiscais das empresas que supervisionavam tudo que os garis faziam: da fila para foto com o prefeito às entrevistas para rádio e TV. Nessa mise en scène intervinha, também, a equipe de “direção da operação”, vestida de camiseta branca com o slogan “Operação cidade linda” em letras pretas estilizadas. Pareciam ser tanto funcionários das empresas de limpeza urbana quanto da gestão Dória. Esses davam as ordens gerais: onde a imprensa ia ficar, o tom dos discursos, o ângulo das fotos oficiais, como a que encerrou a participação dos garis, na escadaria central da praça, com os braços levantados e gritando “feliz ano novo cidade linda”.

Quem também trazia a logomarca da operação e das empresas de limpeza no peito eram o prefeito, o vice-prefeito e os secretários e subsecretários municipais que compareceram em peso, todos vestidos de garis. Havia um boato de que a roupa deles era de material diferente e feito por um costureiro especial. O que fez a história de um “uniforme especialmente desenhado para ocasião” parecer minimante plausível para mim foi o fato da camiseta da alta cúpula da prefeitura trazer a logomarca de empresas diferentes de limpeza, enquanto a dos garis, evidentemente, estampavam a de uma empresa só (isso pode ser visto em todas as fotos divulgadas pela imprensa). Detalhes à parte, como os sapatos e os carros de luxo que circulavam ao lado dos caminhões de lixo, o objetivo era explícito: passar a imagem de um prefeito trabalhador, humilde e popular, mas ao mesmo tempo preocupado com a zeladoria da cidade, capaz de agradar, assim, a gregos e troianos.

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Os gregos passavam por ali enquanto faziam cooper de manhã com os cachorros, reverenciando o novo prefeito que estava  – finalmente – “limpando o nojo que estava essa cidade”.

Já um dos troianos encontrei ontem à noite, quando eu voltava a pé para casa pela Avenida Paulista. Era um morador de rua que me parou gentilmente para alertar que aquela região estava muito perigosa e que, de fato, a ação do Prefeito de limpar a cidade era mais que necessária, tanto que ele estava até pensando em ir na “posse” amanhã: “Eu vou agora lá para o Brás, vender latinha, mas acho que amanhã eu volto para ver a posse dele na 14 Bis”. Eu perguntei meio incrédula: “É mesmo?”. “É… esse cara é do PSDB mas é da ala de esquerda. A Soninha vai fazer albergue só para quem quer realmente trabalhar. Do jeito que está não pode ficar”.

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Saí atônita. Fiquei com a sensação de que ele tinha ido morar na rua há pouco tempo, como muitas das famílias que eu via chegar a cada semana na Praça 14 Bis com mobílias inteiras. A crise econômica tem um efeito imediato sobre os mais pobres. A população sem teto é, certamente, um dos problemas sociais mais urgentes do país, que exige uma ação política tão radical quanto eficaz.

E existe um verdadeiro campo de disputa aberto em torno desse problema.

A política da prefeitura para essa questão não está clara, embora estivesse lá hoje, acompanhando a ação, a ONG ARCAH, cujo ex-presidente, Filipe Sabará, é o novo secretário adjunto de Assistência e Desenvolvimento Social da gestão Dória. A ONG, segundo os próprios membros com quem conversei hoje, faz um trabalho de “resgate de moradores de rua”, com atividades de esporte e lazer, e oferecendo desde veterinários para os cachorros até médicos e dentistas para os sem teto. Aliás, havia numa das mesas da Praça um estande de propaganda da Colgate (como dá para ver em uma das fotos). Vestindo uma camiseta padronizada com a frase “I believe in good people” subscrita pela hashtag “#euresgato”, os membros da ONG ARCAH jogavam bola e conversavam com os sem teto no espaço da Associação APCG.tem. Eles pareciam fazer isso há muito tempo e estavam bastante à vontade. A única mulher que eu vi no grupo, explicava para algumas moradoras de rua como funciona o ciclo menstrual e como elas podiam evitar a gravidez evitando manter relações nos dias férteis. Havia, ainda, distribuição de lanche, frutas e suco. A Revista Veja chegou a fazer uma reportagem sobre a ONG com a manchete “Herdeiros de famílias tradicionais resgatam sem-teto”, em que relata as estratégias de organização, arrecadação e atuação da ONG que acaba de ganhar uma chácara em Botucatu, interior de São Paulo, para levar os moradores de rua que aceitarem ficar “internados” (o termo é da reportagem) por pelo menos três anos.

Quem também estava fortemente presente hoje era Igreja Católica mas, diferentemente da ARCAH, com uma posição claramente crítica a toda a Operação. Além de membros da Missão Belém, que acolhe sem tetos no Belenzinho, estavam lá, claro, o Padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Menor, acompanhado do Frei Agostino, da casa Pio de Pietrelcina no Butantã, com quem conversei longamente e que me pareceu desenvolver um trabalho muito importante e consistente com essa população.

Conversando com os moradores de rua estavam, ainda, as assistentes sociais da prefeitura, que me chamaram a atenção porque aplicavam uma espécie de questionário, com perguntas sobre escolaridade, história familiar etc. Elas  traziam uma camiseta com o slogan “conhecer para incluir” ou algo do gênero. Mas o detalhe que me surpreendeu realmente foi o fato de que elas não pareciam ter um formulário padronizado e faziam anotações meio a esmo em folhas de cadernos. Não sei se é uma estratégia de aproximação, mas a minha impressão imediata foi o fato delas (só vi mulheres nesse papel), que faziam uma das coisas mais importantes para quem quer realmente enfrentar o problema, trabalharem em uma situação de grande precariedade.

Fora isso, alguns pouquíssimos moradores do entorno, que aparentavam intimidade com as pessoas que moram na Praça há algum tempo, vociferavam contra a hipocrisia da operação.

Não vi ninguém da Igreja evangélica seja pentescotal ou neopentescontal. Também não vi nenhum partido político de esquerda, nem movimentos sociais mais estruturados, como o MTST. Não significa que eles não estivessem lá. Eu só não os vi.

Quando a operação começava a se desmontar, resolvi ir embora. No caminho para casa, encontrei dois garis que realmente trabalham na região e que olhavam de longe os colegas que ainda davam entrevista. Perguntei a eles o que tinham achado de tudo aquilo, em especial do prefeito vestido de gari. Meio irônico, meio indignado, um deles me respondeu:  “Se vestir de gari no fresquinho das 6hs da manhã é fácil, quero ver ele ficar o dia inteiro varrendo a rua como a gente, para sentir o que se sofre ao sol de meio dia, no viaduto do chá, ou na lua de meia noite, no Vale do Anhangabaú”. Ao que outro completou: “passar medo e passar sede”. Esses, pelo visto, não eram nem gregos nem troianos. Eram espartanos assistindo, de longe, a chegada das invasões dóricas.

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