Raquel Rolnik e Luciana Genro criticam “modelo de cidade dos negócios”
"Que cidade é essa, em que a maioria das pessoas não tem nem lugar?"; foi essa a pergunta que intrigou o público que assisti, ao evento "Cidade para quem?", em que a professora de Arquitetura e Urbanismo da USP Raquel Rolnik levantou provocações, teceu críticas e propôs mudanças ao modelo de cidade em que vivemos; promovido pela bancada do PSOL na Assembleia, o debate contou ainda com a ex-candidata do partido à presidência Luciana Genro, que abordou um panorama do problema urbano a partir de uma crítica ao capitalismo, e o deputado estadual Pedro Ruas, que falou de uma perspectiva local
Débora Fogliatto, Sul 21- “Que cidade é essa, em que a maioria das pessoas não tem nem lugar?”. Foi essa a pergunta que intrigou o público que assistiu, nesta segunda-feira (22), ao evento “Cidade para quem?”, em que a professora de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) Raquel Rolnik levantou provocações, teceu críticas e propôs mudanças ao modelo de cidade em que vivemos. Promovido pela bancada do PSOL na Assembleia, o debate contou ainda com a ex-candidata do partido à presidência Luciana Genro, que abordou um panorama do problema urbano a partir de uma crítica ao capitalismo, e o deputado estadual Pedro Ruas, que falou de uma perspectiva local.
O evento, que lotou o teatro Dante Barone da Assembleia, tratou de moradia adequada, mas o tema atravessou muitas outras questões relacionadas ao direito à cidade e à ocupação dos espaços públicos. Para iniciar a mesa, o deputado estadual Pedro Ruas falou sobre as movimentações de 2013, que resultaram na anulação do aumento do preço das passagens de ônibus. “Há pessoas que sem o transporte público nem podem garantir o direito de ir e vir”, destacou, lembrando que já foram realizadas duas licitações desertas para o sistema de coletivos da capital.
O deputado também mencionou a polêmica do projeto de lei que garantiria passe livre para apenados que estivessem cumprindo pena fora de suas cidades de origem. “As pessoas saem do presídio em Montenegro e vem a pé até Porto Alegre. Ou saem do Central e precisam ir para alguma cidade do interior. Não tem saída, não tem alternativa”, apontou, dizendo que assim essas pessoas podem facilmente voltar para o crime. “A cidade que queremos tem que ser inclusiva, não pode ser exploradora. A cidade que nós queremos está também ao nosso alcance. Temos que fazer a nossa parte”, concluiu.
Lógica da mercadoria e despejo
A advogada, ex-candidata a presidente da República e Coordenadora da Bancada do PSOL na Assembleia Luciana Genro destacou que, apesar de conquistas como os Estatutos das Cidades e o Ministério das Cidades, estas ficam “cada vez mais voltadas para as mercadorias, e não para o bem-estar das pessoas. Para acabar com esta lógica, ela defendeu que seja aplicada a função social da propriedade, taxação das grandes propriedades, IPTU progressivo para imóveis abandonados, e a urbanização forçada de terrenos ociosos.
Em um discurso que parece anteceder um anúncio de sua possível candidatura à prefeitura de Porto Alegre em 2016 — o que ela já admitiu ser uma possibilidade — Luciana destacou a necessidade de que seja feito um planejamento urbano “a favor da maioria, e não deixar a cidade na mão dos negócios”. “É na cidade que o sistema se materializa, se concretiza como excludente, opressor, discriminatório. Na cidade que os LGBTs não têm espaço garantido, são perseguidos e discriminados; que mulheres lutam por salário igual ao dos homens; que a juventude busca seu espaço de lazer, de sociabilidade; que os trabalhadores se organizam para lutar por seus direitos”, ponderou.
Ela criticou as remoções forçadas e os despejos de áreas ocupadas, promovidos por uma “expansão urbana completando desordenada, com vistas aos interesses de acumulação de capital”. A ex-deputada também citou o projeto de lei das áreas especiais de interesse social (AEIS), protocolado pela bancada do PSOL na Câmara, que foi aprovado, em seguida vetado pelo prefeito, para depois ter o veto derrubado e, por fim, ser barrado por liminar na Justiça protocolada pelo Executivo. “O resultado dessa lógica da cidade da mercadoria é o despejo, é que as AEIS não podem ser efetivadas porque atrapalham os interesses dessas imobiliárias”, afirmou.
Ela ainda criticou a gentrificação, processo em que os mais pobres ficam cada vez mais afastados das áreas centrais das cidades, e destacou que a disputa pela cidade é também uma “luta anti-capitalista, pela construção de um novo tipo de poder, que efetivamente seja popular”. A exemplo do movimento Podemos, da Espanha, que conquistou as prefeituras de Madri e Barcelona a partir de uma lógica em consonância com os movimentos sociais, Luciana falou da necessidade de “concretizar a luta da cidade com uma luta que é mais ampla, contra as castas políticas, o sistema apodrecido de instituições que não representam de fato as pessoas”.
Política feita na linguagem das construtoras
A professora e consultora da ONU Raquel Rolnik fez um resgate histórico da luta pela reforma urbana, que começou nos anos 1950, foi interrompida durante a repressão da ditadura militar e ressurgiu nos anos 1970. “As lutas pela redemocratização também tiveram uma base muito importante urbana. Na luta das vilas, movimentos sociais, que estavam precariamente inseridos na cidade e naquele momento começaram a reivindicar o direito a ter direitos, fazer parte integral à cidade, ter acesso às políticas públicas urbanas”, narrou.
Ela destacou que há uma inserção ambígua da população na cidade, pois parte das pessoas não têm lugar, no sentido político. “Que cidade é essa, que a maioria das pessoas não tem nem lugar? Concretamente, boa parte da cidade não é parte dela”, refletiu, criticando que o processo político de definição do destino da cidade “é feito por poucos”.
Seguindo com o histórico, contou que houve um período fértil de experimentações entre os anos 1980 e 90, em que algumas cidades tentaram incluir e radicalizar a democracia. “Temos instrumentos, mas está faltando justamente cumprir essas promessas. A participação popular, completamente esvaziada do processo concentrado exclusivamente nas mãos do poder econômico, aliado ao poder midiático, é um simples teatro da participação, e ela também faz parte da própria pauta neoliberal”, apontou.
A ambiguidade da qual ela falava se traduz exatamente na forma como as vilas, loteamentos e ocupações se inserem no contexto da cidade. “Elas são ou não são parte da cidade afinal de contas? São na hora de votar, de fazer campanha, mas não são na hora de eliminar a diferença, porque em um lugar se coleta o lixo e no outro não, em um lugar tem calçada e no outro não”, ponderou. Isso acontece, segundo ela, pois a política é financiada pelas grandes construtoras e empreiteiras, que dominam “o campo da política urbana” no Estado brasileiro. “É uma linguagem que foi montada para conversar com construtora, não fala dos valores do cotidiano das pessoas, da identidade, memória, dos afetos, da qualidade de vida das pessoas, dos sentimentos”, criticou.
A partir dessa linguagem, as formas de viver (moradia) e as de sobreviver (comércio) das camadas populares são definidas como ilegais ou irregulares. “Se torna irregular aquilo que é a prática concreta de vida: vendedores de rua, pequenos comércios, a construção de puxadinho em uma casa. É a forma como o povo se organiza para viver e morar. E essa forma, em função da própria legalidade construída na cidade, é irregular”, destacou. A urbanista também abordou os mega-eventos, que considera serem “nada mais do que estratégias para captar uma parte dos capitais internacionais, vendendo a cidade num cenário globalizado”, que acontecem a partir de um modelo de cidade dos negócios, que é a forma que “permite transformar a terra em mercadoria”.
Ela terminou sua fala de forma otimista, colocando que o fato de não ter havido ainda uma reforma urbana no Brasil não deve desanimar. “Acredito que é possível sonhar e imaginar uma outra cidade e que isso vai depender, fundamentalmente, de quais serão as novas formas de interlocução que consigam de fato incluir as pessoas e fazer com que elas se sintam protagonistas desse novo momento que estamos vivendo”, defendeu.
Esta definição de uma nova forma de viver pode vir a partir de um movimento de baixo para cima, que busque inverter a lógica em que vivemos. “Por que não ao invés de produzirmos casas, produzirmos cidades? Se tivermos espaços públicos, bibliotecas, quadras, espaços de lazer, culturais, com uma oferta de transporte público farto e acessível, a casa para morar é o de menos”, sugeriu.
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