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Ideias

A Itália e seus dilemas políticos

A aparente estabilidade institucional da Itália de hoje esconde uma realidade social complexa. Também está em disputa a sua narrativa política

Michele Sodano (Foto: Reprodução/Facebook)
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Por Sergio Ferrari - Com apenas 28 anos, em 2018, Michele Sodano foi eleito deputado federal pela região de Agrigento, na Sicília. Na época, ele pertencia ao Movimento 5 Estrelas (M5S), organização que naqueles anos se tornou um fenômeno nacional devido ao seu poder de convocação e à diversidade de posições internas. Sodano concluiu seu mandato em outubro de 2022, porém já não era representante do M5S. Por divergências com a liderança, em fevereiro de 2021, ele foi expulso de seu partido junto com um grupo de colegas parlamentares. Apesar da pouca idade, Sodano acumulou um extenso currículo profissional. Formado em Economia pela Universidade de Milão e em Administração de Empresas pela Universidade de Copenhague, trabalhou com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e em várias empresas privadas. Atualmente dirige a IMMAGINA, uma organização/espaço de trabalho coletivo e local de referência para encontros de solidariedade, localizada no coração de Agrigento. A seguir, apresentamos uma entrevista exclusiva com esse jovem intelectual comprometido, pacifista convicto e referência "sem partido" para grupos de cidadãos em sua cidade.

Ser diferente

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P: Como devo apresentá-lo?

Michele Sodano (MS): Pergunta difícil. Normalmente, na nossa cultura, nos apresentamos pelo que fazemos. No meu caso, neste momento da minha vida, priorizo minhas atividades para a comunidade e aproveito o tempo que posso reservar para mim, o que até agora nunca tinha conseguido fazer. Sinto-me privilegiado quando penso em tantos compatriotas que vivem apenas para trabalhar e acabam presos a uma lógica consumista que pode ser comparada a uma grande prisão de luxo.

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P: Quer dizer que sua prioridade hoje é quase existencial?

MS: Com certeza. Percebo muita gente ao meu redor que está deprimida, triste; que, às vezes, nem sabe para que vive. Seu objetivo é linear: trabalhar, aposentar-se e, em seguida, preparar-se para fazer o melhor uso do tempo antes da morte. Eu não entendo como se pode viver apenas para trabalhar. A vida é muito mais do que isso. Aprendi isso quando me deparei com um câncer, aos 17 anos. Mudou tudo para mim. Atenção: Acho que devemos trabalhar, mas entendendo o trabalho como uma contribuição equilibrada para o mundo ao nosso redor e não como o único objetivo de nossa existência.

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A profunda crise da política

P: Uma reflexão surpreendente porque você a expressa depois de estar, por quatro anos, vivendo a 120 quilômetros por hora como deputado federal, com um escritório em Roma, fazendo viagens constantes entre a capital italiana e Agrigento, sua cidade...

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MS: Foi uma experiência rica, nada negativa. Isso me permitiu compreender melhor a essência de muitas coisas. Não quero ser arrogante, mas acho que agora tenho mais lucidez para interpretar certas situações e fenômenos. Em particular, entender o enorme vazio da política institucional e tradicional. Sinto, e talvez seja provocador o que digo, que, hoje, na Itália, a diferença entre direita e esquerda é fundamentalmente de narrativa; não de substância ou de conteúdo essencial. Uma narrativa que muita gente olha como se fosse um episódio do Big Brother ou uma série da Netflix, muito distante de todo o conteúdo essencial. Isso foi especialmente perceptível após os anos do governo Berlusconi, que reduziu os instrumentos de análise social a quase nada e instalou a política como um espetáculo. A consequência disso: hoje, muita gente não compreende que a política em geral, e o Parlamento em particular, quase não têm poder real na Itália, nenhuma capacidade de representar o seu próprio povo.

P: Essa é uma declaração muito dura. Então, quem tem o poder na Itália hoje?

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MS: A grande finança, como em toda a Europa, onde impera esse capitalismo neoliberal dominante. A Itália não tem defesas imunológicas contra esse sistema. Tem uma tradição e uma história extraordinárias que sempre permitem que as pessoas pensem que vivem em um bom país. Mas, na realidade, nesse país, as multinacionais e o capital financeiro podem fazer o que quiserem e governar como quiserem. Descobri isso quando eu era deputado. A diferença entre Giorgia Meloni hoje e o Partido Democrata (antigo Partido Comunista) ou o Movimento 5 Estrelas ontem, é apenas narrativa. Na realidade, o que Meloni está implementando hoje, 18 meses depois de chegar ao poder, é o que o governo de coalizão de Conte e depois o de Mario Draghi fizeram no período anterior. Foram eles que abriram as portas para todas as grandes privatizações –como no setor da saúde–, que continuam se aprofundando.

O drama de um discurso imposto

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P: De acordo com sua análise, não parece muito dramático que atualmente a Itália seja governada por uma líder que tem sua origem em uma militância neofascista...

MS: Claro que é dramático, porque Meloni e a direita apresentam propostas ideológicas muito negativas para o desenvolvimento da consciência humana. Porque, do ponto de vista ideológico, a sua xenofobia, o medo do outro, a raiva de quem é diferente cria um prejuízo enorme e é muito perigoso.

P: Você acha que esses impulsos, mensagens e conceitos são irreversíveis?

MS: Não consigo avaliar o nível de reversibilidade ou irreversibilidade dos argumentos impostos pela extrema direita. A história é tese, antítese e síntese. Não posso dizer se chegaremos à antítese de todos esses abomináveis conteúdos ideológicos. O que vejo é um desmonte acelerado de tudo o que é cultural, no sentido amplo do termo. Um desinvestimento ativo na cultura, na educação, que tem impacto direto na conscientização cidadã. Hoje, percebo que muitas pessoas têm medo dos imigrantes e assumem a mensagem indiscutível de "imigrantes ou refugiados que vêm apenas para roubar e tirar vantagem". Não há dúvida de que ainda existe um setor consciente e solidário na sociedade italiana, mas ele é pequeno. E também um grupo majoritário que inclui setores populares, que tem medo e que, a cada dia, sofre mais com a crise econômica. Diante do risco de morrer de fome, muitos italianos de baixo poder aquisitivo estão se tornando conservadores e se apropriando acriticamente de argumentos xenófobos.

“Facilitamos a ascensão da Meloni”

P: Você ficou assustado quando o partido da Meloni, Irmãos da Itália, venceu em 2022?

MS: Não, não foi medo, mas, fiquei preocupado. E mais do que isso, uma sensação muito estranha: se Meloni chegou até aqui é porque o campo progressista italiano facilitou o terreno.

P: Pergunto novamente para entender bem: segundo a sua reflexão, o atual governo, mais do que mudanças profundas em seu programa, promove uma mudança de ideologia e de narrativa política...

MS: Acho que sim. Por exemplo, o governo apresentou argumentos e medidas para se opor a festas "rave" (ndr: multitudinárias e clandestinas), ou para proibir a carne sintética, ou para impor multas pelo uso de palavras em inglês. E arrasta a opinião pública e o debate dos cidadãos em torno destas questões não essenciais. Porém, ao mesmo tempo, perdoa grandes empresários que têm dívidas históricas e permite que multinacionais façam o que quiserem. Ao mesmo tempo, anula o "Reddito di cittadinanza" (Renda de Cidadania), importantíssimo subsídio de 700 euros para cada família abaixo do nível de pobreza, uma das nossas grandes conquistas quando o nosso Movimento 5 Estrelas estava no governo. É terrível, porque, com seus mecanismos midiáticos, Meloni e sua gente estão impondo como verdade absoluta que esse subsídio foi injusto e que "as pessoas devem trabalhar". Como se o problema não fosse a pobreza sistêmica de uma parcela significativa da população, mas a falta de vontade de trabalhar. Invertem tudo e se aproveitam da pobreza e do desespero das pessoas. É por isso que insisto em falar sobre o grande problema da narrativa política dos grupos dominantes.

P: Narrativa de direita e desmonte das conquistas sociais...

MS: Com certeza. Quando, em 2018, nosso movimento alcançou tanta força e chegou ao poder, sentimos que a justiça triunfava. Morei na Dinamarca, onde já era membro do M5S. Pedi demissão do meu emprego lá para voltar e participar da campanha eleitoral. Depois de seis meses e com apenas 28 anos, e com o perfil de um jovem com um discurso determinado e forte, fui eleito deputado com o apoio de mais de 50% do eleitorado da minha cidade. Muitos italianos experimentaram tudo isso como uma revolução extraordinária. Conseguimos legislar avanços impressionantes, como o subsídio aos mais necessitados, ou a obrigatoriedade de contratos de trabalho permanentes e seguros após dois anos de trabalho na mesma empresa. Conseguimos abolir a publicidade aos jogos de azar em um país onde o jogo continuava a crescer devido ao desespero econômico de muitas pessoas. Mas, as concessões à direita e à extrema direita começaram rapidamente e perdemos mais terreno a cada dia.

A queda de uma grande ilusão

P: Isso causou a crise interna dentro do Movimento 5 Estrelas?

MS: Isso mesmo. Um grupo de nós, que, como deputados, não apoiava a nomeação de Mario Draghi como primeiro-ministro, em 2021, foi expulso do Movimento e formou um grupo parlamentar independente. Em nossa avaliação, Draghi representava a elite neoliberal e globalizante da Europa. Ele foi diretor-executivo do Banco Mundial e depois, por oito anos, foi presidente do Banco Central Europeu. Por trás de Draghi estavam novamente a extrema direita e a direita, juntamente com o Partido Democrático e o M5S. A sua nomeação foi algo que a nossa decência política já não pode aceitar.

P: Um momento muito difícil na sua carreira política?

MS: A expulsão do M5S foi um acontecimento muito amargo na minha vida. Mas, não podia confiar naquele governo que, como a história mostrou, não beneficiaria em nada os setores populares. Foi triste, porque significou uma ruptura com um processo participativo que era inigualável em suas origens. Ao mesmo tempo, ao olhar a partir da minha própria ética, sinto essa expulsão como uma espécie de condecoração. Foi uma decisão de princípio que tomei sabendo que não me beneficiaria pessoalmente. Fiz a coisa certa, mesmo que não fosse a mais conveniente para mim. E é por isso que a considero um grande grito de liberdade. Imediatamente, com os outros colegas com quem criamos o grupo independente, começamos a renascer na vida parlamentar. Apresentamos projetos de lei de forma totalmente independente e, pela primeira vez, fiz contribuições parlamentares expressando os meus próprios sentimentos e convicções, e sem ter que ler um documento escrito por outra pessoa em nome do M5S. Confesso que foi uma experiência da qual me orgulho. Outros colegas, amigos e companheiros parlamentares do nosso movimento continuaram com a linha oficial. Sinto uma espécie de compaixão por eles, porque deve ser muito difícil se sentir bem depois de vender sua alma ao diabo.

A crise de uma Europa com a guerra em suas entranhas

P: Quando a guerra eclodiu na Ucrânia, seu grupo de expulsos do M5S se distanciou de qualquer apoio militar à Ucrânia e àquele conflito em geral...

MS: De fato. Essa guerra mina qualquer papel estratégico que a Europa pretenda desempenhar. Como continente, somos meros traficantes de armas, quando deveríamos ter levantado uma voz forte e alternativa pela paz. E, atenção: penso que deveria ter sido mantida uma distância saudável de Zelensky e de Putin. Sinto que, hoje, a Europa, como conceito de um projeto original em construção para um continente igualitário e justo, está muito enfraquecida.

P: Para concluir: sua organização IMMAGINA acaba de abrir suas portas para apresentar Grand Hotel Coronda, um livro sobre aqueles que foram presos políticos na prisão argentina de Coronda durante a ditadura militar. E nessa mesma sala realizam-se as reuniões regulares dos vários grupos e forças que defendem a paz na Palestina...

MS: Para nós, o IMMAGINA é um espaço aberto, em construção, humano e profundamente solidário. O principal objetivo que perseguimos é dar uma pequena sensação de eternidade a esse momento que vivemos hoje e aqui. Não é um projeto acabado ou fechado. As portas de nossas instalações estão abertas para todos. Pretendemos, especialmente nós que fazemos parte da IMMAGINA, nos reapropriar da vida. E isso implica dois conceitos principais: construir comunidade e contribuir para a felicidade coletiva. Em nossa prática coletiva buscamos promover atividades e propostas em nível micro, sem esquecer os aspectos macro de nossa cidade e região, com muita humildade e passo a passo, sem desespero.

E, neste contexto, a solidariedade é um conceito fundamental para nós. Combater tudo o que, hoje, empobrece nossa sociedade planetária: as fronteiras, as guerras que beneficiam poucas multinacionais, as polarizações entre regiões e Estados. Somos todos seres humanos de um mesmo planeta. Devemos preservar uns aos outros, não brigar uns com os outros, e cuidar, juntos, do nosso planeta.

Tradução: Rose Lima.

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