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Ideias

Diplomacia estadunidense é um drama trágico e só resta a ela a destruição, diz economista norte-americano

A alternativa é aquilo que se chama de autocracia – um rótulo hostil para governos que são fortes o suficiente para bloquear a tomada pelas oligarquias, diz Michael Hudson

Máscara de teatro grega (Foto: Marie-Lan Nguyen – Domínio Público)
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Artigo de Michael Hudson* publicado originalmente no Counter Punch. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz exclusivamente para o Brasil 247

Como numa tragédia grega cujo protagonista cumpre precisamente o destino que ele procurava evitar, a confrontação dos EUA/OTAN com a Rússia na Ucrânia está alcançando exatamente o oposto da intenção dos EUA de evitar que a China, a Rússia e os seus aliados agissem independentemente do controle dos EUA nas suas políticas de comércio e investimentos. Ao nomear a China como o principal adversário dos EUA a longo-prazo, o plano do governo Biden era de separar a Rússia da China e, depois, de aleijar a própria viabilidade militar e econômica da China. Porém, o efeito da diplomacia estadunidense tem sido de unir a Rússia e a China, junto com o Irã, a Índia e outros aliados. Pela primeira vez desde a Conferência das Nações Não-Alinhadas de Bandung em 1955, uma massa crítica foi capaz de ser mutuamente auto suficiente para iniciar o processo de alcançar a independência da Diplomacia do Dólar dos EUA.

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Confrontados com a prosperidade da China, baseada no investimento público autofinanciado em mercados socializados, as autoridades estadunidenses reconhecem que a resolução desta luta levará algumas décadas para se realizar. Armar um regime ucraniano de procuração é meramente um movimento de abertura para transformar a Segunda Guerra Fria (e, potencialmente e/ou efetivamente a Terceira Guerra Mundial) numa luta para dividir o mundo entre aliados e inimigos no que concerne se os governos ou o setor financeiro planejarão a economia e a sociedade do mundo.

O que está eufemizado como a democracia no estilo dos EUA é uma oligarquia financeira privatizando a infraestrutura básica, a saúde e a educação. A alternativa é aquilo que o presidente Biden chama de autocracia – um rótulo hostil para governos que são fortes o suficiente para bloquear a tomada de controle por uma oligarquia global que visa o lucro. A China é considerada como autocrática ao prover necessidades básicas a preços subsidiados, ao invés de cobrar seja lá o que for que o mercado aguenta pagar. Fazer a sua economia mista funcionar a custos baixos é chamado de “manipulação de mercado”, como se fosse uma coisa ruim que não tivesse sido feita pelos Estados Unidos, pela Alemanha e todas as outras nações industrializadas durante a partida econômica destas no século XIX e início do século XX.

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Clausewitz popularizou o axioma de que a guerra é uma extensão dos interesses nacionais – principalmente os econômicos. Os EUA consideram ser do seu interesse econômico mentir para espalhar a sua ideologia liberal globalmente. A meta dos evangelistas é de financiar e privatizar as economias ao tirar o planejamento dos governos nacionais e deixá-lo por conta do setor financeiro cosmopolita. Haveria pouca necessidade da política num mundo destes. O planejamento econômico passaria das capitais políticas para os centros financeiros, de Washington para Wall Street, com satélites na City de Londres, nas bolsas de Paris, Frankfurt e Tóquio. As reuniões de conselhos administrativos da nova oligarquia seriam realizadas no Fórum Econômico Mundial de Davos. A partir daí, os serviços públicos de infraestrutura seriam privatizados e cobrados a preços altos o suficiente para incluir lucros (e, efetivamente, lucros de monopólio), financiamento de dívidas e taxas de gerenciamento, ao invés de serem subsidiados publicamente. O serviço da dívida e os lucros se tornariam o maior custo de 'overhead' para as famílias, as indústrias e os governos.

O impulso dos EUA para manter o seu poder unipolar e impor as suas políticas financeiras, comerciais e militares de “America First” ao mundo envolve uma hostilidade inerente dirigida a todos os países que busquem os seus próprios interesses nacionais. Tendo cada vez menos para oferecer na forma de ganhos econômicos mútuos, a política estadunidense faz ameaças de sanções e interfere secretamente na política externa. O sonho dos EUA prevê uma versão chinesa de Boris Yeltsin tomando o lugar da liderança do Partido Comunista da nação e vendendo o domínio público ao maior licitante – presumivelmente, depois que uma crise monetária varra o poder de compra doméstico, parecido com o que ocorreu na Rússia pós-soviética, deixando a comunidade financeira internacional como os compradores.

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A Rússia e o presidente Putin não podem ser perdoados por terem lutado contra as “reformas” dos 'Harvard Boys'. É por isso que as autoridades dos EUA planejaram criar uma ruptura econômica russa para (esperavam eles) orquestrar uma “revolução colorida” e recapturar a Rússia para o campo neoliberal mundial. Este é o caráter da “democracia” e dos “mercados livres” que estão sendo justapostos à “autocracia” do crescimento subsidiado pelo Estado. Como explicou o ministro das relações exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, numa conferência de imprensa em 20 de julho de 2022, concernente ao violento golpe de Estado na Ucrânia em 2014, as autoridades dos EUA e de outras nações ocidentais definem golpes militares como democráticos se estes são patrocinados pelos EUA na esperança de promover políticas neoliberais.

Vocês estão lembrados de como se desenvolveram os eventos após o golpe? Os golpistas cuspiram na cara da Alemanha, da França e da Polônia que eram os fiadores do acordo com Viktor Yanukovych. Aquele acordo foi pisoteado na manhã seguinte ao golpe. Estes países europeus não deram um pio – eles se reconciliaram com isso. Há uns dois anos, eu perguntei aos alemães e aos franceses o que eles pensavam sobre o golpe. Do que se tratava, já que eles não tinham exigido que os golpistas cumprissem o acordo? Eles responderam: “Este é o custo do processo democrático.” Eu não estou brincando. É incrível – estes eram adultos que detinham cargos de ministros do exterior [1].

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O vocabulário de 'Doublethink' (Pensamento Duplo, da distopia de Orwell) reflete quão longe evoluiu a ideologia dominante desde que Rosa Luxemburgo descreveu, há um século, a escolha civilizacional que estava sendo colocada: a barbárie ou o socialismo.

Os interesses contraditórios dos EUA e dos europeus e os custos da guerra na Ucrânia

Para voltar à visão de Clausewitz sobre a guerra como uma extensão da política nacional, os interesses nacionais dos EUA divergem agudamente daqueles dos seus satélites da OTAN. Os beneficiários são o complexo militar-industrial e os setores do petróleo e da agricultura dos EUA, enquanto os interesses industriais europeus estão sofrendo. Este é especialmente o caso da Alemanha e da Itália, como resultado do bloqueio feito pelos seus governos às importações de gás da Nord Stream 2 e de outras matérias-primas russas.

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A interrupção no fornecimento das cadeias mundiais de suprimento de energia, alimentos e minerais e a resultante inflação de preços (que provê um guarda-chuva de proteção para os lucros monopolistas dos fornecedores não-russos) impuseram enormes pressões econômicas sobre os aliados dos EUA na Europa e no Sul Global. No entanto, a economia dos EUA se beneficia disto, ou pelo menos setores específicos da economia dos EUA estão se beneficiando disso. Como assinalou Sergei Lavrov na acima citada conferência de imprensa: “A economia europeia é mais impactada do que qualquer outra. As estatísticas revelam que 40% dos danos causados pelas sanções são suportados pela União Europeia, enquanto os danos para os EUA são menos de 1%.” A taxa de câmbio do dólar estadunidense subiu muito em relação ao euro – o qual afundou para a paridade com o dólar dos EUA e parece que cairá mais ainda até chegar perto de US$ 0.80 – que era o que havia uma geração antes. A dominação dos EUA sobre a Europa é fortalecida ainda mais pelas sanções comerciais contra o petróleo e o gás russos. Os EUA são grandes exportadores de GLP, as empresas estadunidenses controlam o comércio mundial de petróleo e as empresas dos EUA são os mais importantes comerciantes e exportadores de grãos, agora que a Rússia está excluída de muitos mercados estrangeiros.

O renascimento dos gastos militares europeus – para o ataque e não para a defesa

Os fabricantes de armamentos dos EUA estão ansiosos para lucrar com as vendas de armas para a Europa – a qual literalmente quase se desarmou totalmente ao enviar os seus tanques e artilharia, munições e mísseis para a Ucrânia. Os políticos estadunidenses apoiam uma política exterior belicosa para promover as fábricas de armamentos que empregam trabalhadores nos seus distritos eleitorais. E os neocons que dominam o Departamento de Estado dos EUA e a CIA veem a guerra como um meio de afirmar a dominação estadunidense sobre a economia mundial, começando pelos seus próprios parceiros da OTAN.

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O problema com esta visão é que, apesar dos monopólios militares-industriais, de petróleo e da agricultura dos EUA estarem se beneficiando, o resto da economia estadunidense está sendo comprimida pelas pressões inflacionárias resultantes do boicote ao gás, grãos e outras matérias-primas de exportação da Rússia e o enorme aumento do orçamento militar será usado como uma desculpa para cortar gastos de programas sociais. Isto também é um problema para os membros da Eurozona. Eles prometeram à OTAN elevar os seus gastos militares até os estimados 2% dos seus PIBs, e os estadunidenses estão instando a atingir níveis muito mais altos para atualizar-se aos mais variados armamentos. Quase esquecido ficou o Dividendo de Paz que foi prometido em 1991, quando a União Soviética dissolveu a aliança militar do Pacto de Varsóvia, na esperança de que também a OTAN teria pouca razão para existir.

A Rússia não tem interesses econômicos discerníveis para montar uma nova ocupação da Europa Central. Isto não ofereceria ganhos à Rússia, como os seus líderes se deram conta quando dissolveram a antiga União Soviética. Na verdade, no mundo atual nenhum país industrial pode se dar ao luxo de alocar uma infantaria para ocupar um inimigo. Tudo que a OTAN pode fazer é bombardear à distância. Ela pode destruir, mas não ocupar. Os EUA descobriram isto na Sérvia, no Iraque, na Líbia, na Síria e no Afeganistão. E assim como o assassinato do Arquiduque Ferdinando em Sarajevo (agora na Bósnia-Herzegovina) deflagrou a Primeira Guerra Mundial em 2014, o bombardeio da vizinha Sérvia pela OTAN pode ser visto como jogar fora a manopla para transformar a Guerra Fria 2 em uma verdadeira Terceira Guerra Mundial. Isto marcou o ponto no qual a OTAN se tornou uma aliança ofensiva, e não defensiva.

Como é que isso reflete os interesses europeus? Por que a Europa deveria se rearmar, se o único efeito disso é torná-la um alvo de retaliação no caso de novos ataques contra a Rússia? O que tem a Europa a ganhar em tornar-se um grande cliente do complexo industrial-militar dos EUA? Desviar gastos para reconstruir um exército ofensivo – isso jamais poderá ser usado sem detonar uma resposta atômica que varreria a Europa do mapa – limitará os gastos sociais necessários para lidar com os problemas atuais da Covid e da recessão econômica. 

A única alavancagem duradoura que uma nação pode oferecer ao mundo atual é o comércio e a transferência de tecnologia. E Europa tem mais para oferecer do que os EUA. No entanto, a única oposição aos renovados gastos militares está vindo dos partidos de direita e do partido Linke alemão. Os partidos social-democratas, socialistas e trabalhistas da Europa compartilham a ideologia neoliberal estadunidense.

As sanções contra o gás russo fazem do carvão “o combustível do futuro”

As pegadas de carbono (impacto ambiental) dos bombardeios, da manufatura de armamentos e das bases militares estão surpreendentemente ausentes das atuais discussões sobre o aquecimento global e a necessidade de reduzir as emissões de carbono. O partido alemão que se autointitula de Verde está liderando a campanha por sanções contra a importação de petróleo e gás russos, os quais as geradoras de eletricidade estão substituindo com carvão polonês e até o lignito alemão. O carvão está se tornando “o combustível do futuro”. O seu preço também está explodindo nos EUA, o que beneficia as empresas de carvão estadunidenses.

Em contraste com os acordos do Clube de Paris para reduzir as emissões de carbono, os EUA não têm nem a capacidade política, nem a intenção de juntar-se ao esforço de conservação. A Suprema Corte recentemente decidiu que o Ramo Executivo não tem a autoridade para decretar regras sobre energia para a nação inteira; apenas os estados individuais podem fazer isto, a não ser que o Congresso aprove uma lei nacional para reduzir os combustíveis fósseis.

Isto parece ser improvável, considerando o fato que tornar-se chefe de um Senado Democrata ou de um Comitê Congressional requer ser um líder em conseguir contribuições de campanha para o partido. Joe Manchin, um bilionário de uma empresa de carvão, lidera todos os senadores em apoio para campanhas de apoio às indústrias de petróleo e carvão, o que o capacita a ganhar o leilão do seu partido para a presidência do comitê de Energia e Recursos Naturais do Senado e para bloquear quaisquer legislações ambientais seriamente restritivas.

Depois do petróleo, a agricultura é a maior contribuinte para a balança de pagamentos dos EUA. O bloqueio dos embarques de grãos e de fertilizantes russos ameaça criar uma crise de alimentos no Sul Global, bem como uma crise europeia, à medida que o gás não está disponível para fabricar fertilizantes domésticos. A Rússia é a maior exportadora de grãos do mundo e também de fertilizantes, e as exportações destes produtos foram isentas das sanções da OTAN. Porém, os embarques russos foram bloqueados pelas minas colocadas pela Ucrânia nas rotas marítimas em todo o Mar Negro, para fechar o acesso ao porto de Odessa, na esperança de que o mundo culparia a Rússia pela iminente crise de grãos e energia, ao invés de culpar as sanções comerciais impostas à Rússia por EUA/OTAN [2]. Na sua conferência de imprensa de 20 de julho de 2022, Sergei Lavrov mostrou a hipocrisia das tentativas de relações públicas para distorcer as coisas:

“Durante muitos meses, eles nos contaram que a culpa era da Rússia pela crise de alimentos, porque as sanções não incluem alimentos e fertilizantes. Assim sendo, a Rússia não precisa encontrar maneiras de evitar as sanções e, por isso, deveria comercializar, porque ninguém a impede de fazê-lo. Nós levamos algum tempo para explicar a eles que, apesar dos alimentos e fertilizantes não estarem sujeitos às sanções, o primeiro e o segundo pacotes de restrições ocidentais afetaram os custos dos embarques marítimos, dos prêmios de seguro e das permissões para que navios russos carregassem estes bens para chegar a portos estrangeiros, bem como para que navios estrangeiros transportassem os mesmos carregamentos a partir de portos russos. Eles estão nos mentindo abertamente, falando que isto não é verdade, e que cabe à Rússia resolver isso sozinha. Isto é jogo sujo.”

O transporte de grãos no Mar Negro está recomeçando, mas os países da OTAN bloquearam os pagamentos para a Rússia em dólares dos EUA, em euros e em moedas de outros países na órbita dos EUA. Os países que estão com déficit de alimentos e que não conseguem pagar os altos preços enfrentam uma escassez drástica, a qual será exacerbada quando estes forem compelidos a pagar as suas dívidas externas denominadas no dólar estadunidense em alta. A iminente crise de combustível e alimentos promete criar uma nova onda de imigrantes que buscam sobreviver na Europa. A Europa já está inundada com refugiados dos bombardeios da OTAN e pelos ataques jihadistas na Líbia e nos países produtores de petróleo do Oriente Próximo. A guerra por procuração deste ano na Ucrânia e a imposição de sanções contra a Rússia são ilustrações perfeitas do gracejo de Henry Kissinger: “Pode ser perigoso ser um inimigo dos EUA, mas ser amigo dos EUA é fatal.”

Contragolpe dos erros de cálculo de EUA/OTAN

A diplomacia estrangeira dos EUA não é mais baseada no oferecimento de ganhos mútuos. Isto foi alegado após a Segunda Guerra Mundial, quando os EUA estavam na condição de oferecer empréstimos, ajuda estrangeira e proteção militar contra ocupações - bem como manufaturas para reconstruir as economias destroçadas pela guerra – aos governos em troca de que estes aceitassem as políticas comerciais e monetárias favoráveis aos exportadores e investidores estadunidenses. Mas atualmente só existe a diplomacia beligerante de ameaçar causar dano às nações cujos governos socialistas rejeitam a política neoliberal dos EUA de privatizar e vender todos os seus recursos naturais e infraestrutura pública.

Por mais que pareça surpreendente, os estrategistas estadunidenses não previram a resposta óbvia dos países que se encontraram juntos na mira das ameaças militares e econômicas dos EUA/OTAN. Em 19 de julho de 2022, os presidentes da Rússia e do Irã se encontraram para anunciar a sua cooperação em face à guerra de sanções feita contra eles. Isso seguiu-se ao encontro anterior da Rússia com o primeiro-ministro indiano Modi. Naquilo que foi caracterizado como “dar um tiro no próprio pé”, a diplomacia dos EUA está levando efetivamente a Rússia, a China, a Índia e o Irã juntos a convidar a Argentina e outros países a participarem do banco dos BRICS+ para se protegerem.

Os próprios EUA estão acabando com o Padrão Dólar nas finanças internacionais

A Administração Trump deu um passo importante para expulsar os países da órbita do dólar em Novembro de 2018, ao confiscar quase 2 bilhões de dólares das ações oficiais de ouro da Venezuela detidas em Londres. O Banco de Inglaterra pôs estas reservas à disposição de Juan Guaidó, o político de direita marginal seleccionado pelos Estados Unidos para substituir o presidente eleito da Venezuela como chefe de Estado. Isto foi definido como sendo democrático, porque a mudança de regime prometeu introduzir o "mercado livre" neoliberal que é considerado a essência da definição de democracia da América para o mundo de hoje.

Na verdade, este roubo de ouro não foi a primeira destes confiscos. Em 14 de novembro de 1979, o governo Carter paralisou os depósitos bancários do Irã em New York depois da derrubada do Xá. Esta ação impediu o Irã de pagar o serviço programado da sua dívida externa, forçando-o a entrar em falência. Isto foi visto como uma ação única e excepcional no que concerne a todos os outros mercados financeiros. Mas agora que os EUA são a proclamada “nação excepcional”, tais confiscos estão se tornando a nova norma da diplomacia estadunidense. Ninguém sabe ainda o que ocorreu com as reservas de ouro da Líbia que Muammar Gaddafi tinha a intenção de usar para dar suporte a uma alternativa africana ao dólar. E o ouro do Afeganistão e outras reservas foram simplesmente tomados por Washington como pagamento pelo custo de “libertar” aquele país do controle da Rússia e por apoiar os Talibãs. Porém, quando o governo Biden e os seus aliados da OTAN tomaram os ativos muito maiores de cerca de US$ 300 bilhões das reservas russas em moedas estrangeiras e ativos monetários em março de 2022, se tornou oficial uma nova época da Diplomacia do Dólar. Qualquer nação que segue políticas que não são consideradas como sendo do interesse do governo dos EUA, corre o risco de que as autoridades estadunidenses confisquem os seus ativos em moeda estrangeira depositados em bancos ou em papéis financeiros nos EUA.

Isto foi uma bandeira vermelha que levou alguns países a temer denominar o seu comércio, economias e dívidas externas em dólares, e evitar o uso do dólar ou de depósitos bancários em euro como meios de pagamento. Ao incitar outros países a pensarem como livrar-se do comércio mundial e do sistema monetário centrado nos EUA que foi estabelecido em 1945 com o FMI, o Banco Mundial e, subsequentemente, pela Organização Mundial do Comércio, os confiscos estadunidenses aceleraram o fim do padrão monetário do Tesouro dos EUA que governou as finanças mundiais desde que os EUA abandonaram o padrão-ouro em 1971 [3].

Desde agosto de 1971, quando acabou a convertibilidade do dólar em ouro, a dolarização do comércio e dos investimentos mundiais criou para outros países uma necessidade de manter a maior parte das suas reservas monetárias internacionais em papéis financeiros e depósitos bancários do Tesouro dos EUA. Como já foi assinalado, isso capacita os EUA a confiscar depósitos bancários e títulos estrangeiros denominados em dólares dos EUA.

Mais importante de tudo, os Estados Unidos podem criar e gastar à vontade duplicatas (IOUs – I Owe You) em dólar na economia mundial, sem limite. Eles não têm que acumular um superávit comercial para adquirir poder aquisitivo, como devem fazer outros países. O Tesouro dos EUA pode simplesmente imprimir dólares eletronicamente para financiar os seus gastos militares no estrangeiro e as suas compras de recursos e empresas. E, sendo um “país excepcional”, eles não precisam pagar estas dívidas – as quais são reconhecidas como sendo grandes demais para serem pagas. Os ativos estrangeiros em dólar são créditos grátis nos EUA para os EUA, sem demandar pagamento mais do que os dólares de papel nas nossas carteiras para serem pagos de volta (ao retirá-los de circulação). O que parece ser tão autodestrutivo sobre as sanções econômicas e confiscos de reservas russas e de outros países feitas pelos EUA é que estes estão acelerando a morte desta viagem grátis.

O contragolpe resultante do isolamento dos sistemas econômicos e monetários dos EUA/OTAN

É difícil ver como tirar países para fora da órbita econômica dos EUA possa servir aos interesses nacionais dos EUA a longo-prazo. Dividir o mundo em dois blocos monetários limitará a Diplomacia do Dólar aos seus aliados da OTAN e satélites.

O contragolpe que está se desdobrando agora na esteira da diplomacia estadunidense começa com a sua política anti-Rússia. Esperava-se que a imposição de sanções comerciais e monetárias bloqueasse os consumidores e negócios russos de comprar importações dos EUA/OTAN as quais eles tinham se acostumado. Supunha-se que o confisco das reservas em moedas estrangeiras da Rússia esmagasse o rublo, “transformando-o em destroços” [um jogo de palavras fonético em inglês: “turning it into rubble”, ao invés de ruble/rublo], como prometeu o presidente Biden. Supunha-se que a imposição de sanções contra a importação de petróleo e gás russo para a Europa privaria a Rússia de ganhos com exportações, causando o colapso do rublo e aumentando os preços das importações (e, portanto, o custo de vida) para o público russo. Ao invés disso, o bloqueio das exportações russas criou uma inflação de preços de petróleo e gás, aumentando agudamente os ganhos russos com as exportações. A Rússia exportou menos gás, porém ganhou mais dinheiro – e, com os dólares dos EUA e os euros bloqueados, a Rússia exigiu pagamento em rublos pelas suas exportações; com isso, a taxa de câmbio aumentou, ao invés de colapsar, capacitando a Rússia a reduzir as suas taxas de juros. 

Supunha-se que incitar a Rússia a enviar os seus soldados para o leste da Ucrânia para defender os habitantes de língua russa que estavam sob ataques em Lugansk e em Donetsk, juntamente o esperado impacto das consequentes sanções ocidentais, faria os eleitores russos pressionarem por uma mudança de regime. Porém, como quase sempre ocorre quando um país ou uma etnia são atacados, os russos ficaram chocados com o ódio ucraniano pelos habitantes de língua russa e pela cultura russa, e pela russofobia do Ocidente. O efeito do banimento de compositores russos e de livros russos das bibliotecas – coroado pelo banimento na Inglaterra de tenistas russos no torneio de Wimbledon – fez os russos se sentirem atacados simplesmente por serem russos. Eles se mobilizaram ao redor do presidente Putin.

As sanções comerciais da OTAN catalisaram a agricultura e a indústria russas a se tornarem mais autossuficientes, ao obrigar a Rússia a investir na substituição de importações. Um notório sucesso na agricultura foi o desenvolvimento da sua própria produção de queijos para substituir os antes importados da Lituânia e de outros fornecedores europeus. A sua produção automotiva e de outras indústrias está sendo forçada a trocar as marcas alemãs e outras europeias pelas suas próprias e as de produtores chineses. O resultado disso é uma perda de mercado para os exportadores ocidentais.

No campo de serviços financeiros, a exclusão da Rússia do sistema SWIFT de liquidações bancárias pela OTAN fracassou na criação do antecipado caos de pagamentos. A ameaça foi tão alta e por tanto tempo que a Rússia e a China tiveram muito tempo para desenvolver o seu próprio sistema de pagamentos. Isto lhes proveu as precondições para executarem os seus planos de separar as suas economias daquelas dos EUA/OTAN ocidentais.

Do jeito que as coisas se arranjam, as sanções comerciais e monetárias contra a Rússia estão impondo os custos maiores sobre a Europa Ocidental, e provavelmente se expandirão ao Sul Global, levando-os a pensar se os seus interesses econômicos estão em juntar-se à Diplomacia de Confrontação do Dólar estadunidense. A perturbação está sendo sentida mais seriamente na Alemanha, causando o fechamento de muitas empresas, como resultado da escassez de gás e outras matérias-primas. A recusa da Alemanha em autorizar o funcionamento do gasoduto Nord Stream 2 empurrou a crise de energia para o topo. Isto levantou a questão de por quanto tempo os partidos políticos da Alemanha podem permanecer subordinados às políticas de Guerra Fria da OTAN, às custas da indústria e dos lares alemães enfrentarem aumentos agudos nos custos de calefação e eletricidade.

Quanto mais tempo levar para se restaurar o comércio com a Rússia, mais as economias europeias sofrerão, junto com a cidadania em geral, e mais a taxa de câmbio do euro cairá, estimulando a inflação em todos os seus países-membros. Os países europeus da OTAN estão perdendo não somente os seus mercados de exportação, mas também as suas oportunidades de investimentos para ganhar dos países eurasianos com crescimento muito mais rápido, cujos planejamentos governamentais e resistência à financeirização se provou muito mais produtiva do que o modelo neoliberal dos EUA/OTAN.

É difícil ver como qualquer estratégia diplomática possa fazer mais do que ganhar tempo. Isto envolve viver para o curto prazo, não para o longo prazo. O tempo parece estar do lado da Rússia, da China e das alianças comerciais e de investimentos que eles estão negociando para substituir a ordem econômica neoliberal do Ocidente.

Em última análise, o maior problema dos EUA é a sua economia neoliberal pós-industrial

O fracasso e os contragolpes da diplomacia estadunidense são o resultado de problemas que vão além da própria diplomacia. O problema subjacente é o seu compromisso com o neoliberalismo, a financeirização e a privatização. Ao invés do governo subsidiar os custos básicos de vida que são necessários para os trabalhadores, toda a vida social está sendo feita como uma parte do “mercado” - um mercado dos “Chicago Boys” à la Thatcher singularmente desregulado, no qual a indústria, a agricultura, a habitação e o financiamento são desregulados e cada vez mais predadores, enquanto subsidia pesadamente a valorização dos ativos financeiros e que visam o lucro – principalmente a riqueza dos 1% mais ricos. A renda é cada vez mais obtida por ativos financeiros e monopólios que visam o lucro, e as fortunas são feitas por ganhos de “capital” alavancadas por dívidas para ações, títulos e imóveis.

As empresas industriais dos EUA visaram mais “criar riqueza” ao aumentarem os preços das suas ações e usar mais de 90% dos seus lucros para a recomprar as suas ações e para pagar dividendos (aos seus acionistas), ao invés de investir em novas instalações produtivas e contratar mais pessoal. O resultado do investimento mais lento de capital é o desmantelamento e a canibalização financeira das indústrias corporativas para produzir mais ganhos financeiros. E como as empresas empregam trabalhadores e montam novas unidades produtivas, isso é feito no estrangeiro, onde os salários são mais baixos.

A maior parte dos trabalhadores asiáticos podem se dar ao luxo de trabalhar por salários mais baixos porque eles têm custos muito menores com habitação e não têm que pagar dívidas de educação. Os cuidados de saúde são um direito público, não uma transação financeira de mercado, e as aposentadorias não são pagas em adiantado pelos assalariados e seus empregadores, mas são públicas. A meta da China, em particular, é evitar que o setor financeiro rentista de seguros e imobiliários se tornem uma carga pesada de 'overhead', cujos interesses econômicos diferem daqueles do governo socialista.

A China trata o dinheiro e os bancos como um serviço público – para ser criado, gasto e emprestado para propósitos que ajudem a aumentar a produtividade e os padrões de vida (e cada vez mais preserva o meio-ambiente). Ela rejeita o modelo neoliberal patrocinado pelos EUA e imposto pelo FMI, pelo Banco Mundial e pela Organização Mundial do Comércio.

A fratura econômica global vai além do conflito entre a OTAN com a Rússia na Ucrânia. Quando o governo Biden assumiu o poder no início de 2021, a Rússia e a China já estavam discutindo a necessidade de desdolarizar o seu comércio exterior e os seus investimentos, usando para isto as suas próprias moedas [4]. Isso envolve um salto quântico para organizar novas instituições para a liquidação de pagamentos. O planejamento não havia progredido além das linhas gerais de como tal sistema funcionaria, porém o confisco das reservas estrangeiras da Rússia pelos EUA tornou urgente este planejamento – começando com um banco dos BRICS+. Uma alternativa eurasiana ao FMI removerá a habilidade deste em impor “condicionalidades” neoliberais de austeridade para forçar os países a reduzir os salários e dar prioridade ao pagamento dos seus credores estrangeiros, ao invés de alimentar os seus povos e desenvolver as suas economias. Ao invés de estender novos créditos internacionais para pagar débitos contraídos na sua maior parte em dólares dos EUA, isto será parte de um novo processo de investimentos mútuos em infraestruturas básicas, projetadas para acelerar o crescimento econômico e o padrão de vida. Outras instituições estão sendo planejadas, à medida que a China, a Rússia, o Irã, a Índia e os seus respectivos aliados representam uma massa crítica grande o suficiente para “ir sozinhos” nisto, baseado nas suas próprias riquezas minerais e poder de manufatura.

A política básica dos EUA tem sido a de ameaçar a desestabilização de países e talvez de bombardeá-los até que eles concordem em adotar as políticas neoliberais e privatizar o seu setor público. Porém, enfrentar a Rússia, a China e o Irã é algo de uma magnitude muito maior. A OTAN se desarmou da capacidade de fazer guerras convencionais ao ceder os seus estoques de armamentos – os quais, admita-se, estavam muito desatualizados – para serem devorados na Ucrânia. Seja como for, nenhuma democracia no mundo atual pode impor uma conscrição militar para conduzir uma guerra convencional em terra contra um adversário significativamente maior. Os protestos contra a Guerra do Vietnã no final dos anos de 1960 acabaram com a conscrição militar nos EUA, e a única maneira para conquistar um país é ocupá-lo em uma guerra em terra. Esta lógica também implica que a Rússia não está mais na posição de invadir a Europa Ocidental do que os países da OTAN podem enviar conscritos para lutar com a Rússia.

Com isto, só resta às democracias ocidentais a capacidade de lutar num único tipo de guerra: a guerra atômica – ou, pelo menos, os bombardeios à distância, como foi feito no Afeganistão e no Oriente Próximo, sem requerer mão-de-obra ocidental. Isto não é diplomacia, de maneira alguma. Isto é agir meramente na função de destruidores. Porém esta é a única tática que resta disponível aos EUA a à Europa da OTAN. Surpreendentemente, isto é, como a dinâmica das tragédias gregas – nas quais o poder conduz à soberba que é injuriosa aos outros e, por isso, em última análise, é antissocial e acaba sendo autodestrutiva. 

Então, como podem os EUA manter a sua dominação mundial? Eles se desindustrializaram e acumularam uma dívida estrangeira oficial que vai muito além de alguma maneira previsível de ser paga. Neste ínterim, os bancos e os detentores de obrigações do Tesouro estão exigindo que o Sul Global e outros países paguem os detentores estrangeiros de obrigações do Tesouro em dólares, considerando que as suas próprias crises comerciais são resultados dos altos preços de energia e alimentos causados pela beligerância estadunidense contra a Rússia e a China. Este padrão duplo é uma contradição interna básica que vai ao âmago da atual visão de mundo neoliberal ocidental.

Eu descrevi os possíveis cenários para resolver este conflito no meu recente livro 'The Destiny of Civilization: Financial Capitalism, Industrial Capitalism or Socialism' – o qual agora foi publicado também em formato de e-book pela editora CounterPunch Books.

(O novo livro de Michael Hudson, 'The Destiny of Civilization' será publicado no original em inglês no próximo mês; ainda não existe uma tradução deste livro ao português).

Notas nos seus originais, em inglês:

[1] “Foreign Minister Sergey Lavrov’s interview with RT television, Sputnik agency and Rossiya Segodnya International Information Agency, Moscow, July 20, 2022,” Russian Foreign Affairs Ministry, July 20, 2022. From Johnson’s Russia List, July 21, 2022, #5.

[2] International Maritime Organization, “Maritime Security and Safety in the Black Sea and Sea of Azov”. See Yves Smith, Some Implications of the UN’s Ukraine Grain and Russia Fertilizer/Food Agreements,” Naked Capitalism, July 25, 2022, and Lavrov’s July 24 speech to the Arab League.

[3] My Super Imperialism: The Economic Strategy of American Empire (3rd ed., 2021) describes how the Treasury-bill standard has provided America with a free ride and enabled it to run balance-of-payments deficits without constraint, including the costs of its overseas military spending.

[4] Radhika Desai and Michael Hudson (2021), “Beyond Dollar Creditocracy: A Geopolitical Economy,” Valdai Club Paper No. 116. Moscow: Valdai Club, 7 July, reprinted in Real World Economic Review (97).

(*) Michael Hudson é o presidente do 'The Institute for the Study of Long-term Economic Trends' (ISLET); ele também é um Analista Financeiro em Wall Street, Professor Emérito de Pesquisa em Economias na Universidade de Missouri, Kansas City (EUA). Ele é o autor dos livros ‘Super-Imperialism: The Economic Strategy of American Empir’ (Editions 1968, 2003, 2021) e ‘...and forgive them their debts’ (2018), ‘J is for Junk Economics’ (2017), ‘Killing the Host’ (2015), ‘The Bubble and Beyond’ (2012), Trade, Development and Foreign Debt (1992 & 2009) and of The Myth of Aid (1971), entre muitos outros.

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