TV 247 logo
    HOME > Ideias

    O calor extremo vai se tornar o novo normal climático?

    Esse risco colocará sob maior ameaça as pessoas marginalizadas social, econômica, cultural, política ou institucionalmente

    (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

    Por Ian Angus (Blog da Boitempo)

    As constatações do Potsdam Institute foram publicadas pelo Banco Mundial em três relatórios detalhados em 2012, 2013 e 2014, com o título geral de Turn Down the Heat [Reduza o calor]. Os relatórios combinavam uma análise exaustiva de pesquisas realizadas por cientistas de todo o mundo com modelagens computacionais de última geração baseadas nos novos cenários de emissões previstos pelo IPCC, chamados “Patamares de Concentração Representativos” (em inglês, RCPs).1

    Os pesquisadores do Potsdam Institute se concentraram em dois deles: o RCP 2.6, segundo o qual cortes imediatos nas emissões e “emissões negativas” após 2050 podem manter os aumentos de temperatura abaixo de dois graus Celsius; e o RCP 8.5, que é essencialmente uma projeção para o cenário de manutenção do estado de coisas atual, em que as emissões e as temperaturas continuam crescendo – o que, de acordo com as projeções, levará a um aquecimento global cerca de quatro graus acima dos níveis pré-industriais até a década de 2080.2

    Os pesquisadores usaram os rótulos de Mundo 2 °C e Mundo 4 °C para as duas situações e as compararam com o período de base usado por James Hansen e seus colaboradores, que era de 1951 a 1980. Os resultados corroboram inteiramente a constatação de Hansen de que um aumento na temperatura média leva a um aumento desproporcional nos extremos de calor – o aumento de dois para quatro graus mais que dobra a extensão e a magnitude dos danos.

    Em um mundo com dois graus Celsius a mais, as ondas de calor incomum (Sigma-3) afetarão cerca de 20% do planeta por volta de 2050 e continuarão a afetá-lo ao longo do século. (O relatório do Potsdam Institute não discute se esse cenário é realista, mas é preciso observar que ele requer cortes nas emissões muito mais drásticos que qualquer governo do Primeiro Mundo já sugeriu e tecnologias que ainda nem existem.)

    Em um mundo com quatro graus Celsius a mais, cerca de 50% da população global, especialmente na África, na América Central e em partes da América do Sul, terá de suportar ondas frequentes de calor incomum (Sigma-3) até 2040 – essa será a nova norma nos verões. Até 2100, ondas de calor sem precedentes (Sigma-5) afetarão 60% da área terrestre do planeta, ainda mais nos países mais pobres, onde as pessoas têm menos recursos para se proteger e não têm como escapar.

    Esta passagem do primeiro relatório Turn Down the Heat é um resumo contundente sobre os extremos de calor em um mundo quatro graus mais quente:

    “Os efeitos do aquecimento de quatro graus Celsius não se distribuirão uniformemente pelo mundo e suas consequências não serão apenas uma extensão daquelas que seriam percebidas em um aquecimento de dois graus Celsius. O aquecimento mais acentuado ocorreria sobre a zona de terra e variaria de quatro a dez graus. Aumentos de seis graus Celsius ou mais na média mensal das temperaturas estivais serão esperados em grandes regiões do mundo, inclusive no Mediterrâneo, no Norte da África, no Oriente Médio e partes dos Estados Unidos.

    As projeções para um mundo quatro graus mais quente mostram um aumento drástico na intensidade e na frequência dos extremos de alta temperatura. As recentes ondas de calor extremo, como a que ocorreu na Rússia em 2010, provavelmente se tornarão o novo verão normal em um mundo quatro graus mais quente. A parte tropical da América do Sul, a África Central e todas as ilhas tropicais do Pacífico provavelmente enfrentarão reiteradas ondas de calor de magnitude e duração sem precedentes.

    Nesse novo regime climático de alta temperatura, é provável que os meses mais frios sejam consideravelmente mais quentes que os meses mais quentes no fim do século XX. Em regiões como o Mediterrâneo, o Norte da África, o Oriente Médio e o planalto tibetano, é provável que quase todos os meses de verão sejam mais quentes que nas ondas de calor mais extremo que ocorrem atualmente. Por exemplo, o mês de julho mais quente na região do Mediterrâneo poderia ser nove graus Celsius mais quente que o mês de julho mais quente dos dias atuais.

    As ondas de calor extremo dos últimos anos tiveram sérios impactos, causando mortes relacionadas ao calor, incêndios florestais e perdas de safra. Os impactos das ondas de calor extremo previstos para um mundo quatro graus Celsius mais quente ainda não foram avaliados, mas é de esperar que excedam em muito as consequências experimentadas até o momento e, com isso, extrapolem também a capacidade de adaptação de muitas sociedades e sistemas naturais.”3

    É importante lembrar que o aumento projetado de quatro graus Celsius até 2100 é uma média, não um valor máximo. Os pesquisadores do Potsdam Institute relatam que os únicos modelos baseados no RCP 8.5 que incluem um possível aquecimento de menos de quatro graus partem de suposições extraordinárias de melhoria da eficiência energética e redução da demanda.4 De fato, de acordo com o último relatório do IPCC, que costuma ser cauteloso, se o crescimento das emissões se mantiver, há uma chance de até 2100 a temperatura média global aumentar até 7,8 graus Celsius, o que faria com que um mundo quatro graus mais quente pareça totalmente inofensivo.5

    É praticamente certo que nossos descendentes viverão em um mundo quatro graus Celsius mais quente antes do fim do século, a menos que as emissões de gases de efeito estufa sejam radicalmente reduzidas em breve. Esse mundo não será apenas mais quente: quase todo o seu território estará sob um novo regime climático.

    Esse termo tem um significado específico no âmbito da climatologia. Mudar para um novo regime climático significa mudar para um ambiente com uma gama completamente diferente de possibilidades climáticas. Um exemplo extremo: a Antártida está sob um regime climático completamente diferente do Mali ou da Venezuela – os dias mais quentes no polo Sul são significativamente mais frios que os dias mais frios nos trópicos. Não há coincidência de temperaturas. No caso de um mundo quatro graus mais quente, estamos falando de uma mudança de regime climático no tempo, não no espaço.

    Um artigo de 2011 de cientistas do Wood Institute for the Environment, da Universidade de Stanford, examinou “a probabilidade de que o aumento nas concentrações de gases de efeito estufa resulte em um regime de calor novo e permanente no qual a estação quente mais fria do século XXI seja mais quente que a estação quente mais quente do fim do século XX”, se as emissões continuarem a crescer. 6 Eles concluíram que, até a década de 2050, praticamente todas as regiões tropicais, bem como o Norte da África e o Sul da Eurásia (Oriente Médio, Sul e Sudeste da Ásia), estarão permanentemente sob um regime de calor sem precedentes. Até 2070-2099, isso valerá para 80% dos verões na região extratropical da América do Norte, na China e no Mediterrâneo. Como destacam os autores, isso impõe grandes desafios à adaptação.

    “Além de aumentar a ocorrência de eventos quentes severos, uma transição permanente para um regime de calor sem precedentes poderia aumentar substancialmente os estresses relacionados ao clima, exigindo que os sistemas tolerem um novo enquadramento térmico no qual as novas condições são mais quentes que as condições mais quentes com as quais esses sistemas estão acostumados.”7

    Esses sistemas envolvem os bilhões de seres humanos que terão de viver e trabalhar em locais que serão mais quentes que qualquer outro lugar da Terra já foi desde antes da evolução da nossa espécie. As consequências para nossa saúde – e, no longo prazo, para nossa sobrevivência – são assustadoras. Um estudo de 2009 da revista médica britânica The Lancet concluiu que “a mudança climática é a maior ameaça global à saúde do século XXI”.8 Um estudo complementar de 2015 afirmou que a ameaça havia piorado: “Os efeitos da mudança climática já estão sendo sentidos hoje, e as projeções futuras apresentam um risco inaceitavelmente alto e potencialmente catastrófico para a saúde humana”.9

    A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que entre 2030 e 2050 a mudança climática causará milhões de mortes a mais por ano e que o número de mortes aumentará substancialmente na segunda metade do século. A proporção de mortes causadas por estresse térmico – ou seja, por calor extremo – aumentará mais depressa que as mortes provocadas por qualquer outro fator.10

    Hoje, o estresse por calor afeta principalmente crianças pequenas e idosos. À medida que o mundo esquenta, pessoas que trabalham ao ar livre ou em prédios sem ar-condicionado estarão cada vez mais expostas a riscos, pois o calor se tornará excessivo para trabalhar em segurança – atingindo ou ultrapassando a temperatura do globo de bulbo úmido (em inglês, WBGT), que é quando o corpo humano não consegue mais controlar sua temperatura interna.11

    Como disse um editorial da revista The Lancet sobre o relatório de 2014 do IPCC:

    “Alguns cenários preveem um aquecimento de quatro a sete graus Celsius (em média) em grande parte da massa terrestre do globo até o fim do século XXI. Se essa mudança ocorrer, os dias mais quentes excederão largamente as temperaturas atuais e aumentará o número de pessoas que vivem em condições tão extremas que a capacidade do corpo humano de manter o equilíbrio térmico durante suas atividades físicas ficará comprometida em parte do ano e não será mais possível trabalhar ao ar livre sem proteção.”12

    Até 2100, de acordo com cientistas da U.S. National Oceanic and Atmospheric Administration,

    “grande parte dos trópicos e das latitudes médias enfrentará meses de estresse térmico extremo, de modo que o estresse térmico em Washington D.C. será maior que o de New Orleans nos dias atuais, o de New Orleans será maior que o do Bahrein nos dias atuais e o do Bahrein atingirá um WBGT de 31,5 graus Celsius.”

    O novo regime climático, segundo eles, imporá “limitações ambientais cada vez mais severas à capacidade individual de trabalho […], especificamente a perda da capacidade de trabalho nos meses de pico de estresse por calor”.

    “Tanto no RCP 4.5 quanto no RCP 8.5, até 2050 a perda de capacidade de trabalho global nos meses de pico será cerca de duas vezes maior que no período histórico anterior. Depois de 2050, a mitigação ativa no RCP 4.5 fará a capacidade de trabalho cair para 75% da capacidade atual nos meses de pico. Assim, mesmo a mitigação ativa para limitar o aquecimento global a um aumento de dois graus Celsius em relação às condições pré-industriais resultará em cerca do dobro da redução da capacidade de trabalho perdida nesse modelo. O cenário com o maior índice considerado reduz a capacidade de trabalho para 63% da capacidade atual até 2100 nos meses mais quentes.”13

    Mas nem todos os trabalhadores podem se recusar a trabalhar, mesmo quando sua saúde está em jogo. A pressão para que o trabalho continue, sob pena de demissão, a pressão econômica para evitar perdas de salário por hora ou peça, todos esses fatores podem e vão manter a produção à custa dos trabalhadores. Somente uma organização militante para a proteção mútua dos trabalhadores pode evitar que a mudança climática se torne a principal causa de morte no trabalho no século XXI.

    Os trabalhadores agrícolas enfrentarão uma dupla ameaça: não poderão trabalhar tanto tempo no campo e o aumento das temperaturas reduzirá as colheitas das quais eles dependem para comer e se sustentar. Pesquisas recentes descobriram alguns pontos de ruptura específicos: quando as temperaturas ultrapassam determinados níveis, o rendimento das colheitas diminui depressa. Em um mundo quatro graus mais quente, no qual um aumento local de cinco a dez graus afetará muitas áreas, o impacto sobre a produção de alimentos pode ser catastrófico: “Preveem-se perdas substanciais nas regiões tropicais e subtropicais e em todos os principais tipos de lavoura. No caso do trigo e do milho, as perdas podem exceder os 50%, em média, em grande parte da zona tropical”.14

    Em 2015, um painel de especialistas convocado pelas Nações Unidas identificou alguns dos principais riscos apresentados pelo aquecimento de quatro graus Celsius:

    “Em um mundo quatro graus mais quente, os riscos globais serão altos ou muito altos. A maioria dos impactos previstos nos ecossistemas terá altos níveis de risco. A velocidade da mudança climática será muito alta para que as espécies terrestres e de água doce consigam mudar de maneira suficientemente rápida. Haverá perda de biodiversidade, inclusive extinção substancial de espécies e interrupção de ciclos ecossistêmicos. Os riscos combinados do aquecimento e da acidificação dos oceanos se tornarão muito altos. O potencial da atividade pesqueira será bastante reduzido, e a produção agrícola correrá riscos muito altos, sem possibilidade de adaptação. O aumento do nível do mar poderá exceder bem mais de um metro no longo prazo, e o gelo marinho do verão ártico desaparecerá. Alguns sistemas específicos ficarão sob ameaça e o risco de eventos climáticos extremos se tornará muito alto ou de médio a alto, se houver adaptação.

    Esse risco colocará sob maior ameaça as pessoas marginalizadas social, econômica, cultural, política ou institucionalmente […]. As perspectivas de redução de riscos por adaptação em um mundo quatro graus Celsius mais quente são limitadas, e os impactos aumentarão significativamente em todas as regiões. Com esse nível de aquecimento, os limites de adaptação serão atingidos no que concerne aos sistemas urbanos de abastecimento de água, às pessoas sensíveis ao calor, à produtividade agrícola e à segurança alimentar, aos meios de implementação e à preservação da identidade cultural. Além disso, o potencial de adaptação em caso de conflito por propriedade de terras e deslocamento diminuirá significativamente, o risco de insegurança alimentar (África e Ásia) e desnutrição (África, Ásia Central e do Sul) será alto e muito alto, e o risco de enchentes se tornará mais comum na Ásia e nas Américas Central, do Sul e do Norte.”15

    Notas

    1. Os RPCs foram introduzidos em 2012 para substituir os cenários de emissões que o IPCC usava desde 2000. São essencialmente bancos de dados gigantescos sobre o clima no mundo todo, subdivididos em mais de 500 mil células geográficas. Isso permite estudos altamente detalhados das mudanças globais do fim do século XX até mais ou menos 2100. Para um panorama não técnico, ver Graham Wayne, “The Beginner’s Guide to Representative Concentration Pathways”, Skeptical Science, 2013. Disponível on-line. ↩︎
    2. Potsdam Institute for Climate Impact Research and Climate Analytics, Turn Down the Heat: Confronting the New Climate Normal (Washington, World Bank, 2014), p. 6. ↩︎
    3. Idem, Turn Down the Heat: Why a 4° Warmer World Must Be Avoided (Washington, World Bank, 2012), p. xv. ↩︎
    4. Idem, Turn Down the Heat: Confronting the New Climate Normal, cit., p. 5. ↩︎
    5. Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC), “Summary for Policymakers”, em Climate Change 2014: Mitigation of Climate Change (Cambridge, Cambridge University Press, 2014), p. 8. ↩︎
    6. Noah S. Diffenbaugh e Martin Scherer, “Observational and Model Evidence of Global Emergence of Permanent, Unprecedented Heat in the 20th and 21st Centuries”, Climatic Change, v. 107, 2011, p. 615-24. O estudo usou modelos baseados no cenário A1B do IPCC, no qual o uso intensivo de energia fóssil e não fóssil cresce em taxas iguais. ↩︎
    7. Ibidem, p. 616. ↩︎
    8. Antony Costello et al., “Managing the Health Effects of Climate Change”, The Lancet, v. 373, n. 9.676, 2009, p. 1.693. ↩︎
    9. Nick Watts et al., “Health and Climate Change: Policy Responses to Protect Public Health”, The Lancet, v. 386, n. 10.006, 2015, p. 1.861-914. ↩︎
    10. 5 World Health Organization, “Climate Change and Health: WHO Fact Sheet No. 266”, 1º  ago. 2014. Disponível on-line. ↩︎
    11. A “temperatura do globo de bulbo úmido” é um índice de estresse térmico que combina temperatura, umidade, vento e radiação solar. ↩︎
    12. Alistair Woodward et al., “Climate Change and Health: On the Latest IPCC Report”, The Lancet, v. 383, n. 9.924, 2014, p. 1.187. ↩︎
    13. John P. Dunne, Ronald J. Stouffer e Jasmin G. John, “Reductions in Labour Capacity from Heat Stress under Climate Warming”, Nature Climate Change, v. 3, n. 6, 2013, p. 563-6. ↩︎
    14. Potsdam Institute for Climate Impact Research and Climate Analytics, Turn Down the Heat: Confronting the New Climate Normal, cit., p. 16. ↩︎
    15. United Nations Framework Convention on Climate Change (UNFCCC). Report on the Structured Expert Dialogue on the 2013-2015 Review (Genebra, United Nations Office, 2015), p. 16 e 17. ↩︎

    ❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com redacao@brasil247.com.br.

    ✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.

    iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

    Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: