HOME > Mundo

Alemanha virou satélite dos EUA na Nova Guerra Fria, diz Michael Hudson

A política dos EUA é orientada para uma meta e apenas uma meta: a hegemonia política e financeira do mundo e a dominação militar

Olaf Scholz em Praga 29/8/2022 (Foto: REUTERS/David W Cerny)

A posição da Alemanha na Nova Ordem dos EUA

Artigo de Michael Hudson* originalmente publicado no website do autor e no Brave New Europe em 01/11/22. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247

Artigo baseado na palestra de Michael Hudson:

https://www.youtube.com/watch?v=E_zY44YClCY

A política dos EUA é orientada para uma meta e apenas uma meta: a hegemonia política e financeira do mundo e a dominação militar.

A Alemanha se tornou um satélite dos EUA na Nova Guerra Fria contra a Rússia, a China e o resto da Eurásia. A Alemanha e outros países da OTAN foram instados a impor sanções comerciais e de investimentos a si mesmos, as quais durarão mais do que a atual guerra por procuração na Ucrânia. O presidente dos EUA, Biden, e o porta-voz do seu Departamento de Estado explicaram que a Ucrânia é apenas a arena inicial numa dinâmica muito mais ampla que está dividindo o mundo em dois conjuntos opostos de alianças econômicas. Esta fratura global promete ser uma luta de dez ou vinte anos para determinar se a economia do mundo será uma economia dolarizada centrada nos EUA, ou uma economia multipolar, multi-monetária mundial centrada no coração da Eurásia, com economias mistas públicas/privadas.

O presidente Biden caracterizou esta divisão como sendo entre democracias e autocracias. A terminologia é típica da fala-dupla Orwelliana. Por “democracias”, ele quer dizer os EUA e as oligarquias financeiras ocidentais aliadas. A meta delas é de tirar o planejamento econômico das mãos dos governos eleitos e colocar em Wall Street e outros centros financeiros sob controle dos EUA. Os diplomatas estadunidenses usam o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial para exigir a privatização da infraestrutura do mundo e a dependência nas exportações de tecnologia, petróleo e alimentos dos EUA.

Por “autocracia”, Biden quer dizer os países que resistem a esta assunção de financiamentos e privatizações. Na prática, a retórica dos EUA significa a promoção do seu próprio crescimento e padrões de vida, mantendo as finanças e os bancos enquanto serviços públicos. A questão básica é se as economias serão planejadas pelos centros bancários para criar riqueza financeira – privatizando a infraestrutura básica, os serviços públicos e os serviços sociais, como os cuidados de saúde como monopólios – ou elevar os padrões de vida e a prosperidade ao manter em mãos públicas os bancos e a criação de dinheiro, a saúde pública, a educação, os transportes e as comunicações.

O país que mais sofre “danos colaterais” nesta fratura global é a Alemanha. Enquanto a economia industrial mais avançada da Europa, o aço, os produtos químicos, a maquinaria, os automóveis e outros bens de consumo alemães são os mais dependentes das importações de gás, petróleo e metais russos – do alumínio ao titânio e paládio. No entanto, apesar dos dois gasodutos Nord Stream construídos para prover a Alemanha com energia de baixo custo, foi dito à Alemanha para interromper o suprimento de gás russo e para se desindustrializar. Isso significa o fim da sua proeminência econômica. Assim como em outros países, o fator-chave do crescimento do PIB da Alemanha é o consumo de energia por trabalhador.

Estas sanções anti-russas tornam a atual Nova Guerra Fria em anti-alemãs. O Secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, disse que a Alemanha deve substituir o gás barato da Rússia pelo gás liquefeito de petróleo (GLP) de alto preço dos EUA. Para importar este gás, a Alemanha terá que gastar mais de US$ 5 bilhões para construir rapidamente instalações portuárias para lidar com os cargueiros de GLP. O efeito disto tornará a indústria alemã não-competitiva. As falências se propagarão, o emprego diminuirá e os líderes pró-OTAN da Alemanha imporão uma depressão crônica e a queda dos padrões de vida.

A maioria das teorias políticas presume que as nações agirão de acordo com o seu interesse próprio. A não ser assim, elas serão países satélites, sem controle do seu próprio destino. A Alemanha está subordinando a sua indústria e os seus padrões de vida aos ditames da diplomacia estadunidense e o interesse próprio do setor de petróleo e gás dos EUA. Ela está fazendo isso voluntariamente – não por causa do uso de força militar, mas devido a uma crença ideológica de que a economia do mundo deva ser conduzida pelos planejadores da Guerra Fria dos EUA.

Às vezes é mais fácil compreender a dinâmica atual afastando-se da sua própria situação imediata para olhar para os exemplos históricos do tipo de diplomacia política que se vê dividindo o mundo atual. O paralelo mais próximo que eu consigo encontrar é a luta da Europa medieval conduzida pelo papado romano contra os reis alemães – os Sagrados Imperadores Romanos – no século XIII. Aquele conflito dividiu a Europa ao longo de linhas muito parecidas com as de hoje. Uma série de papas excomungaram Frederick II e outros reis e mobilizaram aliados para lutar contra a Alemanha e o seu controle do sul da Itália e da Sicília. 

O antagonismo ocidental contra o Oriente foi incitado pelas Cruzadas (1095-1291), assim como a Guerra Fria atual é uma cruzada contra economias que ameaçam a dominação do mundo pelos EUA. A guerra medieval contra a Alemanha tratava-se de quem deveria controlar a Europa cristã: o papado – com os papas se tornando imperadores mundanos – ou os governantes seculares de reinos individuais ao reivindicarem o poder de legitimá-los e aceitá-los moralmente.

A analogia da Europa medieval à Nova Guerra Fria dos EUA contra a China e a Rússia foi o Grande Cisma de 1054. Ao exigir o controle unipolar sobre a cristandade, Leão IX excomungou a Igreja Ortodoxa centrada em Constantinopla e toda a população que pertencia à esta. Um único bispado, o de Roma, se separou do mundo cristão inteiro daquela época, incluindo os Patriarcas de Alexandria, Antióquia, Constantinopla e Jerusalém.

Esta fuga criou um problema político para a diplomacia romana: como manter todos os reinos da Europa ocidental sob o seu controle e reivindicar o direito de receber subsídios financeiros deles. Esta meta requeria a subordinação dos reis seculares à autoridade religiosa papal. Em 1074, Gregório VII e Hildebrando anunciaram 27 preceitos papais, delineando a estratégia administrativa para Roma manter o seu poder sobre a Europa.

Estas exigências papais são surpreendentemente paralelas à diplomacia atual dos EUA. Em ambos os casos, os interesses militares e mundanos requerem a sublimação na forma de um espírito ideológico cruzado para cimentar o sentido de solidariedade que qualquer sistema imperial de dominação requer. A lógica disso é eterna e universal.

Os ditames papais eram radicais de duas maneiras. Primeiro, eles elevaram o bispo de Roma acima de todos os outros bispados, criando o papado moderno. A Cláusula 3 determinou que somente o Papa tinha o poder de investidura para nomear bispos, ou depô-los, ou de reintegrá-los. Reforçando isso, a Cláusula 25 deu ao Papa o direito de nomear (ou depor) bispos e não aos governantes locais. E a Cláusula 12 deu ao Papa o direito de depor imperadores, seguindo a Cláusula 9, que obrigava “todos os príncipes a beijarem os pés do Papa sozinhos” para que fossem considerados como governantes legítimos.

Da mesma forma, atualmente os diplomatas estadunidenses se arrogam o direito de nomear quem deveria ser reconhecido como chefe de Estado de uma nação. Em 1953, eles depuseram o líder eleito do Irã e o substituíram pela ditadura militar do Xá. Aquele princípio dá aos diplomatas dos EUA o direito de patrocinar “revoluções coloridas” para fazer mudanças de regime – como o seu patrocínio de ditaduras militares latino-americanas que criam oligarquias-clientes para servir os interesses corporativos e financeiros dos EUA. O golpe de 2014 na Ucrânia é apenas o mais recente exercício deste direito dos EUA de nomear e depor líderes.

Mais recentemente, os diplomatas estadunidenses nomearam Juan Guaidó como chefe de Estado da Venezuela, ao invés do seu presidente eleito, e entregaram as reservas de ouro daquele país à ele. O presidente Biden tem insistido que a Rússia deve remover Putin e colocar um líder mais pró-EUA no seu lugar. Este “direito” de selecionar chefes de Estado tem sido uma constante na política dos EUA, abrangendo a sua longa história de imiscuir-se nos assuntos políticos europeus desde a Segunda Guerra Mundial.

A segunda característica radical dos Ditames Papais foi a exclusão de todas as ideologias e políticas que divergiam da autoridade papal. A Cláusula 2 declara que somente o Papa poderia ser chamado de “Universal”. Por definição, qualquer discordância seria herética. A Cláusula 17 declara que nenhum capítulo ou livro poderia ser considerado canônico sem a autoridade papal.

Uma demanda similar está sendo feita pela ideologia patrocinada pelos EUA de “mercados livres” financializados e privatizados – o que quer dizer, a desregulação do poder de governo para modelar economias em interesses diferentes daqueles das elites financeiras e corporativas centradas nos EUA.

A exigência da universalidade na atual Nova Guerra Fria está camuflada na linguagem da “democracia”. Mas a definição de democracia na atual Nova Guerra Fria é simplesmente “pró-EUA” e, especificamente, a privatização neoliberal da nova religião econômica patrocinada pelos EUA. Esta ética é considerada como “ciência” – como no quase-prêmio Nobel Memorial nas Ciências Econômicas. Este é o eufemismo moderno para a economia-lixo neoliberal da Escola de Chicago, os programas de austeridade do FMI e o favoritismo nos impostos para os ricos.

Os Ditames Papais definiram uma estratégia para centrar-se no controle unipolar sobre os domínios seculares. Eles afirmam a precedência papal sobre os reis mundanos, acima de tudo sobre os Sagrados Imperadores Romanos da Alemanha. A Cláusula 26 deu aos papas a autoridade de excomungar qualquer um que “não estava em paz com a Igreja Romana”. Aquele princípio indicava a conclusiva Cláusula 27, a qual possibilitava ao papa “absolver sujeitos da sua fidelidade à homens perversos”. Isto encorajou a versão medieval das “revoluções coloridas” de promover mudanças de regime.

O que uniu os países nesta solidariedade foi um antagonismo às sociedades que não estavam sujeitas ao controle papal centralizado – os Infiéis Muçulmanos que dominavam Jerusalém e também os Cátaros Franceses e qualquer um outro que fosse considerado como um herege. Acima de tudo, havia uma hostilidade com relação a regiões suficientemente fortes para resistir às exigências papais de tributos financeiros.

A contrapartida atual a tal poder ideológico de excomungar hereges que resistem às exigências de obediência e tributos seria a Organização Mundial do Comércio, o Banco Mundial e o FMI, os quais ditam práticas econômicas e estabelecem “condicionalidades” que todos os governos-membros devem seguir, sob pena de sanções dos EUA – a versão moderna da excomunhão de países que não aceitam a suserania aos EUA. A Cláusula 19 dos Ditames estabelece que o Papa não poderia ser julgado por ninguém – assim como atualmente, os EUA se recusam a sujeitarem as suas ações às regras da Corte Mundial (em Haia). Da mesma forma, atualmente os EUA ditam via OTAN e outras instituições (como o FMI e o Banco Mundial) aquilo que esperam que os satélites dos EUA sigam, sem objeções. Como disse Margaret Thatcher sobre a sua privatização neoliberal que destruiu o setor público britânico: “Não Há Alternativa” [There Is No Alternative – TINA].

O meu ponto é enfatizar a analogia com as atuais sanções dos EUA contra todos os países que não seguem as suas próprias exigências diplomáticas. As sanções comerciais são uma forma de excomunhão. Elas revertem o princípio do Tratado da Westfália de 1648 que garantia a cada país e seus governantes independentes de interferências estrangeiras. O presidente Biden caracteriza a interferência dos EUA como uma garantia da sua antítese entre “democracia” e “autocracia”. Por democracia, ele quer dizer uma oligarquia-cliente sob controle dos EUA, criando riquezas financeiras ao reduzir os padrões de vida dos trabalhadores, em oposição à uma mescla de economias públicas/privadas visando a promoção dos padrões de vida e a solidariedade social.

Como eu mencionei antes, ao excomungar a Igreja Ortodoxa de Constantinopla e a sua população cristã, o Grande Cisma criou a fatídica linha divisória religiosa que separou “o Ocidente” do Oriente no último milênio. Esta cisão foi tão importante que Vladimir Putin a citou como parte do seu discurso de 30 de setembro de 2022, descrevendo a atual separação dos EUA e das economias centradas no Ocidente da OTAN.

Os séculos XII e XIII testemunharam os protestos repetidos dos conquistadores normandos da Inglaterra, da França e de outros países, juntamente com os reis alemães, os quais foram excomungados repetidamente e, ao final, sucumbiram às exigências papais. Foi necessário chegar ao século XVI até que Martin Luther, Zwingli e Henrique VIII finalmente criassem uma alternativa Protestante à Roma – tornando multipolar a Cristandade Ocidental. 

Por que isso levou tanto tempo? A resposta é que as Cruzadas promoveram uma gravidade ideológica organizacional. Isso foi a analogia medieval à atual Nova Guerra Fria entre o Oriente e o Ocidente. As Cruzadas criaram um foco espiritual de “reforma moral” ao mobilizar ódio contra “o outro” – o Oriente muçulmano e, cada vez mais, os judeus e os cristão europeus dissidentes do controle romano. Isto foi a analogia medieval às doutrinas neoliberais atuais de “mercados livres” da oligarquia financeira estadunidense e a sua hostilidade à China, à Rússia e a outras nações que não seguem aquela ideologia. Na atual Nova Guerra Fria, a ideologia neoliberal do Ocidente está o medo e o ódio do “o outro”, demonizando nações que seguem um caminho independente como “regimes autocráticos”. O racismo absoluto é fomentado com relação a povos inteiros, como evidencia a russofobia e a cultura de cancelamentos que varrem atualmente o Ocidente.

Assim como a transição multipolar da cristandade ocidental necessitou da alternativa protestante do século XVI, o rompimento do centro da Eurásia com o Ocidente centrado nos bancos da OTAN precisam ser consolidados por uma ideologia alternativa relativa a como organizar economias mistas públicas/privadas e a infraestrutura destas.

As igrejas medievais no Ocidente foram drenadas das suas metas e dotações para contribuir o subsídio de Peter Pence e outros ao papado pelas guerras que este estava lutando contra governantes que resistiam às demandas papais. A Inglaterra desempenhou o papel de vítima principal que a Alemanha desempenha atualmente. Foram cobrados enormes impostos na Inglaterra, ostensivamente para financiar as Cruzadas e foram desviados para lutar contra Frederico II, Conrado e Manfredo na Sicília. Este desvio foi financiado por banqueiros papais do norte da Itália (lombardia e usurários) e se tornaram dívidas reais passadas adiante em toda a economia. Os barões da Inglaterra travaram uma guerra civil contra Henrique II nos anos de 1260, acabando com a sua cumplicidade no sacrifício da economia às exigências papais.

O que acabou com o poder do papado sobre outros países foi o fim da guerra contra o Oriente. Quando os cruzados perderam Acre e a capital de Jerusalém em 1291, o papado perdeu o seu controle sobre a cristandade. Não havia mais um “mal” para lutar contra e o “bem” perdeu o centro de gravidade e coerência. Em 1307, Filipe IV (“o Justo”) da França capturou a grande riqueza bancária da ordem militar, aquela dos Templários no templo de Paris. Outros governantes também nacionalizaram os Templários e os sistemas monetários foram retirados das mãos da Igreja. Sem um inimigo comum definido e mobilizado por Roma, o papado perdeu o seu poder ideológico unipolar sobre a Europa Ocidental.

O equivalente moderno à rejeição dos Templários e das finanças papais seria se os países se retirassem da Nova Guerra Fria dos EUA. Eles rejeitariam o padrão-dólar e o sistema bancário e financeiro dos EUA. Isto está acontecendo, à medida que cada vez mais países veem a Rússia e a China não como adversários, mas como apresentando novas oportunidades para terem vantagens econômicas mútuas.

A promessa descumprida de ganhos mútuos entre a Alemanha e a Rússia

A dissolução da União Soviética em 1991 prometia um fim à Guerra Fria. O Pacto de Varsóvia foi desmantelado, a Alemanha foi reunificada e os diplomatas estadunidenses prometeram acabar com a OTAN – porque não existia mais uma ameaça militar soviética. Os líderes russos se satisfizeram com a esperança, como o expressou o presidente Putin, que seria possível a criação de uma economia pan-europeia de Lisboa a Vladivostok. Esperava-se que a Alemanha, em especial, liderasse os investimentos na Rússia e reestruturasse a sua indústria em linhas mais eficazes. A Rússia pagaria por esta transferência de tecnologia suprindo gás e petróleo, junto com níquel, alumínio, titânio e paládio.

Não houve a antecipação de que a OTAN seria expandida para ameaçar uma Nova Guerra Fria, e muito menos que ela apoiaria a Ucrânia – reconhecida como a mais corrupta cleptocracia na Europa – que estava sendo conduzida por partidos extremistas que se auto-identificam com insígnias nazistas alemãs.

Como explicamos por que o potencial aparentemente lógico de ganhos mútuos entre a Europa Ocidental e as antigas economias soviéticas se tornaram num patrocínio de cleptocracias oligárquicas. A destruição do gasoduto Nord Stream resume a dinâmica em poucas palavras. Por quase uma década, uma exigência constante dos EUA tem sido que a Alemanha rejeite a sua dependência da energia russa. Estas exigências foram impostas por Gerhard Schroeder, Angela Merkel e os líderes de negócios alemães. Eles indicaram a lógica econômica óbvia do comércio mútuo de manufaturas alemãs por matérias-primas russas.

O problema dos EUA foi como impedir que a Alemanha aprovasse o gasoduto Nord Stream 2. Victoria Nuland, o presidente Biden e outros diplomatas estadunidenses demonstraram que a maneira de fazer isto era incitar o ódio à Rússia. A Nova Guerra Fria foi enquadrada como uma nova Cruzada. Foi assim que George W. Bush descreveu o ataque dos EUA ao Iraque, para capturar os seus poços de petróleo. O golpe de 2014 patrocinado pelos EUA criou um regime-marionete ucraniano que passou oito anos bombardeando as províncias orientais de fala russa. Portanto, a OTAN incitou uma resposta militar russa. A incitação teve sucesso, e a resposta russa desejada foi devidamente rotulada como uma atrocidade não-provocada. A sua proteção de civis foi retratada nas mídias patrocinadas pela OTAN como sendo tão ofensiva que merecia as sanções comerciais e de investimento que foram impostas desde fevereiro. Isto é o que significa uma Cruzada.

O resultado disso é que o mundo está se dividindo em dois campos: a OTAN centrada nos EUA e a emergente coalizão eurasiana. Um efeito colateral desta dinâmica tem sido deixar a Alemanha incapaz de seguir com a sua política econômica de ter relações mutuamente vantajosas de comércio e investimentos com a Rússia (e, talvez, também a China). O chanceler da Alemanha Olaf Scholz está indo à China nesta semana para exigir que se desmantele o seu setor público e pare de subsidiar a sua economia, caso contrário a Alemanha e a Europa imporão sanções sobre o comércio com a China. Não há a menor possibilidade que a China aceite esta exigência ridícula – assim como se os EUA ou qualquer outra economia industrial parasse de subsidiar os seus próprios setores de chips de computador ou outros setores-chave (1). O Conselho Alemão de Relações Exteriores é um braço “libertário” neoliberal da OTAN que exige a desindustrialização da Alemanha e a sua dependência aos EUA para o seu comércio – não a China, nem a Rússia, nem os seus aliados. Isto promete ser o último prego no caixão econômico da Alemanha.

Um outro subproduto da Nova Guerra Fria dos EUA tem sido o de acabar com qualquer plano de conter o aquecimento global. Uma pedra angular da diplomacia econômica dos EUA é que as suas empresas petrolíferas e as dos seus aliados na OTAN controlem o suprimento de petróleo e gás no mundo – isto é, reduzir a dependência em combustíveis baseados em carbono. É disto que se tratava nas guerras da OTAN no Iraque, na Líbia, na Síria, no Afeganistão e na Ucrânia. Isto não é tão abstrato como “Democratas versus Republicanos”. Isto trata da capacidade dos EUA de causarem danos a outros países ao interromper o seu livre acesso à energia  outras necessidades básicas.

Sem a narrativa do “bem contra o mal” da Nova Guerra Fria, as sanções dos EUA perderão a sua razão de ser neste ataque dos EUA contra a proteção ambiental e no comércio mútuo entre a Europa Ocidental e a Rússia e a China. Este é o contexto da atual luta na Ucrânia, o qual é meramente o primeiro passo nos antecipados 20 anos de luta dos EUA para impedir o mundo de tornar-se multipolar. Este processo trancará a Alemanha e a Europa na dependência de suprimentos de gás liquefeito de petróleo dos EUA.

O truque é tentar convencer a Alemanha de que ela depende dos EUA para a sua segurança militar. O que a Alemanha realmente precisa é se proteger da guerra dos EUA contra a China e a Rússia que está marginalizando e “ucranizando” a Europa.

Não houve conclamações de governos ocidentais a um fim negociado para esta guerra, porque guerra alguma foi declarada na Ucrânia. Os EUA não declaram guerra em lugar algum, porque isto exigiria uma declaração congressional, segundo a constituição dos EUA. Então, os exércitos dos EUA e da OTAN bombardeiam, organizam revoluções coloridas, intervém em políticas de outros países (o que torna obsoletos os acordos da Westfália de 1648) e impõem sanções que estão destruindo a Alemanha e os seus vizinhos europeus.

Como podem as negociações “terminar” uma guerra que sequer teve uma declaração de guerra e é uma estratégia de longo prazo de dominação unipolar total?

A resposta é que nenhum fim desta guerra pode ser conseguido até que uma alternativa ao atual conjunto de insituições internacionais centradas nos EUA seja substituida. Isto requer a criação de novas instituições que constituam uma alternativa à visão neoliberal centrada nos bancos de que as economias deveriam ser privatizadas, com um planejamento central feito por centros financeiros. Rosa Luxemburgo caracterizou isto como sendo a escolha entre o socialismo e a barbárie. Eu fiz um esboço da dinâmica política de uma alternativa no meu recente livro The Destiny of Civilization [O Destino da Civilização].

(1) ver Guntram Wolff, "Scholz should send na explicit message sobre a sua visita a Beinjing” [Sholz deveria enviar uma mensagem explícita sobre a sua visita a Beijing] – publicado no Financial Times em 31 de outubro de 2022. Wolff é o diretor e CEO do German Council on Foreign Relations [Conselho Alemão para Relações Exteriores].

*Michael Hudson é o presidente do The Institute for the Study of Long-Term Economic Trends (ISLET); ele é um analista financeiro de Wall Street, Professor Emérito de Pesquisas Econômicas da Universidade de Missouri, em Kansas City. Ele é o autor do livro ‘Killing the Host’, publicado em formato de e-book pela CounterPunch Book e em formato impresso pela editora Islet. O seu novo livro é ‘J is For Junk Economics’.