Heaven Knows I´m Miserable Now
O homem se vai, lentamente, o sinal fica verde, arranco o carro e parto. E aquele sinal, de alguma forma, sempre continuará fechado
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Tento acelerar para transpor o cruzamento, mas não consigo. Com três carros à minha frente, o sinal fica amarelo e se fecha. Estou na rua Araguari esquina com avenida do Contorno, exatamente debaixo do elevado Castelo Branco. O local é amplamente conhecido pela presença maciça de pedintes. Fria e cinzenta, com uma leve neblina, a tarde é triste.
De vidros fechados e rádio ligado, passo a observar a situação que se me apresenta. Neste instante, começa a tocar no rádio a música “Sinal Fechado”. Um homem se aproxima dos veículos. Olho para os carros à minha frente e me parecem nítidas três espécies de motoristas.
O primeiro tipo é o tipo que se importa. Solícito, o condutor ouve atentamente o falatório do mendigo e estende-lhe a mão, ofertando dinheiro. Não vejo bem quanto, mas à distância me parece uma nota de 10 reais.
O segundo tipo de motorista é o tipo que não se importa. Fixa os olhos no maltrapilho, encara-o de vidros fechados e semblante ríspido e, por fim, acena-lhe um eloquente “não”.
No som do meu carro, Paulinho da Viola está cantando o verso:
“- Me perdõe a pressa, é a alma dos nossos negócios
- Oh! Não tem de quê. Eu também só ando a cem”
A terceira espécie é a do motorista que finge que não vê. Mantém os vidros fechados e, ao perceber a aproximação do indigente, abaixa-se, simulando procurar algo que caiu no chão do automóvel. Conta mentalmente até dez e olha, de soslaio, para ter certeza de que o outro já se foi.
O sinal de Paulinho da Viola se abre e a música termina. E começa a tocar uma canção da banda britânica The Smiths, no momento em que o desafortunado vem em minha direção.
Mas somente quando ele chega é que descubro não se tratar de um mendigo. Ele se apresenta: “- Boa tarde. Não moro na rua, não quero um prato de comida, não estou desempregado, não tenho filho doente e não quero sua esmola. Sou o Poeta Sujo e quero lhe mostrar minha arte. Pague alguma coisa por ela, se achar que vale ou não pague nada”. Ele segura um rádio de pilha, em uma das mãos e o poema, na outra. Já sabendo que o sinal está prestes a abrir, rapidamente corro os olhos no texto e vejo que fala de angústia, vazio, medo e solidão.
Embaraçado, digo-lhe que estou desprevenido e não disponho de meios para ajudá-lo. Ele baixa os olhos e me agradece. Percebo, entretanto, que seu radinho de pilha está sintonizado na mesma estação de rádio que toca no meu carro. O vocalista Morrissey está cantando:
“I was happy in the haze of a drunken hour
But heaven knows I'm miserable now”
O homem se vai, lentamente, o sinal fica verde, arranco o carro e parto. E aquele sinal, de alguma forma, sempre continuará fechado.
Luciano Gil.
Belo Horizonte/MG, 09 de maio de 2012.
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