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Os anjos tortos

Expropriação na Argentina, imigração na França, cota racial no Brasil. Quando defender a bandeira política certa é mais importante que tomar a atitude certa, há algo errado

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O muro caiu há mais de 20 anos, mas ainda tem gente tacando pedra por cima dele. Os conceitos de direita e esquerda persistem — e existirão enquanto houver quem os sustente — , mas faz tempo que deixaram de fazer sentido. Sei que você acredita neles, mas o governante que você defende acredita? O jornalista que você defende acredita?

A moda é ser gauche, desde que a direita foi ferida de morte, fulminada pela associação com as mais sangrentas ditaduras da Europa — o curioso é que nem as mais sangrentas ditaduras da Ásia deram conta de exterminar o discurso de esquerda. O direitista vem sendo mantido vivo com o auxílio de aparelhos, contudo. Pelo esquerdista.

A que se resume a direita hoje? A tudo aquilo que destoa da ideologia dominante. Todo o contraditório é empurrado para esse terreno obscuro e mau. O incômodo questionador, seja ele quem for, diga o que disser, é de direita, racista, reacionário ou qualquer outro desabonador. Enquanto isso, o ideário de esquerda sobrevive como atestado de correção, ou pelo menos de boa intenção. Morre o debate, para o deleite de empresários e bicheiros apartidários, que, sem qualquer preconceito, ficam com a grana no fim.

Cortina de fumaça. É o papel a que a ideologia se presta. Veja o caso da Argentina. Baseado em argumentos legítimos — soberania entre eles — o governo argentino ignorou um contrato e tomou uma petroleira de um grupo estrangeiro. Quando vai para o campo ideológico, a discussão deixa de lado as questões principais: afinal, a expropriação era a melhor opção? Fará bem ao país? Do jeito que o assunto vem sendo discutido, a efetividade da medida do governo Kirchner pouco importa, já que ela é, antes de tudo, uma reação ao explorador, e, portanto, correta, seja qual for.

O engraçado é que o mesmo conceito de soberania que embasou a decisão de um governo “de esquerda” pode ser utilizado para criticar a direita. Vamos à França. Para os direitistas, é questão de soberania controlar (e até proibir) a entrada de imigrantes. Para os esquerdistas, o controle tem origem no racismo e na discriminação, ainda que baseado na soberania.

Na tentativa de se reeleger, o presidente Nicolas Sarkozy endireitou seu discurso para se alinhar a uma candidata de extrema-direita derrotada no primeiro turno. Cortina de fumaça. O problema da imigração não será resolvido enquanto debate ideológico, mas enquanto questão de organização social. Quem votou em Marine Le Pen percebeu a pirueta ideológica de Sarkozy e corre dele.

O ponto é: a França dá conta dos imigrantes? De quantos exatamente? De que forma? A maioria dos estrangeiros já vive à margem por lá — para mais, fica a sugestão de O terrorismo intelectual, do Jean Sévillia, que conta a história recente, principalmente da França, de outro ponto de vista. Incomoda e faz pensar.

O bonde vai passando cheio de pernas brancas pretas amarelas e a gente chega ao Brasil, onde as cotas raciais foram enfim consideradas constitucionais pelo Supremo. É, são permitidas pela Constituição, o que não quer dizer que sejam uma boa. O ministro Joaquim Barbosa aproveitou para tirar uma casquinha e desdenhou do “caráter marginal” daqueles que se opõem à política de cotas para negros nas universidades. É muito engraçado esse lance de ideologia.

É obvio que as cotas raciais são um sucesso por aqui. Sua efetividade para combater o racismo no Brasil nunca esteve em questão. Para que elas sejam efetivas, basta acreditar que elas são efetivas. Independente do efeito. É tudo simbologia. Não se pode medir. Pode ser que façam bem, pode ser que façam mal. É torcer pelo melhor.

Bem, fica aqui um texto para você escarrar toda a ideologia engasgada na garganta. Se conseguir purgá-la, pensa um pouco. Quando defender a bandeira política certa se torna mais importante do que tomar a atitude certa, há algo errado. Você quer rima ou solução?

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