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      Um hóspede incômodo na Bolívia

      Senador boliviano Roger Pinto, que lidera a oposição a Evo Morales, está há quase dois meses na embaixada brasileira em La Paz e pode ficar anos, se o impasse persistir

      Um hóspede incômodo na Bolívia (Foto: Divulgação)
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      Do Opera Mundi – O impasse diplomático gerado pela recente concessão de asilo ao senador boliviano Róger Pinto Molina pelo Brasil pode durar anos e fazer com que o líder da bancada de oposição ao governo Evo Morales torne-se um hóspede muito incômodo na embaixada brasileira em La Paz por um longo período.

      Isso tudo ocorre porque o governo boliviano se recusa a conceder um salvo-conduto, recurso diplomático que permite a qualquer asilado deixar uma embaixada com garantia de segurança e se dirigir diretamente ao aeroporto internacional mais próximo para então viver no país que decidiu abrigá-lo.

       “O salvo-conduto é geralmente uma prática internacional baseada nos costumes jurídicos internacionais. Não existe regra supranacional que obrigue os países a concedê-los. No entanto, isso costuma ocorrer em nome das boas relações diplomáticas entre os países envolvidos”, afirma o advogado Evandro Menezes, professor de Direito Global da Faculdade Getúlio Vargas no Rio de Janeiro, em entrevista à reportagem de Opera Mundi.

      Para o também advogado Mauro Arjona, professor de Direito Penal da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), o tema toca na soberania dos países envolvidos. “Utilizando o exemplo do caso de Róger Pinto, é preciso lembrar que a embaixada em La Paz é território brasileiro. Qualquer tentativa de capturar o senador lá dentro seria equivalente à uma invasão em nosso território. Enquanto o asilado lá estiver, não poderá ser atingido, mesmo que o Brasil não tenha concedido o asilo. Os dois países são soberanos – tanto o Brasil na concessão do asilo quanto a Bolívia na do salvo-conduto”, explica.

      O embaixador aposentado Brian Michael Neele lembra que a concessão de asilo é um “velhíssimo instrumento”, que conta com muita força moral principalmente na América Latina e cujo objetivo sempre foi proteger a vida do indivíduo que pede ajuda, além de retirá-lo de uma zona de perigo, caso essa possibilidade realmente se verifique.

      “Não se entra no mérito sobre o por quê dele estar sendo procurado. Eu mesmo vivi um caso desses quando fui embaixador na própria Bolívia em 1971, quando um rapaz, militante de esquerda [que preferiu não nomear], perseguido pelo regime ditatorial de direita pulou o muro. Os dois países, na época, eram alinhados e tinham relações estreitas. No entanto, o asilo foi concedido em questão de dias, mesmo que isso não tenha agradado o regime boliviano”. Ele lembra que até mesmo um embaixador tem autonomia para conceder asilo caso ele julgue necessário, sem necessariamente precisar da autorização do governo.

      Menezes reconhece que, em geral, o pedido de salvo-conduto gera problemas para o Estado que recebe o requerente. “Em caso de impasse, ele pode ‘mofar’ na embaixada. Mas, geralmente, nesses casos, o requerente sempre costuma chegar lá muito bem orientado”.

      Os dois advogados, no entanto, concordam que, em situações de impasse como ocorre no caso de Róger Pinto, a questão poucas vezes é decidida por meios legais, já que os dois lados têm a prerrogativa de não ceder. A solução, na maioria das vezes, chega por vias diplomáticas. “A diplomacia é modo muito mais sutil e delicada para se usar do que a força.

      Por outro lado, Neele afirma que possibilidade do país que cede o asilo voltar atrás em sua decisão é ínfima, o que contribui ainda mais para a manutenção do impasse. “É como quando o árbitro marca um pênalti ou uma falta grave e volta atrás da decisão por pura pressão dos jogadores – e nesse caso sem consultar o bandeirinha. Em tese, ´pode acontecer, mas nunca vi”, afirma.

      “Uma hora se chegará a uma solução. Nem que um abra mão, ou os dois o façam”, acredita Arjona.

      Tratado

      O artigo III da Convenção sobre Asilo Político da OEA (Organização dos Estados Americanos) afirma que “não é lícito conceder asilo a pessoas que, na ocasião em que o solicitem, tenham sido acusadas de delitos comuns, processadas ou condenadas por esse motivo pelos tribunais ordinários competentes, sem haverem cumprido as penas respectivas”.  

      Essa é a mesma justificativa dada pelo governo boliviano, que também cita o fato de a Constituição local não permitir a concessão do salvo-conduto para pessoas que respondam a ações criminais no país – como no caso do parlamentar. Pinto nega as acusações e afirma ser perseguido politicamente e ameaçado pelo governo Morales. O governo brasileiro afirma ter dado direito a asilo ao parlamentar por “razões humanitárias”, dentro das tradições diplomáticas da região.

      Neele, no entanto, afirma que, em casos gerais, a justificativa de responder a crimes comuns “não pega”. “É um recurso muito vago. A coisa mais fácil é conseguir uma ação na Justiça para impedir que futuramente um perseguido político tente deixar o país”, afirma.

      O Itamaraty afirmou durante a semana que o salvo-conduto para Pinto pode ser autorizado por organismos internacionais. Neele concorda, mas mesmo que o documento parta da ONU ou a OEA, nada pode obrigar o Estado territorial (no caso, a Bolívia) a aceitar que o asilado passe por seu território.

      Histórico

      Pinto já se encontra há 54 dias morando de forma improvisada na representação diplomática. Porém, esse período, comparado a outros casos registrados na história da diplomacia, pode até ser considerado curto quando ocorre uma relutância do país local em conceder o salvo-conduto.

      Um dos casos mais famosos e longos sobre impasses diplomáticos em relação à concessão do documento foi o do cardeal húngaro József Mindszenty. Condenado à prisão perpétua em seu país, acabou libertado durante a Revolução Húngara de 1956. Ao fim do levante, que durou menos de três semanas, conseguiu se refugiar na embaixada norte-americana em Budapeste. No entanto, como o governo da Hungria se recusou a conceder-lhe o salvo-conduto, lá viveu por 15 anos, até finalmente obter o a permissão de deixar o país em 1971. Acabou morrendo no exílio na Áustria, em 1975.

      No entanto, o Brasil esteve envolvido em um outro impasse diplomático que inverteu toda a lógica sobre a concessão de asilos diplomáticos. Em junho de 2009, o presidente de Honduras, Manuel Zelaya, sofreu um golpe de Estado e foi expulso do país pelos militares e pelo grupo que tomou o Poder Executivo. Em setembro, no entanto, Zelaya surpreendeu a todos e conseguiu entrar clandestinamente em território hondurenho. Hospedou-se na embaixada brasileira em Tegucigalpa causando enorme mobilização popular no país centro-americano contra o governo golpista.

      Menezes lembra que, nesse caso, o governo hondurenho estava mais do que disposto a garantir o salvo-conduto e pedia para que o Brasil concedesse o asilo ao ex-governante. Porém, embora apoiasse Zelaya e não reconhecesse o novo governo, o governo brasileiro se negou. “Foi um caso curioso. Se o Brasil concedesse o asilo, seria um reconhecimento de fato ao governo [de Roberto] Micheletti. Na ocasião, quando o então chanceler Celso Amorim era perguntado sobre a condição diplomática do ex-presidente, ele utilizava o termo ‘convidado ilustre’”.

      Neele era embaixador em Honduras na época e se encontrava de férias no Brasil quando Zelaya apareceu na embaixada. Não foi autorizado pelo Itamaraty a retornar ao país até o período que seria o fim de seu mandato (27 de janeiro de 2010). “É um caso totalmente atípico, sequer pode ser estudado como precedente. O que ocorreu foi que o governo brasileiro torcia para que se instituíssem condições para reconduzir Zelaya à Presidência”. No entanto, isso não ocorreu e, após quatro meses de ebulição política, Zelaya deixou o a embaixada brasileira na data prevista e partiu para o exílio por mais de um ano na República Dominicana. De volta ao país em 2011, o ex-presidente coordena a campanha presidencial de sua mulher, Xiomara Castro, pelo partido Libre (Liberdade e Refundação).

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