O beco sem saída
Não há como negar que o estímulo a um discurso anti-partido, independente da origem justificada ou não dessa aversão às legendas, tem cortes autoritários, fascistas, que atingem a todos os partidos de maneira inequívoca
Toda análise política feita à luz dos acontecimentos corre o risco de cometer equívocos. Grandes analistas políticos contabilizam erros por prever o rumo dos fatos enquanto eles ainda estão transcorrendo.
A imprensa nacional dizia que “a revolução” de 1964 era um episódio passageiro e que logo haveria eleições diretas. Levamos mais de duas décadas sob um regime militar feroz.
São os riscos profissionais de quem se atreve a fazer previsões.
Em 2005, por exemplo, o presidente do maior instituto de pesquisa do país dizia que Lula era um cadáver político e que não deveria nem se candidatar. A derrota era certa. No ano seguinte, Lula se reelegeu com uma votação ainda mais consagradora que a obtida em 2002.
Corri o mesmo risco de errar ao me atrever a analisar a dinâmica dos acontecimentos recentes, à luz das primeiras grandes manifestações realizadas em São Paulo em torno do aumento da tarifa, ao escrever o artigo “Empoderados e desiludidos”, publicado no Brasil 247.
O risco de errar é sempre menor do que o de ser mal interpretado. O calor dos fatos às vezes turva a capacidade de análise fria dos argumentos que estão sendo expostos e distorce sua leitura.
Grande parte das críticas que o artigo recebeu se originaram em erros de interpretação, como de alguém que entendeu que eu teria dito que as mídias sociais “não mobilizam” ninguém nem são capazes de gerar "manifestações continuadas e prolongadas", o que nem estava escrito nem está em minha percepção, já que escrevi dois livros onde trato, justamente, do poder mobilizador das novas mídias.
No artigo em questão eu firmava cinco ideias centrais: 1) toda mobilização social tem relevância, mas sem uma pauta definida e sem lideranças reconhecidas, o movimento atual caminha para um beco sem saída; para um impasse; 2) em que pese o quantitativo mobilizado, ao não conformar lideranças reconhecidas e não organizar suas demandas de modo a que possam ser realizadas ou incorporadas pelas instâncias formais de estado (parlamentos, governos, etc.), o movimento corre o risco de não deixar, depois que passar nenhuma mudança substancial no tecido político visível, como uma nova agenda pública ou uma liderança que seja herdeira desse momento, como foi, por exemplo, Lindbergh Farias nas Diretas Já; 3) a origem profunda dessa revolta, basicamente juvenil, está no desencanto, na desilusão política e na falta de perspectiva de participação, que geraram uma demanda reprimida de espaço e de diálogo que não encontraram guarida nas instituições políticas tradicionais, especialmente nos partidos; 4) movimentos espontâneos e anárquicos tendem a rejeitar lideranças tradicionais, mas são, também, incapazes de criar novos interlocutores e tendem a refluir, como aconteceu em outros lugares no mundo; 5) baseadas em fatos reais misturados a percepções de segunda mão, impostas pela imprensa, há grande risco de que essas mobilizações sejam adotadas pela direita; golpes militares como o Brasil de 1964 e do Chile em 1973 começaram com mobilizações de massas fomentadas, calcadas em sentimentos reais de largos estratos sociais, mas que serviram de anteparo para as ações de uma direita organizada, orgânica, que tinha por objetivo criar um clima de anarquia que justificasse o chamado aos militares para colocar ordem no convulsionado por protestos cada vez mais violentos.
Posso dizer, sem medo de errar, que aquelas afirmações se comprovaram à luz dos fatos imediatamente posteriores. Mas creio que um hiato importante foi deixado ali e nesse vazio se construíram interpretações incorretas a respeito do que foi escrito. Por exemplo, que meu texto era um libelo contra as mobilizações.
Não escrevi um manifesto e sim uma análise. Não busquei a concordância das pessoas, mas apenas manifestar o que eu penso. Quem acha que sou um reacionário contrário à mobilização social está equivocado. Acredito, sim, na mobilização como fator de transformação, de formação de lideranças e de mudanças estruturais, mas acredito também que não é a multidão quem qualifica a pauta e sim o contrário.
O golpismo – derrubar um governo legitimamente eleito e criar ruptura institucional - estimulado por multidões não deixa de ser golpismo. Como disse Descartes, uma ideia estúpida não deixa de ser estúpida porque é pensada por muita gente.
O hiato em minha análise tem a ver com a falta de atenção com a origem da crise de representação que retroalimenta as mobilizações: a burocratização dos partidos políticos e seu afastamento das bases sociais que os originaram, que tem como subproduto institucional a proliferação de legendas de aluguel, que não representam absolutamente ninguém.
Estritamente presos às pautas e calendários eleitorais, os partidos viraram as costas para a organização de base, ignorando as demandas sentidas e não manifestadas, que foram se acumulando, muitas delas estimuladas pela prática recorrente do “agendamento” feito pelas grandes redes de comunicação do país.
Do mesmo modo que o PT, pego de calças curtas pelo vendaval das ruas, o PSDB e o PSB também não podem comemorar o movimento como vitória própria ou prever a dinâmica seguinte como um inexorável curso em direção à pauta da oposição de direita. Em Minas, Pará, Paraná e em São Paulo o PSDB também sofreu forte desgaste pela ação das ruas. Em Pernambuco, Eduardo Campos sofreu revezes. Foram todos para o mesmo balaio.
Não há como negar que o estímulo a um discurso anti-partido, independente da origem justificada ou não dessa aversão às legendas, tem cortes autoritários, fascistas, que atingem a todos os partidos de maneira inequívoca porque atinge os pilares de sustentação da democracia representativa.
A bandeira do pequeno PCR (Partido Comunista Revolucionário) sendo queimada e um de seus militantes sendo espancado por uma turba de arruaceiros, o ataque contra militantes do PSOL, do PSTU e do PCO aos gritos de “morte aos comunistas”, a camiseta de uma militante do PT sendo arrancada nas ruas de São Paulo deixando a jovem desnuda diante de uma multidão, demonstra que a intolerância não tem fronteira e guarda um corte totalitário muito bem configurado. A democracia das multidões não é outra coisa senão a barbárie.
Ao contrário de “Primavera Brasileira”, como quer a vênus platinada, o clima de intolerância, da falta de objetividade e de linchamento político aproxima o Brasil de agora mais da República de Weimer, a antessala do nazismo na Alemanha, quando em meio a mobilizações gigantescas, com pautas legítimas, pequenos grupos de camisas negras ditavam o terror sem sofrer represália dos manifestantes pacíficos, que ao fim e ao cabo serviam de escudo para os marginais se protegerem da ação policial e construírem as suas noções de poder.
Iluminados pelos holofotes da mídia irresponsável, cobertos pela áurea da rebeldia romântica da adolescência inconsequente e amparados por um sentimento legítimo de insatisfação, o vislumbre da curva em direção ao vazio se avizinha. O que haverá além do ali em frente?
A embriaguez do empoderamento e a desilusão com as estruturas de representação atuais foram às ruas e seu brilho está eclipsando um dos lados mais relevantes na análise do momento: a transformação de um movimento inicialmente progressista e legítimo em massa de manobra da direita golpista.
Até a ultraconservadora revista Veja lembra, em sua última edição, que movimentos desse tipo podem começar pela esquerda e desaguar na direção oposta; o Maio de 1968, na França, culminou com a eleição de Georges Pompidou, um presidente conservador; o movimento pacifista americano, chamado de "flower power", contribuiu para a eleição de Richard Nixon.
Se isso não for um beco sem saída, o que haverá de ser?
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