O julgamento espetáculo
Pela importância política que tem para o Brasil, não é exagero dizer que o caso do chamado "mensalão" se equipara, em dimensão política, aos infames processos de Moscou, pelos quais Stalin eliminou a velha guarda bolchevique
O julgamento da Ação Penal nº 470, de competência originária do Supremo Tribunal Federal, pode ser um divisor de águas na história do Judiciário Brasileiro, ou o início de uma série de questionamentos político-filosóficos que só tempo dará resposta, se resposta houver. Conhecido popularmente por "processo do mensalão", o caso produziu muita euforia nos arraiais anti-petistas da mídia e desconsolo entre a gente do PT. Passada a euforia de uns e a tristeza de outras, entraremos na fase do assombro e da perplexidade. Qualquer que seja o veredito do Supremo, o caso será tema de acalorados debates acadêmicos.
Trata-se, afinal, de um julgamento histórico. Pela importância política que tem para o Brasil, não é exagero dizer que se equipara, em dimensão política, aos infames processos de Moscou, pelos quais Stalin eliminou a velha guarda bolchevique; aos julgamentos de Nuremberg, que mandou a cúpula do Partido Nazista e os carrascos da Gestapo para a forca e para a prisão perpétua; e ao processo de Eichman em Jerusalém, que resultou na dispersão das cinzas do velho nazista sobre as águas do Mediterrâneo.
O julgamento do mensalão, porém, difere de todos eles em ponto fundamental: os réus do não estão submetidos a leis novidadeiras nem a tribunal de exceção. Estão diante do juízo natural, que os julga por leis que já vigoravam ao tempo dos fatos de que são acusados. Mesmo assim, as questões suscitadas dão a impressão de que há, sim, uma certa excepcionalidade no caso. Impressão passageira, mas que provoca perplexidade, pelo menos naqueles que conhecem minimamente o direito e ficam apreensivos diante dos dos precedentes que o caso pode gerar.
O que ocorre em caso de empate entre ministros? A perda do mandato de réu condenado é automática ou depende de decisão posterior da Câmara dos Deputados? Quem votou pela absolvição pode opinar sobre o cálculo da pena? Se houver divergência no cálculo, o que prevalecerá? São questões incidentais que ninguém jamais previu. Ao resolvê-las, a corte não estará aplicando lei nenhuma, mas criando lei nova, que terá vigência até que o Congresso legisle sobre o caso.
Altas indagações?
O empate tornou-se uma possibilidade com a aposentadoria do ministro Cezar Peluso, o que reduziu o Supremo a dez ministros. Na avaliação de alguns deles, deve-se favorecer o réu com a absolvição. Mas há divergências. Marco Aurélio Mello defende que deve ser acompanhado o voto do presidente. Marco Aurélio está apenas em parte correto. O que favorece o réu é a dúvida do juiz, não o empate no colegiado. O in dubio pro reu é um princípio aplicável até mesmo pelo juízo singular. Ocorre que cada ministro é soberano em seu voto e ninguém será obrigado a modificá-lo para acompanhar um eventual voto dissidente do presidente. Normalmente o voto presidencial é proferido quando ocorre empate no plenário, cinco contra cinco. Mas agora são apenas dez, com um plenário de nove membros. Não pode haver empate no plenário, mas, se o presidente votar estando o placar 4X5, ele estará empatando, e não desempatando. Assim, a única solução possível é o presidente deixar de votar. Mas ele não pode ser obrigado a isso. Caso vote empatando, como poderá votar novamente, desempatando? Seria dar ao presidente o privilégio de um voto a mais. E isso não tem amparo legal nem regimental. Cada ministro, um voto - é o princípio da isonomia. O presidente Carlos Ayres Britto não quer nem pensar nisso. "É uma pergunta sem resposta. Temos que interpretar corretamente o regimento" disse ele a jornalistas que o interpelaram sobre a eventualidade de um empate.
Os ministros não comentam sobre a perda do cargo em caso de condenação dos réus com mandato eletivo. No processo do mensalão, três réus, João Paulo Cunha (PT-SP), Pedro Henry (PP-MT) e Valdemar Costa Neto (PR-SP), são deputados federais. O primeiro já foi condenado por corrupção passiva, peculato (furto de bem público por funcionário) e lavagem de dinheiro. O único ministro que se pronunciou sobre o tema foi Peluso, que votou pela cassação automática do mandato. Tem razão os ministros em não se pronunciarem. Juízes não debatem em público processos que terão que julgar. Seria antecipar veredito. O próprio Peluso foi infeliz em se precipitar sobre o tema. Penso que quis marcar posição antes de ir embora.
A lei permite o réu condenado por peculato culposo reparar o dano antes do trânsito em julgado de decisão irrecorrível. Este é um caso de extinção da punibilidade. Está no Código Penal. Os que ainda não foram condenados, caso o sejam na forma meramente culposa, poderão devolver o dinheiro aos cofres públicos antes do trânsito em julgado da sentença. Neste caso, não poderão perder o mandato. Perda de mandato não é pena, mas efeito da condenação. Não havendo pena a ser aplicada, não há que falar em efeito da condenação.
A questão trouxe à tona divergências entre o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, e o presidente da Câmara, Marco Maia (PT). Enquanto Gurgel diz que a Casa não pode manter no cargo um réu condenado, Maia afirmou que a palavra final é do Legislativo. Ambos estão errados. Gurgel não tem que se meter em seara política. Aliás, ainda hoje não disse uma palavra sobre as graves acusações que lhe fez o senador Fernando Collor de Mello sobre ter mandado dois procuradores da república em Goiás ter vazado para a imprensa as gravações que derrubaram Demóstenes Torres, e que tramitavam em segredo de Justiça. Para derrubar o senador Torres, um crime foi cometido. Collor o denunciou da Tribuna do Senado. Ninguém se interessou.
A perda de mandato ou função pública é automática quando a pena privativa de liberdade for superior a um ano, quando o crime é praticado com abuso de poder, ou, em qualquer caso, superior a 4 anos. No caso de crime de lavagem de dinheiro, a lei prevê como efeito da condenação a pena privativa de liberdade, o perdimento de bens e a interdição ao exercício de cargo ou função pública.
Para que os deputados venham a perder os cargos antes é necessário que as penas privativas de liberdade sejam fixadas e, no caso dos que ainda não foram julgados, é preciso antes condená-los também pelo crime de lavagem de dinheiro. Em tese, é possível que os parlamentares que ainda não foram julgados escapem de perder seus mandatos. A perda de mandato, portanto, vai depender do quanto de pena for aplicado e, nos demais, que não haja condenação por lavagem de dinheiro. Num ou noutro caso, o efeito ocorre de pleno de direito. Se a decisão final ensejar perda de mandato, a Câmara tem apenas que cumprir, não tem que discutir. E se ocorrer o contrário, Gurgel terá que se calar e Peluso terá que retirar o que já disse.
Quanto aos que votaram pela absolvição. Não há norma regimental que os impeça de votar sobre a dosagem das penas. Até por que os ministros são soberanos e têm o direito de votar qualquer coisa. Têm, inclusive, o direito de mudar o voto antes de o resultado ser prolatado pelo presidente. Divergências sobre o cálculo? Prevalece a maioria. A menos que cada ministro tenha contas divergentes de cada ministro. Mera possibilidade estatística. Mas, se acontecer, aí, sim, teremos um impasse.
Direito x moralidade
O fato mais extraordinário neste julgamento é que todos esses fatos que vêm causando perplexidade não são questões de alta indagação. A simples e sensata aplicação do Regimento, das Leis e, por fim, dos princípios fundamentais de Direito, solucionam todos esses problemas. Ocorre que o Julgamento do mensalão é um evento processual apenas quando transita pelas bancadas onde os ministros têm assento. Fora dali, é um episódio político emocionante e, para muitos, uma questão de honra, até. Daí que o moralismo acaba penetrando sub-repticiamente no caso tal como o demônio invadindo a Criação.
Não me refiro aos inibidores de conduta gerados pelo superego freudiano ou pelo complexo jungiano de moralidade. Refiro-me às exigências particulares ditadas pelas conveniências políticas e codificadas pela intolerância e pelo preconceito. O direito penal é objetivo, abstrato, genérico, pré-existente aos fatos sobre os quais incide. Na sua elaboração legislativa por certo a moral é consultada, mas em sua aplicação judiciária o que vale é a letra da lei. O espírito da lei, a chamada vontade do legislador, é santo que só baixa nos terreiros onde quem puxa canto são os pais de santo togados.
Mas, claro, sempre tem os que, achando-se igualmente médiuns, podem incorporar o que acreditam ser o verdadeiro espírito da lei, ou até propor que lei, a lei de verdade, é o que acreditam ser a lei. Grande parte da opinião pública, moldada majoritariamente pela imprensa, não apenas quer como exige aos berros a condenação dos réus, e, mais do que a condenação, a degradação moral e social de todos eles. Opinião púbica e imprensa já têm veredito. Exigem que o Supremo atue como mero homologador do que já foi decidido nas redações.
Vem daí o endeusamento do ministro Joaquim Barbosa e a vilificação do ministro Lewandovski. Vem daí as interpretações estapafúrdias de alguns colunistas políticos subitamente transformados em juristas que jamais abriram a Constituição. Vem daí a grita contra a participação do Ministro Dias Toffoli no julgamento, opondo às regras objetivas do Código de Processo Penal, que estabelece os casos de impedimento e suspeição, os critérios subjetivos do moralismo rastaquera. Vem daí a indisfarçada hostilidade com que os defensores dos réus vêm sendo tratados, como se fossem vulgares advogados caxixeiros a serviço de coronéis. Vem daí até mesmo a súbita implicância com o critério legal pelo qual são escolhidos os ministros do Supremo, critérios tão velhos como a República e que jamais sofreram reparos.
A condenação dos réus do mensalão virou uma causa da imprensa nacional. Muito mais do que informar, ela exige a condenação de todos, e não transige. No entanto, o que este julgamento mostra é que nunca a imprensa esteve tão despreparada, do ponto de vista técnico, para cobrir de forma correta e informar com isenção os fatos como estão acontecendo. Esse despreparo se manifesta, por exemplo, e este é apenas um pequeno exemplo, no manejo atrapalhado do vocabulário jurídico. Por exemplo, e este é só mais um exemplo, a insistência em denominar "foro privilegiado" o foro especial por prerrogativa de função. Foro privilegiado teve o apóstolo Paulo quando, querendo escapar à jurisdição do Sinédrio e das sinistras leis de Moisés, invocou sua cidadania romana para "apelar a César", pelo que foi submetido ao escandalosamente tolerante Ius civilis.
Que foro privilegiado é este que em que o réu, condenado em estância única, não terá direito a apelação, ao chamado segundo grau de jurisdição? No entanto, esta é uma garantia assegurada em cláusula pétrea a qualquer cidadão, exceto aos parlamentares federais, ministros e Estado e presidente da República.
Não é uma questão de preciosismo. O exemplo citado é apenas ilustrativo de uma mentalidade. Jornalistas em geral têm aversão ao chamado "juridiquês", não obstante apreciarem as gírias impostas pelas novelas de TV e os chavões inventados pelos publicitários. Assim, à guisa de tradução, introduzem na linguagem falada, termos supostamente equivalentes, mas que na verdade são impropriedades deturpadoras. A verdade é que abominam o juridiquês pelo simples fato de não serem versados nesta língua. Como alguém pode traduzir corretamente um idioma em que não é fluente? É este o caso. E é assim que, no Brasil, conforme observou Mário de Andrade pela voz de Macunaíma, vamos tendo dois idiomas: o brasileiro falado e o Português escrito nos livros. Nossa imprensa, sobretudo a televisiva e a internetizada, cada vez mais se distancia do Português e das normas cultas da língua para prestigiar, e vernaculizar, o bárbaro português falado nos botequins.
Abro exceção ao veterano Jânio de Freitas, da Folha de S. Paulo, sem querer ofender outra possíveis exceções, que desconheço. Adianto que nem sempre estou de acordo com os pontos de vista dele. Mas há que se reconhecer que ele informa com exatidão e comenta de forma serena e equilibrada, com absoluta isenção. Mas, num caso apaixonante com este, buscar isenção – virtude central do jornalismo decente – é violar a ortodoxia, é trair a confraria, é pecar por ficar em cima do muro. Pior, é ser acusado de estar a serviço do PT. Noto que Jânio recebe insultos os mais torpes da parte de leitores ignorantes, gente estúpida que não tem argumentos para polemizar com o jornalista. Mas quem, afinal, quer informação correta, notícia exata, comentário abalizado? A hora requer militantes. O jornalista há que ser armar cavaleiro e seguir nos caminhos da Cruzada.
Impraticabilidade
Entre as exigências do clamor público e da opinião publicada e os imperativos da Justiça, em sua moderna concepção política e filosófica, vai se equilibrando como pode o Supremo Tribunal Federal. Até aqui, vai indo bem. Não tem razão, portanto, o presidente da Câmara dos Deputados quando afirma que alguns ministros têm "comportamento midiático". Os ministros cumprem o seu papel institucional, gostemos ou não dos votos que proferem. Não vejo vedetismo nenhum. Eu particularmente faria um reparo a Joaquim Barbosa pelo chilique ante o voto de Lewendovski a favor do desmembramento do processo. Ele não tinha nada que dar pitaco. Deveria ter se lembrado de que um ministro do Supremo é soberano em seu voto, não tendo que dar satisfação a outro ministro. Vence a maioria. É como se joga, ponto.
Mas não deve ser fácil para os ministros permanecerem impávidos ao assédio da imprensa. Os jornalistas valorizam ninharias, dão destaque a coisas absolutamente sem importância, ficam atentos a cada levantar de sobrancelhas, esperando ver aí um snal dos tempos; ávidos por um comentário irônico, por um dito xistoso, por uma intrigazinha interna – enfim, por tudo aquilo que é mais do que secundário. Devassam a intimidade da casa e especulam ingenuamente sobre o que vai ser. Para muitos dos que tenho lido, uma sessão do Supremo deveria ser algo como as avacalhadas reuniões das CPMIs, lugar onde filho chora e mão não vê.
Os ministros, repito, vêm se comportando de modo correto, o que não significa que sejam infalíveis. Na verdade, são falhos como qualquer ser humano. O julgamento de um processo como esse está mais sujeito a erros do que qualquer outro. Duvido que todos os ministros conheçam a fundo os autos. O relator e o revisor sim, pois foram obrigados a manipulá-los. Acho, ainda, que nem os defensores conhecem em toda sua totalidade as peças processuais. São milhares e milhares de folhas, centenas de apensos. O bicho ocupa várias mesas atrás da bancada dos ministros. É imanuseável. Daí que o julgamento acaba numa disputa retórica entre procurador-geral, defensores e ministros. Isto, claro não desqualifica a opinião de ninguém. Para isso existe relator e revisor. Mas é fato que o conhecimento da causa é superficial. Mas, jacaré quer saber de profundidade? Nem eu!
Os ministros não têm comportamento midiático. O Supremo é que está sob foco dos holofotes e isso muda a rotina da casa. É o maior evento midiático dos últimos tempos. Conforme previsto por todos, até a CPI do Cachoeira foi relegado à insignificância. O que todos queremos saber é se Zé Dirceu, Delúbio Soares e José Genuíno vão escapar ilesos, ou se serão encafuados nas enxovias da Papuda. Eu particularmente acho que serão condenados. Não é torcida, não é wishful thinking. É que praticamente todos os ministros, em suas manifestações, já decidiram, marginalmente, que o mensalão existiu mesmo. O quadro está desenhado.
Quando, finalmente, o presidente Ayres Britto ler a sentença, condenando ou absolvendo seja lá quem for, (meu palpite é que todos os graúdos serão condenados) toda essa ruidosa discussão sobre ter o mensalão existido ou não será questão bizantina, farto material para teses e monografias com que os acadêmicos vão se distrair anos afora. Afinal, quando o Supremo locuta, causa finita. Como diria Mario de Andrade: tem mais não.
Tem mais não? Tem sim. O caso do mensalão pode não terminar for lido em plenário o acordão condenatório. Para os condenados resta a possibilidade jurídica da ação rescisória, que é uma quase-apelação. Não é instrumento processual que se maneje caprichosamente. Tem condicionantes legais. Mas, enfim, é uma possibilidade.
❗ Se você tem algum posicionamento a acrescentar nesta matéria ou alguma correção a fazer, entre em contato com redacao@brasil247.com.br.
✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.
Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: