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Brasília

Sutilezas do Calendário

A celebração do ano novo é uma convenção arbitrária, mas o que importa ao se esvair o 31 de dezembro é receber um abraço sincero

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O Cristianismo é apenas um dos legados da civilização ocidental, por isso alguns mais escrupulosos preferem dizer que estamos nos fins de 2011 da Era Comum, e não da Era Cristã. Todavia, alguém mais escrupuloso ainda poderia lembrar que tal truque conceitual não passa de um eufemismo pra dar um aspecto laico ao critério que usamos pra contar o tempo, já que ponto de referência acaba sendo o mesmo: o nascimento de Cristo.

De qualquer forma, as siglas A.C e D.C costumam prevalecer nos livros e manuais de história, lembrando que foi a Sua vinda o marco zero de uma Nova Era: O ano 1. Ou ano 0? Existe uma adorável polêmica historiográfica a esse respeito (o número “zero” só chegou tardiamente à Europa), e se formos chatos com as palavras, pode-se chegar à conclusão de que estamos em vias de entrar em 1982. Sim, porque “Cristo” quer dizer “O Ungido”, que pode ser traduzido como “O batizado.” Até um ignorante como eu sabe que Jesus de Nazaré só foi batizado aos 30 anos, portanto foi aí que tornou-se “Cristo”, e não quando nasceu.

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Essa é apenas mais uma das artimanhas do calendário, esse quebra-cabeça teórico que há milênios tenta alinhar o tempo dos seres humanos com os ciclos de rotação da lua em torno da Terra e da Terra em torno do sol (que, suponho, deve orbitar em torno de alguma coisa). O calendário ocidental a que estamos submetidos, e que é adotado pela ONU, não deixa de ter um poder simbólico sobre o resto do mundo. Mas isso não faz dele mais ou menos exato do que do que outras variantes que existem e/ou existiram no planeta. O calendário Maia, que dizem ser bem preciso, tem vivido os seus momentos de fama, mas sinto desapontá-lo se você acredita que em breve veremos o fim do mundo.

Pra se ter uma idéia do tamanho da quizumba, basta dizer que nem o ano bissexto, que veio pra suprir algumas sobras de tempo no correr dos séculos, fez a matemática dar conta dos caprichos da natureza. Isso porque cada ano tem exatos 365 dias, 5 horas, 48 minutos e 45,96768... segundos. Para o paleontólogo Stephen Jay Good em Entrevista Sobre o Fim dos Tempos, editado pela Rocco, “Os anos bissextos no calendário são como os coringas num jogo de carta. É possível acrescentá-los ou retirá-los em função das necessidades. Clávius [ Christoph Clávius, matemático jesuíta do século XVI ] substituiu a base de 365 dias e um quarto por uma aproximação mais fina da realidade: 365.2422 dias. Para se ajustar a isso, decidiu suprimir um ano bissexto uma vez por século. Mas restabelecê-los em todas as viradas de século divisíveis por 400.”

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Parece complicado, e é. Tanto que os saberes astronômicos de Clávius foram responsáveis pelo mais mirabolante ajuste no calendário de que se tem notícia. Instado pelo Papa Gregório VIII a refazer as contas, tal sábio teria chegado a uma idéia semelhante aos dos economistas brasileiros que, nos tempos bravios da inflação, decretavam a supressão de zeros no preço dos produtos a fim de abaixar os preços. Em 1582, com uma canetada, 10 dias simplesmente desapareceram. Ainda segundo Gould, “naquele ano o 4 de outubro foi seguido pelo 15 de outubro.” Completa, ironicamente, o entrevistador: “É o que se chama matar o tempo!”

A operação, que marca a transição do calendário Juliano para o Gregoriano, foi lentamente assimilada, com alguns traumas. Os revolucionários bolcheviques, que o adotaram só na Revolução de Outubro, de repente se viram revolucionando em.... novembro! A Revolução de Outubro é que entrou nos manuais e linhas cronológicas, mas convém lembrar como era antes, eis a delícia do pretérito.

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Falava eu da Era Cristã, ou Era Comum, o que vem a dar no mesmo. Mas esse Ano 1, ou Ano 0, é o início em relação a qual outro início? Qual o outro ponto de referência, mais antigo? É aí que entra outra sigla, tão importante quanto A.C e D.C, mas tão pouco utilizada nos compêndios: A.U.C (Ab Urbe Condita), ou “desde a fundação da cidade”, no caso Roma. Pelas contas dos primeiros matemáticos cristãos, que só viriam a se preocupar com isso alguns séculos depois da suposta saga de Cristo, o Mesmo teria nascido 753 A.U.C desde a fundação de Roma, ou seja, 753 anos depois da cidade.

A coisa fica ainda nebulosa e arbitrária quando se sabe que os fundadores de Roma teriam sido veteranos da Guerra de Tróia, que fugiram da Ásia Menor em chamas e foram colonizar a península em forma de bota que hoje se chama Itália, como foi contado por Virgílio. Mas aí é que as contas não batem mesmo: segundo os antigos historiadores, a Guerra de Tróia teria ocorrido mais de dez séculos antes da vinda de Cristo, por volta 1.200 a 1.300 A.C. Portanto, há lapso de mais de 300 anos entre Guerra de Tróia dos gregos e a Guerra de Tróia dos romanos. Por isso há quem sugira que nesse meio tempo os pioneiros latinos obraram uma dinastia de 3 ou 4 séculos no meio do caminho, provavelmente no chifre da África ou algum lugar parecido.

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Aliás, a Guerra de Tróia foi contemporânea do templo de Salomão? E o quão antes foram as pirâmides do Egito, mesmo?

Tudo muito confuso e atolado em mistificação, como se nota. Pra que a história humana nos pareça inteligível bolamos marcos e pontos de referência, como se pudéssemos discernir e catalogar todos os tempos em que viveram e morreram tantas gerações de seres humanos. Mas botando o preto no branco, arrisco dizer que o legado geral da civilização romana é maior, bem maior, do que a cristã. Ambas a certa altura se tornaram indiscerníveis, é fato, e o Cristianismo foi assimilado pelo Império. Mas se nossa religião veio do Oriente Médio e foi reinventada e adaptada pelos patrícios, pode-se dizer que outros aspectos materiais e conceituais da nossa civilização são quase que exclusivamente latinos, como a língua e os sistemas jurídico, econômico e político. A palavra “senado”, por exemplo, não foi inventada em Jerusalém. “Dai a César o que é de César.” Mas o calendário não é de todos? Por outro lado, só alguém muito extravagante diria que não estamos em 2011 D.C, mas em 2764 A.U.C.

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No nosso cantinho do mundo, claro. Cioso do seu etnocentrismo, o cristão considera que a vinda de Cristo foi o acontecimento mais badalado da história e o paroxismo das profecias. Ignora solenemente outros líderes e profetas que vieram e que também foram responsáveis por clivagens no tempo (ou, mais provavelmente, nem dá uma pelota pro assunto). O calendário chinês, por exemplo, começou a ser contado 2.637 A.C pra celebrar a vinda de Huag Ti, o Senhor Amarelo, ou Senhor Augusto. Pros judeus, O Cara foi Adão, que viveu há 5772 anos. É interessante notar que o ano que corre no calendário muçulmano é o de 1432. E como começou a ser contado? Quando nasceu Maomé, diria um espertinho. Ledo engano. Para os muçulmanos, o Ano 1 aconteceu quando Maomé fugiu de Meca pra Medina, em 622 D.C, e foi buscar correligionários pra acabar com os idólatras que infestavam a cidade santa. O Ato 1 do calendário muçulmano é, portanto, uma fuga. Nada que macule a biografia de tão portentoso homem, que depois voltou à Meca e num lance cinematográfico espalhou Sua palavra no mundo.

Tal grau de arbitrariedade no fluxo dos acontecimentos só pode significar que somos incapazes de medir racionalmente o tempo. Por mais que tenhamos hoje relógios ultra precisos, os períodos históricos costumam remeter a acontecimentos mitológicos que se perdem no rio caudaloso dos milênios. É como se a civilização precisasse de instantâneos da sua trajetória, da mesma forma que construímos narrativas pra nós mesmos ao olhar antigas fotografias: “Aqui sou eu com 15 anos passando as férias em Ubatuba” ou “Este sou eu fazendo 7 anos, soprando as velas de um bolo ao lado de tais e tais amiguinhos”, embora o sujeito na foto seja literal e biologicamente outra pessoa (todas as minhas células já são outras). Da mesma forma que receber um “parabéns” no aniversário nada mais significa o reconhecimento de que se teve a proeza de continuar mais um ano vivo, a celebração do ano novo lembra o fato, nem tão prosaico, de que a civilização continua.

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“Finalmente, a razão por estarmos aí, em pleno bate-papo, é que um asteróide bateu na Terra, exterminou os dinossauros e poupou alguns pequenos mamíferos” diz Gould. Essa foi a passagem do Cretáceo ao Terciário, mas é claro que uma pedrada como essa deixa qualquer organismo desorientado.

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