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Sudeste

Eu Rio

Que os novos tempos de tecnologias sirvam não para criar tribos do Eu, mas que possam levar o carioca mais à casa, que o mundo seja mais Rio. Que Riam!

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De tanto cantinho de terra pra nascer, fui jogado à sorte no [em] vão entre a sinhá de pança cheia e a mucama, mães da favelada de barriga esturricada de vento. Em meio a esse mundo inteiro, brotei logo no Rio de Janeiro. Família quase-cigana, tive mais cep's que ostento anos de vida, morei em tanta casa que nem me lembro mais. Não por qualquer motivo moderno - falta de teto, porte de farda ou terno. É que nesse globo tão cheio de pressa e com linhas fronteiriças dantes inimagináveis, o presente é apartado d'a gente muito fácil: negócios falem depressa e ali é aqui sem grande esforço. Mas a causa maior que opto por responsabilizar não pode ser outra, senão a carioquice – e essa minha atitude, eu sei, tem um quê de carioca. Se nunca paramos em uma cidade, ora foi pelo desejo de buzinas fronte às ondas, ora esperança de calmaria nas estradas de barro esburacadas.

Coisas de nosso tempo: somos peças forçosamente montadas de quebra-cabeças diferentes. A identidade é fragmentada e líquida - evapora. No mesmo rio, duas vezes? Nun-ca. E eu, ziguezagueando pelas curvas do estado, como havia de ser, cresci aparentemente sem raiz, miscelânia esquisita dos lugares que passei. O sotaque entredividido pelo chiado esperado e uma estranha presença de São Paulo e Minas, na verdade, é naturalmente fluminense, filhote de interiores diferentes. Dúvidas cruéis tomaram minha infância, como adedanha ou adedonha – curioso, o Word corrigiu as duas – joelho ou italianinho. E olha lá, como se a geografia não bastasse, estamos em tempo de informação a qualquer mover de dedos nanotecnológicos: de um iPad, fácil-fácil descobrir o sistema de produção da Melanésia, trocar qualquer ideia com alguém ao Norte da África capaz de desdizer notícias, assistir o jogo do Barça em tempo real, aprender a fazer nachos, googlear sobre a obra de Andy Warhol e comparar com Oiticica ou contar os tijolos das Muralhas da China. O mundo, tão desigual e diverso, é quase um só. Como ter origem?

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Lembro à época ainda dos bonecos, morador de Maricá, quando meu pai, recém-aposentado, me levava à capital do estado. Por ser temporão, tive a sorte dele e minha mãe serem de uma geração com pés fincados na terra – Seu Evandro, o cearense mais carioca de todos; Dona Regina, eternamente de Quintino, amiga de infância do Galinho. Ao menos uma vez por mês, ele pegava seu velho [aliás, caindo aos pedaços] Passat azul, e fazia questão de me apresentar repetidas vezes aquela cidade: minha alma cantava, eu via o Rio de Janeiro. Entre os braços apontados para o Edifício Balança-Mas-Não-Cai ou prédio da Petrobrás, em seu roteiro trivial, nada podia ser mais mágico do que alimentar os pombos na Cinelândia. Nada – na vida, nada será.

Chorei no Salgado Filho, Méier. Fui ninado no Engenho Novo, especificamente Rua Vaz de Toledo. Corri de fralda em Cabo Frio, pela Praia do Forte. Aprendi a soltar pipa e jogar bola em Maricá, pr'os lados do Boqueirão. Dei o primeiro beijo num tradicionalmente conservado Hi-Fi em Resende. Vi em Angra, no intervalo de iates e peixeiras, que a apologia à desigualdade não cabia em mim. Entendi bem o conceito de amizade em São Gonçalo, comendo X-Tudo na Pracinha Zé Garoto. Aprendo, hoje, a ser responsável do Barreto à UFF, em Niterói. Cresci, não jogo mais milho aos pombos. Inacabado, quem sabe, amanhã Paris ou Bangladesh – mas os alicerces carioquíssimos, bróder.

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Se antes, nos passeios de férias ao Clube Naval da Lagoa com os primos, meu peito ficava cheio de ar, talvez pela arborização, certamente pela felicidade, hoje estufo-o ao pegar um trem pras estrelas. Debaixo de cada ponte, numa operação da UPP na favela turistificada, na face de Wellintons e Sandros, estranho o Cristo olhar tão longe, além: de braços assim abertos, será que protege alguém? Avisto uma cidade do Rock ressignificada ou sem sentido.

Todavia, não há fato mais irrefutável em qualquer pólo ou trópico: a cidade purgatório do caos, também é da beleza – se Deus existe, deve ter descansado o sétimo dia pr'os lados de cá, o verdadeiro Jardim do Éden.

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Beleza estética, quando olho pra fora: arcos da Lapa e as navalhas aposentadas dos malandros. Qualquer onda meramente contemplável na Região dos Lagos. Garotas de Ipanema inigualáveis. Uma ilha por dia pra conhecer em Angra. Desfile na Sapucaí ao menos uma vez na vida. Um chão pé-de-moleque em Paraty, pra tropeçar embriagado de alambiques e Jazz. Engenhos de açúcar às ruínas em terras papa-goiabas. A arte contemporânea de outro mundo no MAC. O belo que não conheço, mas pertenço. Enfim, do Leme ao Pontal, não há nada igual no mundo.

Há, sobretudo, beleza poético-afetiva quando olho pra dentro: Maracanã das lágrimas de 50 e do meu primeiro alô à torcida do Flamengo. Carnaval: ora boca banguela sorridente, ora desafogamento, democracia da felicidade - mesmo assim, o Rio de Janeiro continua lindo. A Rua do Ouvidor de tantos versos machadianos. Às cidades-praça, de duas ruas: não existe feiura, mas sim olhar desatento. Coisa que não tenho: mesmo sem gostar de sinal fechado, até o mormaço no engarrafamento da Avenida Brasil, estremecendo a paisagem, se faz quadro pr'um olhar otimista. Saquarema com sabor de champagne do Ano Novo, de miojo, do mar salgado, de carteado. Feira dos Paraíbas e a primeira vez com irmãs de sangue. Qualquer batidão neurótico do funk e lembranças dos anos 90 com a irmã de criação, de coração e de alma: naquele lugar, naquele local, era lindo seu olhar. Friozinho de Penedo com gosto de Casa do Chocolate, de sorvete finlandês e de família célula-social e janela do espírito. Beleza em ser palpável papear com Drummond (ainda que em estátua), esbarrar no Chico correndo no Leblon, se ver em episódio do Maneco aos acordes de Vinícius e Tom.

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Que Heráclito me desculpe, mas, ao passo que o tempo passa, dou meus passos, mudo e esse lugar também, só que ele não sai de mim, não sai – diria até que não sai de ninguém. Porque o Rio está aqui, a água é que corre em nós. Na verdade, não somos nós que moramos numa terra, é uma terra que mora n'a gente. E se eu sou eu, sou mais eu porque sou o Rio de Janeiro. Que os novos tempos de tecnologias sirvam não para criar tribos do Eu, mas que possam levar o carioca mais à casa, que o mundo seja mais Rio. Que Riam!

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